“É preciso pensar a cidade com todos e para todos”
O inglês Charles Landry forjou o conceito de “cidade criativa”, que se tornou dominante nos processos de revitalização urbana de muitas cidades ocidentais desde o final dos anos 1980. Olha agora para Lisboa e Porto e propõe a “cidade cívica”, feita com e para as pessoas.
“Não tenho fórmulas”, avisa de imediato Charles Landry, autoridade mundial a pensar o futuro das cidades, o uso da imaginação em contextos de revitalização urbana e obreiro do conceito “cidade criativa” no final dos anos 1980. “Mas avalio cenários por onde podem emergir métodos de planeamento urbano e examino como as pessoas podem actuar criativamente na cidade”, explica este inglês a residir actualmente em Berlim.
Mais de 500 projectos públicos e privados foram desenvolvidos em cidades de todo o mundo com o seu aval, ou da estrutura de consultoria Comedia, que fundou em 1978. Landry é consultor, escritor, investigador, criador de projectos específicos para cidades ou estratégias de longo prazo concebidas com autoridades locais ou parceiros privados. O próprio olha para aquilo que faz como alguém que ajuda a desenvolver as infra-estruturas físicas e cívicas que podem estimular a acção através de práticas inovadoras.
Já publicou mais de 200 ensaios e ajudou a reinventar cidades como Glasgow e Helsínquia. Em Glasgow, por exemplo – conhecida nos anos 1980 pela base industrial e os espaços abandonados –, Landry convenceu as autoridades de que a forma de a cidade manter um ambiente próspero e sustentável seria através de uma simbiose de políticas públicas, iniciativas privadas, actividades culturais mas, acima de tudo, uma noção de criatividade que tinha de passar por todos os sectores, inclusive os mais burocráticos.
Hoje, Landry continua a operar nas mais diversas cidades do mundo, desdobrando-se por inúmeras manifestações. O ano passado, por exemplo, foi co-curador e moderador da cimeira da rede de cidades criativas da UNESCO. Há dias esteve em Lisboa para o lançamento de dois livros: o mais recente, The Civic In A Nomatic World (2017) e A Paisagem Sensorial das Cidades, de 2012, agora editado em Portugal pela Building Ideas. A sua vinda deveu-se à Build the City, uma recente associação independente formada por um grupo de cidadãos que tem efectuado eventos como The Lisbon Seminar, convidando uma série de figuras que pensa a cidade como Landry ou o arquitecto finlandês Juhani Pallasmaa. Na base da formação desta associção está o desafio de operar estrategicamente em nome de cidades mais justas e prósperas.
Esse é também um dos propósitos de Charles Landry, que passa grande parte do seu tempo a viajar, entre palestras e projectos, olhando para as fraquezas das cidades para as transformar em forças. Provocamo-lo, dizendo que tem o melhor trabalho do mundo, porque pode reflectir à vontade sobre as cidades e interferir na sua dinâmica, sem ter de prestar contas aos cidadãos. Ri-se. “Isso é verdade, o que não significa que o meu trabalho não seja escrutinado”, diz. “Ontem alguém me perguntava se na minha vida profissional havia alguma coisa que me fizesse sentir realmente bem. E eu respondi que não ter de trabalhar directamente para alguém era motivo de grande liberdade e satisfação.”
Para isso muito contribuiu o facto de o conceito “cidade criativa” se ter tornado conhecido mundialmente. “Isso deu-me muita visibilidade, como é evidente, mas também responsabilidades acrescidas.” A partir da primeira metade dos anos 1990, o conceito propagou-se decisivamente, com Charles Landry, na Europa, e Richard Florida, nos EUA, a tornarem-se o rosto da ideia “cidade criativa”, embora o segundo com outras propriedades, assentes na capacidade de atracção da chamada “classe criativa”.
Tempos burocratizados
“Quando iniciámos as teorias da 'cidade criativa', na década de 1980, o mundo estava a transformar-se”, recorda. “Viviam-se tempos burocratizados. O sistema não permitia que as pessoas extraíssem o melhor de si próprias. E, no Reino Unido, as indústrias tradicionais estavam em processo de erosão. Foi aí que começámos a interrogar-nos sobre os recursos mais valiosos do país e chegámos à conclusão de que um dos mais distintivos eram as expressões artísticas e culturais, no sentido mais globalizante. Escrevi, então, que a chave eram os bens públicos, a participação cidadã e o desbloquear da criatividade. Tudo noções que continuam essenciais na era digital onde estamos imersos.”
