O caminho mais duro é o que ainda falta
A 10 de Novembro de 2015 assinavam-se três acordos bilaterais, entre o PS e o BE, o PS e o PCP e o PS e o PEV, que têm permitido a António Costa governar em minoria. Mas a legislatura só termina em 2019.
O sucesso que transcendeu as expectativas dos próprios nestes primeiros dois anos pode dificultar o caminho que falta percorrer até ao fim da legislatura. É essa convicção de Pedro Adão e Silva, comentador e professor no ISCTE. “Uma parte das dificuldades para a frente resulta do sucesso até aqui, porque o compromisso e a capacidade de entendimento tinha uma base muito concreta e que assentava no contraste com a experiência governativa anterior", explica.
Para a frente, a devolução de rendimentos deverá perder o lugar central o que, em vez de ajudar o Governo na sua relação com os parceiros, tenderá a dificultá-la. Para Adão e Silva “os pontos de entendimento “serão bem menores e já não funcionará tão bem o contraste com o governo anterior”.
Nas áreas sociais, por exemplo, nas quais “à partida haveria maior convergência, tem havido mais divergências, e nas áreas orçamentais e financeiras, onde à partida haveria mais divergência, tem havido mais compromisso”, diz, dando como exemplo o caso das pensões, em que houve uma “cedência do Governo” para o aumento das pensões, mas não para aumentar a “equidade”, o que implicaria mexer nas pensões mínimas. Há, por isso, “interditos” que continuarão até ao final da legislatura.
Perante este cenário, e o facto de o Presidente da República ter acrescentado o combate aos incêndios como um dos pontos de avaliação do Governo, para Adão e Silva a “geringonça tal como existe não é repetível. Porque a repetir-se teria de ser muito diferente do ponto de vista político e programático”, com maior envolvimento dos parceiros e com outras matérias em cima da mesa.
Prioridades das esquerdas
Os partidos não parecem temer o que há para vir, embora o bloquista Francisco Louçã admita que um eventual futuro acordo será feito com outra pressão, não a do tempo curto como em 2015, mas a que vem dos resultados alcançados por esta solução de Governo.
“A prioridade social é a saúde”, assume Louçã que – apesar de deixar claro não falar em nome do Bloco de Esquerda, nem da direcção do partido – lá embarca no desafio lançado pelo PÚBLICO de traçar algumas daquelas que poderiam ser as prioridades das esquerdas nos próximos dois anos. Para o economista, é urgente a contratação de mais profissionais, a aquisição de equipamentos, e a revisão das Parcerias Público-Privadas.
Apesar de, no acordo firmado em 2015 entre BE e PS, ter ficado plasmada a necessidade de reforçar o Serviço Nacional de Saúde “pela dotação dos recursos humanos, técnicos e financeiros”, o bloquista considera que ainda há caminho para trilhar nesta área.
Assim como no sector dos transportes públicos: “O metropolitano foi muito degradado, há aí imenso trabalho a fazer”, diz, dando como exemplo a necessidade de baixar o preço dos passes.
A discussão de medidas fiscais que garantam que os rendimentos são taxados de forma justa e igualitária, sem beneficiar o grande capital, é outro caminho que Louçã vê com bons olhos, mesmo que conte com resistências do Governo.
Em 2015, o programa do BE já propunha uma “revolução fiscal para acabar com a punição do trabalho”. Tal passava, entre outros aspectos, pela criação de um imposto sobre grandes fortunas; por uma taxa agravada para bens de luxo; e por uma taxa sobre transacções bolsistas e dividendos aos accionistas.
Se, no ano passado, o BE conseguiu levar avante o célebre “imposto Mortágua”, sobre o património acumulado de valor superior a 600 mil euros, este ano o aumento da derrama de IRC para empresas com lucro tributável superior a 35 milhões de euros passou para o debate do Orçamento do Estado na especialidade. O Governo torce o nariz, teme que ponha em causa a dinâmica económica.
Questionado sobre se nova legislação relativa a offshores também devia ser uma prioridade das próximas negociações à esquerda, Louçã – que insiste que “a liberdade da circulação secreta dos capitais é um perigo para a democracia” – responde que tal deve ser uma iniciativa do Governo, a avançar “o mais depressa possível” e independentemente da pressão do PCP ou do BE.
Em 2015, o BE propunha uma vasta lista de medidas, tais como: obrigatoriedade de publicação pelas instituições financeiras e grandes empresas de toda a estrutura corporativa; criação de um registo público dos beneficiários últimos de todos os veículos, sociedades, trusts e estruturas legais equivalentes a operar no país; proibição da realização de transacções financeiras com entidades cujo beneficiário último seja desconhecido ou localizadas em jurisdições offshore não cooperantes; proibição de contratação pública com empresas que tenham ligações ou integrem na sua estrutura corporativa empresas sediadas offshore ou com esquemas de planeamento fiscal agressivo.
