A bandeira portuguesa tem química? Tem e muita
Cientistas da Universidade Nova de Lisboa fizeram uma bandeira portuguesa com moléculas e nanopartículas, que vai ser capa de uma revista internacional. Esta sexta-feira Presidente da República vai ao campus da universidade no Monte da Caparica e os cientistas querem oferecer-lha.
Há razões para dizer que a bandeira portuguesa tem química, e bastante. A história desta bandeira começou há cerca de dois anos no laboratório do Bioscope, um grupo de investigação da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Universidade Nova de Lisboa, no Monte da Caparica. Enquanto os cientistas preparavam umas reacções químicas, depararam-se com a emissão de luzes vermelhas e verdes em compostos que estavam a analisar, que viram a olho nu com uma lâmpada ultravioleta (e ainda com um espectrofotómetro de fluorescência). Entre as luzes, alguém terá dito: “Se tivéssemos amarelo no meio, tínhamos a nossa bandeira.” E o grupo, em que tem portugueses, espanhóis, franceses, italianos, ingleses e brasileiros, decidiu fazer uma imagem com moléculas e nanopartículas da bandeira portuguesa. Não demorou muito até que estivesse pronta e agora vai ser a capa de uma revista internacional de química. O próximo objectivo é que chegue ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que visita a FCT esta sexta-feira.
O vermelho e o verde estão bastante presentes na natureza. Por exemplo, a clorofila dá a cor verde às plantas e o vermelho pode ser encontrado em muitas flores e frutas. É a pensar nestas cores da natureza que os cientistas criaram estruturas de moléculas no laboratório. E porquê? Se quisermos ver uma reacção química numa célula ou num tecido, o vermelho ou o verde são mais nítidos do que o amarelo ou o laranja. “O vermelho e o verde são duas cores que permitem, tanto por absorção como por emissão de luz, não ter problemas com o fundo”, explica Carlos Lodeiro, um dos coordenadores do grupo Bioscope e professor na FCT.
Por isso, os cientistas usam o vermelho e o verde como “sondas” fluorescentes, que são moléculas que absorvem a luz num comprimento de onda específico e a emitem noutro, que é mais longo e conhecido como “fluorescência”. Estas moléculas fluorescentes podem ser anexadas a uma molécula-alvo (como um fármaco) e actuar como um marcador para detectar a libertação desse fármaco. As sondas fluorescentes são muito usadas em estudos biológicos, biomédicos ou de controlo da qualidade ambiental. E, agora, também serviram para “pintar” a bandeira portuguesa.
Lanternas nas células
A bandeira portuguesa actual surgiu no período da implantação da república. “O cromatismo verde-rubro, tal como veio a ser adoptado pelo governo republicano em 1910, remonta ao movimento do 31 de Janeiro de 1891. Em 5 de Outubro, foi utilizado por Machado Santos na Rotunda [onde hoje é o Marquês de Pombal, em Lisboa] e, depois, em todos os quartéis e no alto do Castelo de São Jorge (ainda que a disposição das cores fosse diversa da actual, como o vermelho junto à tralha [a corda que faz movimentar a bandeira] e a parte maior a verde)”, lê-se no site da Presidência da República Portuguesa. Depois, uma comissão – integrada por personalidades como Columbano Bordalo Pinheiro, Abel Botelho e João Chagas – apresentou projectos que deram origem à bandeira actual, com o verde do lado da corda, a esfera armilar e o escudo branco com quinas azuis. Esta versão acabou por ser aprovada, juntamente com o hino português, em 1911.
Desmontemos então a química da imagem da bandeira criada em laboratório, que passou depois a ilustração. No centro, está uma bola que é uma nanopartícula e que está dividida ao meio – a metade esquerda é de prata e a direita de ouro. Depois, a nanopartícula tem associados dois compostos químicos: um na zona da prata, que emite luz verde (a fluoresceína); e outro na zona do ouro, que emite luz vermelha (a rodamina).
Além disso, estes dois compostos (a fluoresceína e a rodamina) podem ter associados fármacos que, por exemplo, são usados hoje na quimioterapia do cancro. Dentro das células cancerosas, é induzida a libertação dos fármacos, através do aumento de temperatura ou a irradiação de luz. Quando o fármaco é libertado, as luzes verdes e vermelhas (as tais sondas fluorescentes) acendem para indicar que isso aconteceu. Estas sondas são assim “lanternas” que libertam fármacos, ou que podem ainda identificar as zonas das células onde há problemas. Contudo, cada uma delas apenas pode ter uma destas duas funções.