Na sua formulação original, o termo “cidade criativa” centrava-se nas chamadas indústrias culturais, mas com o tempo tornou-se claro que as artes, a economia, a administração ou o sistema político acabavam por estar interligados, formando parte do mesmo ecossistema e que, por isso, as cidades necessitavam de ser inventivas em todas as dimensões. “A 'cidade criativa' não é uma noção estática, é um desafio, uma viagem transformativa.”
Há 20 anos, como hoje, não tem dúvidas de que o principal recurso são as pessoas e a possibilidade de partilha de experiências entre elas. “Será possível criar alguma coisa em que os cidadãos interajam e estejam juntos? É possível tornar as cidades mais coesas, inclusivas e densas? É possível criar equilíbrio entre o novo e o antigo e gerar condições para que as pessoas se convertam em agentes de mudança, em vez de serem só receptores passivos ou, pior ainda, vítimas dessas transformações?”
Estas são as questões que o movem. “O mundo está a mudar e é preciso repensar o papel das cidades, os seus recursos e como funciona o planeamento urbano”, afirma, “e para isso acontecer é preciso firmeza sem rigidez, ter princípios estratégicos mas expor alguma elasticidade e saber para onde se quer ir, fazendo-o com inventividade em todas as esferas, sejam culturais, tecnológicas, socioeconómicas ou organizativas”.
A cidade é nossa
Quando está no terreno nota que a interconexão entre sectores continua a ser um dos focos que levantam maior resistência, o que não o surpreende. “As pessoas não estão habituadas a pensar de forma transversal e a estabelecer ligações, muitas delas não previstas, e, no entanto, esse vínculo entre diferentes organismos e empresas ou universidades é importante porque todos esses agentes acabam por ser, em simultâneo, actores económicos, sociais, culturais ou ambientais.” E por outro lado, sublinha, “a participação cívica na gestão das cidades, a possibilidade de todos poderem participar em decisões e planeamentos, e a identificação das marcas identitárias a desenvolver são fundamentais”.
Essencial “é pensar a cidade como algo que faz parte da vida das pessoas”, reflecte. “Nesse sentido, as cidades necessitam de oferecer possibilidades de interacção entre os cidadãos, seja em bibliotecas, teatros, praças ou outro tipo de equipamentos. E aí os novos meios digitais, se utilizados com imaginação, também podem criar comunidade, embora encontrarmo-nos com o vizinho continue a ser essencial. A relação com os outros, o interesse em procurar respostas, a coexistência entre diferentes pode romper com muitas das barreiras e preconceitos. É preciso pensar a cidade com todos e para todos.”
É difícil não concordar com ele. Mas a realidade parece ir no sentido contrário. O que se vislumbra é tensão entre interesses privados e colectivos, entre quem vive na cidade e quem a visita temporariamente, entre quem habita em condomínios privados procurando refúgios de semelhança e quem vive nas franjas expondo-se obrigatoriamente às diferenças ou entre quem acumula capital e quem só consegue sobreviver. “Não poderia estar mais de acordo, as tensões são inúmeras e é por isso que não nos podemos privar de entender, negociar e experimentar. Apesar das dificuldades, acredito que onde há pessoas que se esforçam por comunicar com outras a vida é mais saudável.”
Em The Civic City in a Nomadic World proclama que vivemos num mundo nómada, caracterizado pela mobilidade, onde as pessoas se movem por obrigação, como os refugiados, ou por prazer, como os turistas. E onde circulam também, a grande velocidade, a informação, as ideias, as ideologias ou o capital, colocando em causa velhas certezas e contribuindo para um clima onde alguns se sentem confortáveis mas a maioria parece denotar alguma apreensão.
As cidades vivem sob pressão com as dramáticas transformações económicas, a desregulação financeira global ou a crescente população urbana, num emaranhado de questões que se sobrepõem e que o sistema nem sempre consegue apreender. Os problemas estão interligados e muitas vezes não são discerníveis ou não se sabe como abordá-los, porque difíceis de resolver à escala local ou mesmo nacional, como as formas mais desreguladas de capitalismo neoliberal. Resultado? “Alguns são capazes de comprar inúmeros edifícios numa cidade; e outros nem um minúsculo apartamento conseguem para alugar.”
