Elvas não esqueceu os seus judeus
O antigo Açougue Municipal foi, possivelmente, a sinagoga de Elvas no tempo em que os judeus eram cerca de um quarto da população. Hoje ajuda a recordar algumas das famílias mais poderosas e influentes da terra. E até o chocolate em barra entra nesta história.
Caminhamos pelo centro de Elvas, a zona chamada da Judiaria Velha, ruas estreitas, onde os carros têm dificuldade em passar, e só precisamos de imaginar como seria há alguns séculos. Vamos até à Idade Média e, de repente, as ruas animam-se numa azáfama, homens, mulheres, crianças, todos pertencentes à comunidade judaica da cidade, às compras, a caminho de casa, alguns dirigindo-se para a sinagoga, outros para o trabalho nas oficinas de ourives, no boticário ou noutros comércios.
Seria assim Elvas provavelmente desde o período islâmico, a partir do século X, admite Rui Jesuíno, responsável pelo Património e Turismo na Câmara Municipal, estudioso da história dos judeus elvenses e autor do livro Elvas – Histórias do Património, que reúne crónicas sobre a cidade.
Logo no século XIV ficou famoso um judeu, de nome Vidal, pelos seus poemas, “cantigas que ficaram célebres e que estão hoje transcritas, embora incompletas, nos cancioneiros da Biblioteca Nacional e da Vaticana” e que “demonstram claramente uma mescla da cultura hebraica com a cultura moçárabe”, lê-se numa das crónicas, em que Rui transcreve a declaração de amor de Vidal a “ua dona d’Elvas/que me trage tolheito”.
Conversamos com Rui enquanto nos dirigimos para o edifício do Açougue Municipal, no centro da Judiaria Velha, que acaba de ser inaugurado como espaço dedicado à história judaica depois de ter sido identificado (por Rui, a sua colega Tânia Rico e a já falecida professora de ambos Carmen Balesteros), como o local da antiga sinagoga que há muito tempo procuravam localizar.
Com o decreto de expulsão dos judeus de Portugal no final do século XV, as perseguições, a fuga de muitos e a transformação dos que ficaram em cristãos-novos, os vestígios dessa presença tornaram-se cada vez mais vagos, quase como se eles nunca tivessem existido e não tivessem tido a grande importância que tiveram para a cidade.
Rui Jesuíno escreve que, apesar de tudo, “muitas famílias por cá ficaram, embora muitos sejam condenados a penas duras e outros à morte na fogueira”. Calcula-se que “no, século XVII, pelo menos um quinto dos elvenses fossem cristãos-novos”, podendo-se encontrar nos arquivos “mais de 1100 processos da Inquisição relativos aos judeus de Elvas”.
É essa injustiça que hoje se tenta compensar de alguma forma com a abertura ao público da antiga sinagoga que será também a Casa da História Judaica de Elvas. Aqui vamos reencontrar algumas das personagens com as quais nos poderíamos ter cruzado nas ruas da Judiaria Velha há muitos séculos.
Se a maioria se perdeu no anonimato, há, contudo, nomes que se destacam, famílias que, pela sua influência, conseguiram resistir nas memórias da cidade. Uma delas é mesmo nome de rua: Botafogo. Vamos até lá, guiados pela história que Rui Jesuíno conta numa das suas crónicas.
“Os Botafogo foram uma importante família de judeus e cristãos-novos elvenses que deu nome à rua onde viviam, junto à Biblioteca Municipal: a Rua do Botafogo. Tinham lá um palácio com um pátio, à direita de quem desce, que se havia de transformar em quartel no século XVII e em cinema e casas particulares no século XX”, escreve. Antes de ganhar o nome dos Botafogo, o que aconteceu no final do século XVI, a rua chamava-se da Guedelha.
Esta família vai ligar a história de Elvas à do Rio de Janeiro e ao hoje famoso bairro do Botafogo, explica ainda o historiador. João Pereira de Sousa Botafogo, nascido em 1540, perseguido pela Inquisição, emigrou para o Brasil em 1572, tornando-se capitão-mor da capitania de São Vicente e mais tarde governador. Foi ele quem deu o nome ao bairro do Botafogo, na zona onde se instalou em 1590. Sabe-se ainda que casou duas vezes, teve onze filhos e morreu em 1627.