“Temos a indicação em que lugar da célula e em que o lugar do nosso sistema biológico foi libertado o fármaco”, explica Carlos Lodeiro. “São como ‘nanoinspectores’”, refere ainda o investigador, que diz que estas sondas ainda estão a ser desenvolvidas em laboratório mas há outras semelhantes no mercado.
A equipa está também a trabalhar com inúmeros fármacos para diferentes tipos de cancro. “O principal objectivo é desenvolver novas vias de transporte de fármacos em nanomateriais que sejam mais económicos, rápidos e evitem efeitos secundários [como vómitos]”, indica Carlos Lodeiro, acrescentando que este mecanismo tem sido estudado in vitro. O investigador adianta ainda que o seu laboratório tem uma colaboração com a Universidade Autónoma de Barcelona (Espanha), onde já se começaram a investigar em ratinhos estes sistemas de libertação de fármacos. São administrados nos animais e depois observa-se onde vai parar e quais os seus efeitos. Para tal, usam-se várias técnicas de observação (como a microscopia de fluorescência confocal, que é um microscópio óptico).
São então estas sondas e as suas nanopartículas que vão estar na capa da revista de acesso aberto ChemistryOpen, em Janeiro de 2018, por proposta da equipa Bioscope, que foi logo aceite. Se os cientistas viram primeiro a emissão das cores a olho nu e depois a confirmaram com um aparelho, a imagem final da bandeira é uma ilustração. O que vemos na ilustração é assim o resultado de várias técnicas usadas em laboratório para caracterizar a estrutura das moléculas e nanopartículas, como a espectroscopia de infravermelho (para estudar a ligação das moléculas à superfície das nanopartículas), a espectrometria de massa (para determinar a massa molecular do composto químico), a difracção de raios X em pó (para ver a percentagem dos elementos químicos da amostra) e a microscopia electrónica de transmissão (para estudar o centro metálico das nanopartículas). Ou seja, não há um microscópio que nos permita ver de uma só vez esta bandeira portuguesa fabricada no laboratório.
A equipa coordenada por Carlos Lodeiro e José Luis Capelo (também coordenador do Bioscope) assina ainda um artigo científico na mesma revista sobre os avanços, nos últimos cinco anos, das sondas fluorescentes vermelhas e verdes na biomedicina ou no controlo da qualidade ambiental. “É uma revisão para as pessoas que queiram começar a trabalhar nisto, para que saibam o que está feito, quais os melhores caminhos ou que materiais existem”, explica Carlos Lodeiro, destacando que o artigo já está online.
Uma caneca para o Presidente
Falando de química, em toda esta história há ainda a questão do amor dos investigadores à bandeira portuguesa. Tal como José Luis Capelo, Carlos Lodeiro veio da Galiza para Portugal há mais de 15 anos como investigador doutorado. Ambos começaram a desenvolver a carreira científica no país e tornaram-se professores no Departamento de Química da FCT, criaram a Sociedade Científica Proteomass (dedicada à divulgação dos avanços em química e biomedicina e à formação de investigadores) e o Bioscope.
Agora quiseram homenagear este símbolo português. “Portugal é o nosso país e a nossa terra. Esta é a nossa bandeira”, expressa Carlos Lodeiro. “Queríamos honrar Portugal e todos os seus descobridores, que abriram novos caminhos de prosperidade em África, na Ásia, Europa e na América. Queremos mostrar, com a nossa bandeira, que estamos na vanguarda da ciência e da tecnologia e que competimos como qualquer outro país.”
Como tal, gostariam de entregar esta “bandeira” ao Presidente da República, que visita a FCT a propósito dos 40 anos da instituição, onde vai participar nas comemorações e tirar uma selfie com os estudantes. “Vão tentar que seja a maior selfie do mundo e que entre para o Livro do Guinness”, conta Carlos Lodeiro. Quanto ao seu grupo, prepararam-lhe uma prenda especial: uma moldura com a capa da revista, uma cópia do artigo científico, uma bandeira em tecido que reproduz a imagem da capa e uma caneca onde está impressa esta bandeira “para o Presidente tomar café”.
Mas também sabem que a agenda de Marcelo Rebelo de Sousa durante a visita estará muito preenchida. “Se tivermos oportunidade, faremos a entrega”, diz Carlos Lodeiro. Precavendo-se, já lhe enviaram um e-mail com uma carta em que os dois investigadores contam a sua história e trabalho na sua “amada Costa da Caparica”. Ainda não receberam resposta, nem sabem se conseguem entregar-lhe a “bandeira” em mãos. Caso não consigam, na segunda-feira seguirá uma encomenda para o Palácio de Belém. Mas o ideal seria mesmo oferecê-la ao Presidente no dia da visita e, quem sabe, talvez Marcelo Rebelo de Sousa até tirasse uma fotografia com esta bandeira com muita química.