No mundo nómada pode-se trocar, ter experiências e comunicar à escala global, tudo potenciado pelo universo digital. De repente, parece que todas as fronteiras físicas, simbólicas ou virtuais se esbatem. “Isso é muito excitante para um segmento da população, mas gera medo noutro”, reflecte Landry. “Os períodos de grandes mudanças produzem confusão, porque uma visão do mundo dá lugar a outra sem que se consiga produzir um olhar coerente e parece-me que é isso que acontece hoje em dia.”
Por norma, também nestes períodos existe a tendência para olhar para o passado. Regressam localismos, nacionalismos, proteccionismos, redes de interesses que se preservam. Em vez da abertura, um cada vez maior fechamento. Em vez da criação de novas oportunidades, a reactividade perante os problemas. E as tensões que tendem a crescer. “Mas podem ser resolvidas ou atenuadas”, defende Landry, recorrendo ao exemplo de Donald Trump, que criou nos EUA uma cisão entre os que detêm um olhar cosmopolita e quem só se sente confortável entre os seus. “E no entanto pode ser-se as duas coisas”, argumenta. “Posso sentir-me confortável em trânsito pelo mundo, conhecendo novas pessoas e trocando experiências e sentir-me igualmente cómodo no meu lugar, seja ele a minha rua ou cidade, entre os que me são próximos, desenvolvendo um sentimento de pertença e de engajamento que é muito importante.”
O gesto não é tudo, mas é um começo
Na sua visão, o que é imperativo é concentrarmo-nos mais nos pontos de contacto do que nas diferenças, mostrando desejo de envolvimento, no sentido de ser possível criar novas âncoras. “O mundo está a fechar-se. Os meus pais, que não eram judeus mas trabalhavam para uma editora judia e eram politicamente activos, tiveram de fugir dos nazis e a linguagem que vejo surgir nos nossos dias é incrivelmente perigosa”, afirma. Por isso, “os gestos são importantes, mesmo sabendo que não chegam, mas tem de se começar por algum lado. Podemos criar uma atmosfera mais generosa que encoraje as pessoas a darem mais de si e para isso é necessário transmitir sinais e criar espaços de encontro onde possamos dar-nos a conhecer”.
Às vezes é ele próprio que promove encontros em cidades onde está a operar. “É interessante e muitas vezes surpreendente, por exemplo, pôr residentes de um determinado bairro a comunicar com turistas ou semi-residentes, como fiz recentemente em Berlim. E é-o porque há muitos turistas que têm um olhar novo sobre a cidade e vêem mais-valias que os residentes não vislumbram porque estão imersos no seu quotidiano. Da mesma forma que é importante os residentes chamarem a atenção dos turistas para uma atitude ética que estes tendem a esquecer. Todos somos turistas e devemos ter isso em atenção, sendo mais conscientes e respeitáveis dos lugares que visitamos. No final, pode-se comparar perspectivas e incorporar o melhor que cada um tem para oferecer.”
Para ele, a criatividade emerge das condições adequadas para que as pessoas de todos os sectores da sociedade possam pensar, planear e agir com imaginação. “As pessoas hoje querem fazer-se ouvir. É por isso que, quando as cidades se repensam, todos os actores devem estar envolvidos: urbanistas, entidades públicas, empresas, instituições culturais, activistas ou associações. Quando as pessoas sentem que são co-criadoras do seu ambiente e co-responsáveis pelo mesmo, tende-se a alcançar um nível mais alto de sustentabilidade.”
O diálogo entre nações que ele vislumbra, a propósito dos refugiados, é o mesmo que entrevê entre cidades por causa do turismo. “São questões globais e as autoridades não podem comportar-se como se fossem pequenas ilhas.” É preciso sentar à mesma mesa interesses estatais e privados, cidadãos e turistas, com as populações a fazerem-se ouvir. “Sei que não é fácil, mas para isso é que existem moderadores e pessoas capazes de criar pontes. Olhe-se para o centro de Lisboa: está tudo a mudar e as pessoas estão confusas. No entanto, uma cidade vibrante emerge da complexidade e das diferenças.”