Calcula-se que na época medieval, os judeus de Elvas constituíssem um quarto da população da cidade. Dado o seu número elevado, existiam duas judiarias, a Velha (Praça da República e ruas em redor) e a Nova (a Oeste da zona da Alcáçova). O que Rui Jesuíno constata é que se a Velha já era assim chamada no século XIV, isso significa que a presença dos judeus teria começado bastante antes, possivelmente no século X, no período islâmico.
Entramos no edifício do antigo Açougue Municipal, na Rua dos Açougues, onde se crê que terá sido a sinagoga da Judiaria Velha. Rui Jesuíno sublinha que não foi encontrada a pedra da fundação, por isso a prudência leva a que seja apresentada como “possível sinagoga”, embora integre já a Rede de Judiarias de Portugal.
Foi em 2015 que, com financiamento dos EEA Grants, começaram as escavações no local (que estava a funcionar como espaço de reservas do Museu de Arte Contemporânea de Elvas) e, graças a elas, surgiram à vista mais seis colunas, que se somaram às seis que já eram visíveis. “As doze colunas correspondem às doze tribos de Israel”, explica, “e é evidente que estes três arcos góticos são monumentais de mais para um açougue”. Feitas as medições, os investigadores concluíram que esta é “a maior sinagoga medieval” do país.
Outro facto que veio ajudar à convicção do que era o local foi a presença de água, essencial para o culto, no que resta de uma cisterna localizada num pátio particular ao lado da sinagoga. Esta, julga-se, terá sido maior, provavelmente o dobro, mas não é possível alargar as escavações porque de ambos os lados existem casas particulares. Foi possível, contudo, deixar à vista no interior aquele que é o único pedaço sobrevivente do chão original.
Tudo isto só ficou evidente depois das escavações porque o espaço, adaptado no século XVI pelo arquitecto Francisco de Arruda (o mesmo da Torre de Belém, em Lisboa), tinha sofrido muitas alterações, com a construção de pequenas “capelas” laterais usadas para os vários comércios no “açougue” (que, na verdade, significa pequeno mercado, onde se vendia carne mas também outros alimentos). A instalação no lugar da sinagoga de um sítio onde se vendia carne de porco e se deixava correr o sangue era, aliás, uma forma de dessacralizar o espaço, numa mensagem clara para os cristãos-novos.
A descoberta do chocolate em barra
Voltemos então à história das famílias judaicas de Elvas. “A mais rica é a dos Gomes da Mata Coronel.” Rica e muito poderosa, dado que Abraham Senior (o nome que tinha antes de ter sido forçado a tornar-se cristão-novo) era, em Segovia, “um intelectual e político que trabalhava directamente com os Reis Católicos como o maior arrecadador de impostos de toda a Espanha”. Uma posição que, segundo alguns historiadores, fazia dele o homem mais rico da Península Ibérica no final do século XV, tendo sido financiador dos Reis Católicos nas guerras para a expulsão dos mouros da Península e “até da viagem de Cristovão Colombo à América”.
Depois da morte de Abraham (que adoptou como nome cristão o de Fernão Peres Coronel), a família dispersa-se e alguns vêm para Portugal, tendo o seu neto Tristão Peres Coronel vindo instalar-se em Elvas, onde a família se tornou muito influente. O bisneto de Abraham, Luís Gomes de Elvas Coronel, acabaria por mudar o nome para Luís Gomes da Mata, comprou o ofício de correio-mor do Reino e “passou a administrar todos os correios de Portugal”, tendo construído o Palácio do Correio-Mor em Loures e a Quinta do Correio-Mor em Elvas. “Ainda hoje”, escreve Rui Jesuíno, “descendentes desta família estão entre os mais ricos dos Estados Unidos da América, agora com o apelido Colonel”.
