Contrato e criador de software para o SIRESP contrariam ministério
Ministério da Administração Interna diz que Traces não serve para apoiar decisões “em tempo real”. Contrato de compra da aplicação e ficha técnica do produto dizem o contrário.
O Traces "permite que tenha acompanhamento contínuo do desempenho da rede, criar relatórios e tomar medidas correctivas rapidamente. Com o Traces, pode ver exactamente o que está a acontecer na sua rede, salvando tempo e até mesmo vidas". Esta é a descrição do programa Traces feita pelo seu criador, a Motorola, e contraria a posição assumida nesta terça-feira, num esclarecimento sobre uma notícia do PÚBLICO, pelo Ministério da Administração Interna (MAI), que disse que o software de controlo da rede de emergência nacional, o SIRESP, estava a ser utilizado para "planeamento de médio prazo". O ministério acrescentou que o Traces não dava informações "de curto prazo ou em tempo real" e que, por isso, não servia para ajudar a Protecção Civil em termos operacionais no combate aos incêndios.
Acontece que foi exactamente para permitir o acesso a informação em tempo real sobre a cobertura da rede que o programa foi desenvolvido. Na página na Internet dedicada ao Traces, a Motorola diz ao potencial cliente que esta aplicação permite "visibilidade em tempo real da cobertura da rede, ajudando-o a identificar problemas e optimizar o seu desempenho". No caso do Estado português, deveria permitir-lhe perceber como está a cobertura do SIRESP a cada momento, fazer relatórios e permitir a tomada de medidas correctivas, uma vez que o software, de acordo com técnicos contactados pelo PÚBLICO, gera automaticamente informação a partir dos terminais no terreno. Cada terminal daquela rede dá informação ao programa sobre a sua localização e sobre a cobertura de rede de que dispõe a dado momento.
Mas, de acordo com o MAI - num esclarecimento enviado às redacções, em resposta a uma notícia do PÚBLICO que dava conta de que o Governo tem em sua posse desde 2015 o software e que este nunca foi utilizado pela Autoridade Nacional da Protecção Civil, que o comprou -, o Traces é apenas utilizado pela Secretaria-geral do MAI (SGMAI), a entidade gestora do SIRESP, para "planeamento de médio prazo". O PÚBLICO questionou o MAI sobre o que é este planeamento, mas não obteve resposta em tempo útil.
A versão do MAI, de que este programa "não se destina a gerir as necessidades operacionais de meios em teatros de operações" e ainda que "a aplicação não dá informação em tempo real de ocupação da rede e não permite a gestão de grupos de conversação em uso em teatros de operação de fogos florestais", choca de frente com a versão da Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC). O ex-presidente da ANPC, Joaquim Leitão, tinha referido, em resposta ao PÚBLICO, que a utilização deste programa em termos operacionais permitia, por exemplo, escolher os melhores locais para instalar os postos de comando de operações dos incêndios ou a melhor localização das antenas-satélite, que asseguram as comunicações quando o SIRESP falha.
E choca ainda com um relatório da ANPC enviado à então ministra Constança Urbano de Sousa, onde aquela entidade explicava que a instalação do posto de comando do incêndio de Pedrógão tinha sido feita tendo em conta a informação disponível, sem dados técnicos que o Traces forneceria, se pudesse ser utilizado.
Não é apenas a ficha técnica do produto e a versão da ANPC que não coincidem com o esclarecimento do MAI à notícia do PÚBLICO. No contrato de aquisição do programa, a que o PÚBLICO teve acesso, assinado pelo anterior Governo, pode ler-se no seu artigo 1.º que a aplicação é "destinada a reforçar o serviço da rede SIRESP em situações de emergência". Ora a utilização em situações de curto prazo, tal como previstas no contrato, não foram admitidas pelo MAI.
Nos últimos dias, o PÚBLICO enviou questões ao MAI sobre a utilização do sistema, nomeadamente o porquê de a SGMAI não ter entregue a licença de utilização do software à ANPC e ainda se a SGMAI tinha utilizado o programa. Na sequência do esclarecimento, que surgiu depois da publicação da notícia, o PÚBLICO tentou saber que uso e que planeamento foi feito com base naquela aplicação; por que não usa a SGMAI esta aplicação em situações de emergência como previsto no contrato e que uso lhe foi dado durante os incêndios deste ano. Até ao momento, não foi possível obter respostas.
Contudo, o ministro da Administração Interna esteve durante a tarde desta terça-feira no Parlamento no debate na especialidade sobre o Orçamento do Estado para 2018 e acabou por ser questionado sobre o assunto. O deputado centrista Telmo Correia perguntou ao ministro se o software é usado. O ministro Eduardo Cabrita, respondeu: "Sim, sim. O Estado usa-a através daquela entidade que é responsável pela gestão do sistema SIRESP", ou seja, a SGMAI. Mais tarde reforçou que "o Estado usa os serviços dessa aplicação informática". "Não vale a pena valorizamos mais esse tema", concluiu.
Mas a oposição não quer deixar cair o tema. Ao mesmo tempo, os centristas e os sociais-democratas faziam chegar um requerimento a pedir a audição do ex-presidente da ANPC, Joaquim Leitão, tendo em conta a notícia de "não utilização de meios existentes, nomeadamente um software de apoio e de vigilância do SIRESP denominado Traces".
Além disso, a bancada do CDS quer ouvir Mourato Nunes, o presidente da ANPC nomeado este fim-de-semana pelo Governo, para poder "perceber quais os planos deste novo responsável para a ANPC, o que pretende mudar ou fazer de forma diferente, ou se considera os meios existentes suficientes e de que meios adicionais eventualmente necessita".
Mourato Nunes terá a seu cargo uma reforma da Protecção Civil. Nesta terça-feira, no debate, o ministro deu alguns exemplos do que vai levar a cabo no próximos tempos.Tendo como base as conclusões do Conselho de Ministros extraordinário de 21 de Outubro, o ministro diz que a Protecção Civil terá "uma nova natureza", articulando a prevenção com o combate e, por isso, "essa dimensão de prevenção" significa que, até ao próximo Verão, "nada poderá ficar como dantes".
Aos deputados, o ministro garantiu um reforço do Grupo de Intervenção de Protecção e Socorro (GIPS) da GNR dos actuais 600 para 1100 efectivos. Além disso, também haverá o esperado aumento dos guardas-florestais da GNR, que vão passar de 300 para 500 no início de 2018.