Curdos perderam uma batalha mas a guerra pelo Curdistão não acabou

Maior povo sem estado, espalhado pela Síria, Turquia, Iraque e Irão, os curdos ainda podem sair a ganhar de um futuro pós-Daesh.

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Barzani apostou alto com o referendo e perdeu Gailan Haji/EPA

Os últimos anos de caos na Síria e no Iraque ofereceram aos curdos a melhor oportunidade de sempre para voltarem a sonhar com o seu Curdistão, de Rojava (Curdistão Ocidental, na Síria) a Rojhelat (Leste, no Irão). O farol já existia desde os anos 1990, e chama-se Região Autónoma do Curdistão (Sul), no Norte do Iraque.

Enquanto os curdos sírios ocuparam o vazio deixado por Bashar al-Assad, atarefado com zonas mais importantes da Síria, os iraquianos, viram-se reforçados pela sua capacidade de fazer frente ao Daesh, em 2004, altura em as Forças de Segurança de Bagdad se esfumaram e permitiram que os jihastas tomassem vastas zonas, incluindo a enorme Mossul.

Também entraram em Kirkuk, a cidade rica em petróleo e em diversidade étnica e religiosa que Saddam Hussein arabizou. Organizados e bem armados, os peshmerga (combatentes curdos) depressaram expulsaram o Daesh e ocuparam a cidade que sempre consideraram parte de um futuro Curdistão independente.

Úteis como nunca aos Estados Unidos, os curdos sírios e iraquianos tornaram-se nos seus principais aliados no combate aos radicais. Na Síria, gozam ainda de protecção russa. Face a este cenário, Masoud Barzani, chefe de Estado do Curdistão Iraquiano desde 2005 (na verdade, permaneceu no poder depois do fim do mandato, em 2015), decidiu avançar para um referendo sobra a independência da região, incluindo Kirkuk. Iraque, Irão, Turquia, EUA, Reino Unido, ONU… todos se opuseram, mas votou-se na mesma, a 25 de Setembro.

Na prática, Barzani acreditava que ia melhorar a sua posição negocial com Bagdad, enquanto distraía a sua população da crise financeira e de corrupção (e do facto de se ter esquecido de abandonar o cargo).

Perdeu a batalha: os curdos votaram de forma esmagadora e escolheram, obviamente a independência, mas as ameaças de encerramento de fronteiras e embargo comercial obrigaram a um recuo. Literal no caso de Kirkuk, entretanto tomada por forças leais ao primeiro-ministro iraquiano, Haider al-Abadi, que já nomeou um árabe como novo governador. Barzani, entretanto, também saiu de cena, citando um velho ditado segundo o qual “os únicos amigos dos curdos são as montanhas”.

Não será tanto assim, mas os curdos acreditam mesmo estar a ser atraiçoados. Os EUA “não têm desempenhado um papel neutral na resolução das disputas entre Erbil [capital da Região Autónoma do Curdistão] e Bagdad”, acusou esta segunda-feira o primeiro-ministro curdo, Nechirvan Barzani. Bagdad, afirma, está a violar a Constituição iraquiana ao querer negociar individualmente com as províncias da região (Erbil, Sulaymaniyah e Dohuk) em vez de o fazer com o seu governo – a Constituição, adoptada em 2005, reconhece a região autónoma.

Bagdad, acusa ainda Barzani, voltou a diminuir a parcela do orçamento que cabe ao Curdistão (17%), ao mesmo tempo que um dos responsáveis do parlamento curdo para a Energia e Recurso Naturais diz que os curdos perderam milhões nas últimas semanas: “Perdemos 50% de todos os nossos lucros do petróleo desde que o Exército iraquiano chegou”, afirma Dilshad Shaaban, numa referência à reocupação de Kirkuk.

Rússia, Turquia e despojos

A Turquia, que desenvolveu relações comerciais muito próximas com o Curdistão iraquiano desde a queda de Saddam, sem se coibir de bombardear as montanhas iraquianas quando quis castigar o PKK (grupo armado de curdos turcos envolvidos há décadas numa guerra com Ancara), passou este fim-de-semana outra fronteira, a da Síria, para combater as Forças Democráticas da Síria (grupo apoiado pelos EUA e constituído essencialmente por curdos).

A ideia turca será construir uma ponte sobre um ribeiro e erguer um posto de controlo militar – tudo isto em Afrin, uma das regiões da província de Alepo, onde os curdos governam sem oposição desde 2002, numa zona historicamente disputada entre a Síria e a Turquia. Notícias que deverão estar na agenda dos presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan, de passagem por Sotchi. É a quinta reunião do ano entre os aliados de conveniência e já se esperava que fosse marcada pela oposição turca à participação dos curdos num “congresso de diálogo sírio” que Putin queria organizar dia 18 (será certamente adiado).

Rojava já não esconde que é um projecto de futuro e que nunca se voltará ao cenário pré-revolução síria, em 2011. “Porque é que organizámos o referendo? Porque estávamos desapontados com a forma selectiva como a Constituição é aplicada”, diz Barzani, sugerindo que a independência não seria sequer uma opção se os curdos acreditassem num destino melhor dentro do Iraque. Uma meia verdade que não esconde um futuro cada vez mais próximo – aquele que se inicia no dia em que o Daesh não controlar nem mais um metro de território e começar o combate pelos despojos. 

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