Curiosamente, segundo as investigações do historiador, os judeus de Elvas estão também ligados à história do chocolate em barra. “Foi algo que descobri recentemente. Até ao início do século XVII, o chocolate era bebido, depois foi introduzido o açúcar e em meados do século XVII começa a desenvolver-se em Baiona, no país basco francês, o chocolate em barra.”
O que Rui descobriu foi que “os apelidos são de famílias judias de Elvas”. Entrou em contacto com investigadores em Baiona e eles confirmaram que foram judeus portugueses que se instalaram no bairro de Saint-Esprit e começaram a vender o chocolate em barra, embora não pudessem confirmar qual a sua origem exacta em Portugal.
Mas não são apenas as colunas, agora novamente visíveis, da antiga sinagoga que nos recordam a história dos judeus de Elvas. Em vários edifícios da cidade — e a Câmara disponibiliza um mapa para quem estiver interessado em fazer esse percurso — vêem-se marcas de cruzes que identificam as casas dos cristãos-novos.
“Faziam-se cruzes nas ombreiras das portas para cristianizar a casa. Temos mais de 20 dessas cruzes”, uma delas, muito discreta, na casa do irmão do médico judeu Garcia da Horta, situada na Praça da República. E essa foi uma prática que se prolongou no tempo. “Na Real Fábrica de Chapéus criada por Jácome Ratton e vendida por ele a outro francês, que era judeu, há também um cruciforme, feito já no século XVIII, quando os cristãos-novos já não eram assim denominados.”
E, num edifício apalaçado da Rua dos Falcatos, existe mesmo uma mikveh, os banhos usados pelos judeus para o ritual da purificação — que, não se sabe como, sobreviveram a todos os esforços para fazer desaparecer para sempre as marcas da existência dos judeus de Elvas. Tal como a velha sinagoga, esquecida durante 500 anos e hoje redescoberta para contar uma história que a cidade já não quer apagar.
Sinagoga de Elvas
Para já, as visitas têm que ser solicitadas ao posto de turismo. Tel.: 268 622 236.
Debaixo do branco, Elvas é colorida
Quando começaram a trabalhar nas paredes do antigo Açougue Municipal, hoje identificado como sendo muito provavelmente a antiga sinagoga de Elvas, os técnicos da Câmara descobriram os frescos nas paredes, que usam a técnica do marmoreado, muito popular sobretudo nos séculos XVIII e XIX, explica Rui Jesuíno, responsável do Município para o Património e Turismo.
O mesmo tem acontecido noutros edifícios da cidade à medida que vão sendo intervencionados. “Mesmo em casas simples encontram-se estes marmoreados, tanto no interior como nas fachadas. Ou então, na parte de baixo, era usado o mármore e mais para cima, onde já não era tão visível, o marmoreado. Havia pessoas que tinham dinheiro para usar mármore, mas os que não tinham recorriam a esta técnica.”
A generalização do uso da cal branca acontece com o Estado Novo, que “quis higienizar os centros históricos”. Antes disso, afirma Rui Jesuíno, as pessoas misturavam corantes na cal e a cidade tinha um aspecto muito mais colorido, que hoje se começa a recuperar num ou noutro edifício. “A cor mais usada era o ocre militar, mas também havia bastantes edifícios em bordeaux, que é o óxido de ferro, e alguns em azul, embora menos, porque o azul era o corante mais caro.”
No próximo ano deverá abrir em Elvas uma escola de Artes e Ofícios, fruto de uma parceria da Câmara Municipal com a Associação In-Cidade, que se destina a criar mão-de-obra especializada na recuperação do património e de muitas destas técnicas.
O forte inexpugnável
Visto do ar parece uma estrela de quatro pontas colocada sobre um quadrado, pousado sobre outra estrutura e, finalmente, uma última que serve de base a todo o conjunto. O Forte da Graça, em Elvas, construído numa colina elevada, um ponto estratégico que, se capturado por inimigos, se tornaria uma ameaça perigosíssima para a cidade, tinha que ser inexpugnável. E foi assim que foi planeado.