Louçã reconhece que, se todas estas medidas – da Saúde aos transportes, passando pelas fiscais – avançassem nestes dois anos, seria uma vitória. Mas também sabe que há uma pedra no sapato chamada Bruxelas. Que impõe ginásticas financeiras, que mantém uma gestão apertada e uma “pressão orçamental muito forte”.
Foi a eurodeputada do BE, Marisa Matias, quem há cerca de um ano defendeu ser “necessário repensar novos termos” do acordo. Mas a ideia não teve eco. Louçã considera a atitude prudente. Por isto: ainda há matérias complexas que importa assegurar, tais como questões laborais, que incluem a protecção dos chamados recibos verdes e a alteração de regime contributivo que lhes é aplicado, ou mesmo o aumento do salário mínimo nacional.
Apesar de entender que não deve haver novos acordos nestes próximos dois anos, o docente também considera que os orçamentos são insuficientes para traçar todo o mapa de orientação política. É por isso que defende que, além do orçamento, devem ser definidas outras prioridades – até porque há questões que nem sequer são orçamentais.
Foi o próprio Louçã quem, há pouco mais de uma semana, escreveu no PÚBLICO: “Nas próximas legislativas, a haver novo acordo de convergência, ele terá de responder já não à emergência da salvação do país depois da troika, mas antes a um projecto económico e social para o longo prazo em que sejam enfrentadas a ganância dos mercados e as dificuldades europeias”. Apesar da afirmação, o bloquista considera prematuro elencar um caderno exaustivo de medidas que fariam parte desse eventual novo acordo. 2019 é um futuro que ainda pode dar muitas voltas.
Mas olhando para esse futuro, Louçã não vê em 2019 um contexto europeu mais favorável para Portugal, com as taxas de juro a subirem. Mas também é por isso que considera a reestruturação da dívida, eternamente defendida pelos partidos à esquerda do PS, uma “questão política de enorme actualidade”, “mais importante” até “nos próximos dois ou três anos”. Mas também sabe que há pouca abertura na União Europeia para tal e que até o primeiro-ministro, António Costa, já disse não esperar maiores facilidades do futuro governo alemão para que este passo seja dado.
E a dívida, senhores?
A questão da dívida é também fundamental para os comunistas, mas João Oliveira prefere colocar a questão um pouco a montante, nas estratégias. “Há muitos problemas de fundo ainda por resolver, a questão é até onde se consegue ir – e eles não vão ficar resolvidos com esta posição política conjunta”, avisa o líder parlamentar. “Esta não é ‘a’ solução política; esta era a solução possível para esta correlação de forças no Parlamento. A solução do PCP é outra.”
A devolução dos rendimentos e direitos “é só o primeiro passo, não pode ser desvalorizada, mas não chega para resolver os problemas estruturais” do país. Chegou apenas para um “alívio” que permitiu um desafogo económico e financeiro e que “criou no PS uma ilusão de que isto é tudo sustentável” e por isso o partido insiste em não olhar para o elefante da dívida na sala, critica João Oliveira.
Se o que se fez até agora não chega, então o que falta (além da recusa da dívida)? “Falta o resto da política patriótica e de esquerda.” O PCP não desarma e vai continuar a exigir mais investimento público, uma estratégia de aposta na produção nacional e a recuperação do controlo de sectores estratégicos da economia – se os dois primeiros princípios são partilhados com o PS (embora com números muito diferentes), nesta última questão a nega é garantida.
Sem querer usar o termo renegociação, Carlos Brito, antigo dirigente do PCP e da bancada parlamentar, considera que a curto prazo é “imprescindível um entendimento e uma negociação amigável com Bruxelas para a redução dos encargos com a dívida”.
Este histórico, que deixou o partido para liderar a Renovação Comunista, é um adepto ferrenho da actual solução de Governo. Depois do elogio das medidas de devolução de rendimentos e direitos destes dois anos, defende que o futuro próximo tem que trazer um “reforço de várias áreas da administração do Estado, com especial enfoque na regionalização em simultâneo com a descentralização”, assim como um “esforço sério no investimento público que arraste o investimento privado”.
O ecologista José Luís Ferreira olha para o documento e vê ali ainda muito por fazer em diversas áreas, sobretudo porque o PEV tem um anexo com muitas medidas específicas que faltam concretizar. São os casos da aposta na ferrovia, do IVA a 13% em toda a restauração, da revisão da Convenção de Albufeira, do reforço de verbas e de fiscalização da Associação Portuguesa do Ambiente, ou do investimento nos serviços públicos de transportes.