A liga pirata que fez de Gabo um adepto de futebol
Fora do alcance da FIFA, a liga colombiana foi um “El Dorado” para muita “estrelas” dos anos 1940 e 1950 e converteu Gabriel Garcia Marquez à causa da bola.
Às vezes basta um jogo. Gabriel Garcia Marquez também só precisou de um para escrever isto: “Acho que não perdi nada com este irrevogável ingresso que hoje faço — publicamente — na santa irmandade dos ‘hinchas’ [adeptos]. O que desejo agora é converter alguém.” Antes de Arcádios e Aurelianos, de Florentino e Fermina, quando era um jovem jornalista, Gabo passou a ser um crente da bola quando viu um jogo da liga colombiana, que, no final dos anos 1940 e primeira metade dos anos 1950, era o melhor campeonato de futebol do planeta.
Durante meia-dúzia de anos, foi o “El Dorado” para jogadores como Alfredo di Stéfano e outros grandes da altura, mas também foi uma liga pirata que saqueava clubes de outros campeonatos sem fazer perguntas. Como Di Stéfano, que viria a tornar-se num dos melhores jogadores de todos os tempos, foi parar à Colômbia (e chegou a ser internacional colombiano), é uma pequena parte da história deste “El Dorado” que não é uma lenda e que surgiu num contexto de convulsão social e política misturada com a discussão amadorismo versus profissionalismo no futebol.
Na altura, o verdadeiro poder estava nas ligas regionais, entrincheiradas no amadorismo e sem vontade de ceder a posição, mas acabou por haver um acordo e, em 1948, dez equipas, a troco de mil pesos colombianos, participaram na Dimayor, o primeiro campeonato profissional; o Independiente Santa Fe, de Bogotá, foi o primeiro campeão. Mas no ano seguinte voltaram as discussões, que levariam o organismo federativo a desligar-se da recém-criada liga. Sem um organismo a quem responder, e fora da alçada da FIFA, a Dimayor tinha a liberdade para fazer o que quisesse, com o apoio do governo, que olhava para o futebol como uma forma de aplacar a violência declarada entre os seus partidários conservadores e a oposição liberal — o conflito ficou para a história como “La Violencia” e provocou cerca de 200 mil mortos entre 1948 e 1958.
Pouco depois, começaram os raides e os primeiros alvos foram os clubes argentinos, que tinham eles próprios de lidar com uma greve generalizada dos jogadores. O Millonarios de Bogotá, clube formado por gente rica, tomou a dianteira no saque e o seu primeiro alvo foi Adolfo Pedernera, avançado do Huracán que tinha sido a “estrela” de um grande River Plate conhecido como “La Maquina” e que, no limbo da paralisação dos jogadores, aceitou sem hesitar a mala cheia de dinheiro que “Cacho” Aldabe, seu antigo treinador no River, tinha levado para o convencer. Para o Huracán, não houve mala de dinheiro nem qualquer satisfação.
Pedernera viajou de imediato para Bogotá, foi recebido por cinco mil adeptos no aeroporto e no dia seguinte foi apresentado em dia de jogo. Não jogou, mas o estádio encheu só para ver aquele que era conhecido como “El Maestro”. Quando ficou em forma, Pedernera mostrou-se em patamares muito superiores em relação aos seus colegas de equipa e só ele não chegava, e foi o próprio jogador a regressar à Argentina para saquear o seu antigo clube. Na viagem de volta, trouxe consigo as “estrelas” dos “millonarios” de Buenos Aires, o médio Nestor Rossi e o avançado Alfredo di Stéfano, a “Flecha Loira”.
O Millonarios de Bogotá seria o primeiro campeão do “El Dorado” em 1949, com uma equipa que ficaria para a história como o “Ballet Azul”, e outras equipas seguiram-lhe o exemplo. O Deportivo de Cali, por exemplo, foi um dos primeiros a usar as mesmas armas, recrutando praticamente toda a selecção do Peru. Em Barranquilla, o Atletico Junior foi ao Brasil buscar o talentoso e problemático avançado Heleno de Freitas, que tinha brilhado com o Botafogo e que liderava o ataque do Vasco da Gama, depois de uma passagem pelo argentino Boca Juniors. Heleno ficou convencido com um prémio de 15 mil dólares, mais dois mil por mês, e mudou-se para a cidade no norte da Colômbia, costeira tal como o seu Rio de Janeiro.
E assim chegamos a Junho de 1950, e a um jogo em Barranquilla entre o Atletico Junior de Heleno de Freitas e o “Ballet Azul” dos craques argentinos. O jornal El Heraldo destacou para o jogo um jovem jornalista de 23 anos chamado Gabriel Garcia Márquez. “Como era um jogo mais sonhado que todos os outros, tive de ir cedo para o estádio. Confesso que nunca na minha vida tinha chegado tão cedo a parte nenhuma e que de nenhuma parte saí tão cansado”, escrevia “Gabo” na crónica a que deu o título “El juramento”.
Hoy cumpliría 90 años una de las personas más influyentes de Latinoamérica: Gabriel García Márquez, amante del fútbol e hincha del #Junior ?? pic.twitter.com/KOoQ7aRt4k
— Pasión Fútbol (@PasionFutbolFC) March 6, 2017
Foi este o jogo que transformou o escritor colombiano num “hincha” do Junior Barranquilla — clube que o homenageou quando morreu em 2014. Falou de Heleno como um potencial “extraordinário autor de novelas policiais”, pelo “seu calculismo, os seus tranquilos movimentos de investigador e os seus desenlaces rápidos e surpreendentes”, e referiu-se ao “grande Di Stéfano” como alguém que “sabe muito de retórica” — ganhou o Atletico Junior por 2-1, com um golo de Heleno. E assim, aquele que receberia o Prémio Nobel da Literatura em 1982, viu-se convertido à “religião dominical do futebol”. Mas esse ano não seria de nenhum deles, seria do Deportivo Caldas
A liga pirata continuou por mais uns anos e estendeu as suas redes para lá da América do Sul. Em 1951, com 18 equipas, o talento estrangeiro também já vinha da Europa. Segundo números da revista Blizzard, entre os 440 jogadores inscritos, apenas 153 eram colombianos. O maior contingente estrangeiro era argentino (133), seguido dos peruanos (49), mas também havia paraguaios, húngaros, costa-riquenhos, brasileiros, ingleses, chilenos, equatorianos, panamianos, um italiano, um espanhol, um checoslovaco, um romeno, um jugoslavo e um austríaco.
Depois do soluço de 1950, a equipa de Bogotá voltou aos títulos e a sua fama valeu-lhe um convite para jogar em 1952 no torneio do 50.º aniversário do Real Madrid, com uma grande exibição de Di Stéfano, que, um ano depois e muitos embróglios pelo meio, se fixaria em Madrid e seria um dos maiores de sempre do futebol mundial. Simbolicamente, a saída de Di Stéfano foi como que o fim do “El Dorado” colombiano, mas, na verdade, já havia um acordo para a liga se alinhasse com as regras da FIFA e deixasse de ser pirata. Algumas décadas depois, haveria de acontecer um segundo “El Dorado” no futebol colombiano chamado “narcofutebol”.