Antes da construção do forte, que aconteceu entre 1763 e 1792, existiu naquela montanha a Ermida de Nossa Senhora da Graça, mandada erguer pela bisavó de Vasco da Gama. Conta Rui Jesuíno no livro Elvas – Histórias do Património que Catarina Mendes, mulher de Estêvão Vaz da Gama, ficou viúva com 18 anos e com um filho ainda bebé, a que chamou Vasco da Gama — nome que passaria para o neto deste, o futuro famoso navegador.
A igreja desapareceu quando foi tomada a decisão de construir o forte. Não havia dúvidas de que a montanha constituía uma ameaça para os habitantes — foi, aliás, nela que se instalaram as tropas espanholas durante o cerco na Batalha das Linhas de Elvas, com duas bocas de fogo viradas para a cidade.
A ordem de construção do forte partiu do britânico Conde de Lippe, ao qual o Marquês de Pombal confiara a reorganização profunda do Exército português. Rui Jesuíno conta no seu livro: “Considerado, por muitos, um génio na arte militar”, chega a Portugal em 1762 e “encontra um cenário desolador: um exército impreparado, feito de gente pobre, muitos descalços, oficiais ignorantes nas artes militares e salários constantemente em atraso.”
Quando vai avaliar as fortificações portuguesas, percebe a fragilidade da montanha junto a Elvas e dá ordem para a construção do forte, cujo projecto é confiado primeiro ao arquitecto francês Étienne e posteriormente ao seu compatriota Guillaume Louis Antoine de Valleré.
A obra estava longe de ser fácil. Era preciso garantir que o forte não seria conquistado pelo inimigo — se isso acontecesse seria fatal para Elvas. Mas para que fosse realmente inexpugnável, precisava de ter capacidade para albergar muitos homens e muito armamento (com grande construção subterrânea, dado encontrar-se no topo de uma montanha, o que limita o espaço), para além de uma enorme cisterna que garantia o abastecimento de água durante seis meses.
O chamado reduto central, a área mais protegida do forte, tem uma capela, um piso intermédio que corresponde ao antigo Hospital Militar e, no topo, a encantadora Casa do Governador, pintada de amarelo e com três pisos redondos e uma vista privilegiada sobre tudo à volta.
Trabalharam na obra seis mil homens e, conta Rui Jesuíno, muitos deles morreram — de tal maneira que, em 1770, “o médico do Hospital Militar de Elvas pediu aumento de salário porque no seu hospital, para além de ter que assistir aos militares enfermos da cidade de Elvas […], tinha agora também que acudir aos operários da obra e, desta forma, diariamente assistia a mais de 300 pessoas, o que era incomportável”.
Continuamos hoje — depois de o forte ter sido aberto ao público, após obras de recuperação iniciadas em 2014 e que puseram fim a décadas de total abandono — a espantar-nos com a gigantesca estrutura e todo o projecto defensivo, feito de fossos e de muros altos, de frestas e parapeitos, guaritas, canhoeiras e casamatas. E de longos corredores que rasgam o forte de um lado ao outro, cruzando-se e abrindo outras passagens, como se estivéssemos num labirinto.
Temos por momentos a sensação de ter sido transportados para o romance de Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros, em que uma guarnição militar particularmente bem preparada e seguindo rituais com a precisão de um relógio suíço garante a defesa de um forte frente ao deserto e perante um inimigo que nunca chega a aparecer.
Aqui o inimigo existia e Forte da Graça terá tido, efectivamente, um papel dissuasor. Mas com o passar do tempo a sua função mudou e foi transformado numa prisão. A galeria de tiro com mais de 1700 metros de comprimento passou a ser usada para celas a partir da guerra civil de 1828 a 1834. “Os principais implicados nos golpes que se seguiram até 1851 eram presos neste forte de Elvas”, escreve Rui Jesuíno. E, no início do século XX, com a implantação da República, o Forte da Graça passa a ser uma prisão política, mantendo-se como tal durante toda a ditadura, até 1975.
Forte da Graça
Horário: de terça a domingo das 10h às 17h; encerra à segunda-feira.
Preços: 5€, visita guiada 8€. Visita guiada especial com inscrição prévia (acesso à cisterna e contraminas aberto quatro vezes por ano) 15€.