"É impossível" que Eduardo dos Santos "aceite este processo de forma pacífica"
Ricardo Soares de Oliveira, especialista em assuntos angolanos, diz que há "uma tentativa de eliminação política" da família dos Santos, e que só se o ex-Presidente estiver mesmo muito debilitado é que não reagirá.
Autor do livro Magnífica e Miserável: Angola desde a Guerra Civil (editado em 2015), Ricardo Soares de Oliveira destaca que se está a assistir ao fim político da família dos Santos, o que lhes trará "consequências económicas profundas". Professor associado de Política Comparada na Universidade de Oxford (Reino Unido), diz, em respostas por escrito, ser "impossível" que José Eduardo dos Santos "aceite este processo de forma pacífica", "a não ser que o ex-presidente esteja mesmo muito debilitado".
O que significa a exoneração de Isabel dos Santos do cargo de presidente da Sonangol? É o fim do ciclo de José Eduardo dos Santos, com o afastamento da filha da empresa mais poderosa e valiosa de Angola?
A exoneração de Isabel dos Santos é o culminar de uma série de medidas contra os interesses mais próximos do ex-Presidente José Eduardo dos Santos, que começaram poucas semanas após a sua chegada ao poder. Não é necessariamente o fim do poder económico da família dos Santos, que está profundamente globalizada, até porque por ora não se fala em expropriações. Mas trata-se inequivocamente de uma tentativa de eliminação política da sua influência. Esse fim político pode, por sua vez, ter consequências económicas profundas para a família dos Santos, que dependeu sempre do acesso privilegiado a oportunidades económicas e que raramente revelou talento empresarial. A introdução de alguma concorrência na economia angolana só pode diminuir a sua influência.
A saída do seu filho Filomeno da presidência do Fundo Soberano é a peça que falta?
Sim, e parece difícil que com base nas revelações dos Paradise Papers, e da performance desapontadora do Fundo Soberano desde 2012, ele se possa manter muito tempo, mesmo para além da vendetta contra a família dos Santos. Para além disso, existem apoiantes (ou pelo menos, pessoas que não abandonaram a lealdade a Santos de um dia para o outro) do ex-Presidente em todas as instituições, que poderão também ser afectados por este processo. Resta ver a dinâmica nos órgãos da segurança.
José Eduardo dos Santos pode reagir, como presidente do MPLA?
A não ser que esteja mesmo muito debilitado, é impossível que aceite este processo de forma pacífica. O processo tem um carácter extremamente humilhante, e já se percebeu que, para além da marginalização da família dos Santos, joga-se aqui uma tentativa de culpabilização do ex-presidente (e de ilibação do MPLA) pelo legado desapontador da década do boom petrolífero.
Resta compreender o que está a acontecer dentro do MPLA. Note-se que João Lourenço não está a fazer esta mudança com base em jovens tecnocratas e indivíduos da sociedade civil: os novos homens de João Lourenço são muitas vezes os velhos homens de José Eduardo dos Santos, até ontem bajuladores. Talvez haja aqui uma conversão colectiva e muito rápida à boa governação e ao desenvolvimentismo. No entanto, é muito comum na África contemporânea que os novos presidentes tentem estabelecer o seu controlo da economia e das instituições punindo os próximos do antecessor. Há uma grande diferença entre isso e reformas genuínas. Vamos esperar para ver. Uma interpretação optimista seria que isto é a primeira fase de uma mudança sistémica em Angola, com impacto na reforma do sector financeiro, nas políticas sociais, na diversificação da economia e nas liberdades dos cidadãos angolanos. Por ora, João Lourenço beneficia de um capital político notável, tanto no exterior como internamente – até Luaty Beirão o elogia.
O que representa a saída de Isabel dos Santos, e as mudanças que estão a ocorrer, nos negócios de Portugal com Angola?
Em Angola, não vai haver retaliação massiva contra os interesses portugueses, porque a elite angolana é astuta e existem papéis que os investidores portugueses desempenham e que não é no interesse de ninguém mudar. Mas pelo menos alguns investidores, demasiado próximos do regime de José Eduardo dos Santos, vão sofrer. Durante muitos anos, essa proximidade excessiva foi apresentada por empresários e por políticos portugueses em termos de uma realpolitik muito sofisticada, porque é assim que as coisas supostamente funcionam em Angola. Na verdade, revelaram uma ingenuidade profunda ao atar-se a interesses que agora estão a ser relegados para uma posição secundária.