“Cidade criativa” ou cidade fragmentada?
Muito do que defende está longe de ser unânime. Especialmente depois do irromper da crise económica na última década, as críticas em torno dos modelos de “cidade criativa” enquanto revitalizadores de contextos urbanos aprofundaram-se. É verdade que muitos centros de cidade se renovaram e novas centralidades foram criadas, mas nas áreas metropolitanas pouco mudou, avalia quem defende que a avaliação crítica do modelo é indissociável de um renovado olhar sobre o capitalismo. Segundo esta perspectiva, a “cidade criativa” resulta numa cidade fragmentada. Em alguns casos assistiu-se a uma revolução urbana invertida, na qual quem detém capital se afirmou remetendo muita gente para as margens sociais e económicas.
As estratégias culturais têm a capacidade de regenerar centros degradados ou zonas desindustrializadas, como se viu nos últimos anos em muitas cidades de todo o mundo e também na Baixa do Porto ou nas diversas recriações de Lisboa (do Cais do Sodré ao Intendente, passando pela promessa do Beato). Mas muitas vezes o que determina essas dinâmicas nem sempre é o interesse cívico ou o benefício público, antes motivos económicos e comerciais que vão ao encontro de uma elite que, com a estetização do espaço urbano, acaba por consumir o que é associado ao seu estilo de vida específico.
Por outro lado, Landry é criticado por os seus pontos de vista estarem muitas vezes desligados de qualquer questão política ou económica. Baseiam-se numa espécie de humanismo abstracto, onde não são tidos em conta os modos de produção que podem mobilizar a cidade, nem as condições estruturais que reproduzem na actualidade as grandes desigualdades. Ou seja, existe um discurso sobre a participação de todos na construção da cidade, mas com um carácter mais afectivo do que político.
“Às vezes, chamam-me 'liberal mercantilista', coisa que não sou, mas claro que estou consciente de que as ideias devem ser constantemente reavaliadas e eu próprio não paro de o fazer. Devem existir diversos modelos de participação cívica e formas alternativas de superar as desigualdades”, reflecte Landry, acrescentando que nem sempre é possível controlar a simplificação excessiva, a instrumentalização política ou “a transformação de noções com complexidade em meros slogans como aconteceu por vezes com a 'cidade criativa'”.
De uma coisa parece estar certo. A velocidade dos acontecimentos é um factor novo, exigindo respostas adaptadas, sejam as suas ou outras. “Olhe-se para Lisboa”, diz, “é incrível a rapidez das alterações no centro, promovidas a uma velocidade tal que a cidade não tem tido tempo de adaptação. O que cria um paradoxo: quem decide receia que a onda passe, porque os lugares que ganham novas centralidades podem mudar num ápice, por outro não podem dizer que sim a tudo, porque poderão estar a contribuir para que o potencial de atracção se esgote rapidamente.”
Aquilo que se passa no Porto e em Lisboa corresponde a um cenário transversal a muitas outras cidades por esse mundo fora. Os processos e as dinâmicas são semelhantes, de Barcelona a Berlim ou Copenhaga. A surpresa, expõe Landry, é essa atractividade ter acontecido tardiamente em Portugal, o que pode ser agora um elemento positivo. “Lisboa atrai pessoas de todo o mundo, o que normalmente acarreta um acentuar de diferenças socioeconómicas, para além da inflação dos preços da habitação e da diminuição do pequeno comércio, porque as grandes marcas querem estar no centro. Existe aqui uma oportunidade de pôr todos os agentes a discutir com imaginação, tentando implementar políticas no sentido de preservar o que a cidade tem de melhor, e tem muitas coisas boas, e reinventar outras.”
O nível de atractividade de Lisboa ou Porto não será sempre o mesmo, logo o futuro de qualquer cidade não pode depender quase em exclusivo do turismo. “É preciso que cada cidade imagine não apenas um, mas vários vectores de desenvolvimento, até porque a competição é enorme.” No horizonte estão outras cidades que desejam ser a próxima Lisboa. Charles Landry aposta em Atenas. Mas Zagreb, Belgrado e Ljubljana também têm boas hipóteses.
Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO