As feridas abertas na cidade de Estaline
No Inverno de 1941/42 Estalinegrado foi o local onde a mais sangrenta batalha da História mudou o curso da II Guerra Mundial e transformou a URSS numa superpotência. Hoje, a cidade chama-se Volgogrado e discute o regresso à sua identidade perdida
Nos velhos tempos do estalinismo, quem dissesse ser de Estalinegrado tinha direito a um tratamento especial. Era visto como um herói, como alguém ligado ao espírito de resistência de uma cidade onde o Exército Vermelho impôs uma derrota às tropas nazis que mudou de vez o curso da II Guerra Mundial. Era homenageado como um cidadão associado ao lugar da batalha mais sangrenta da História, que elevaria a União Soviética à condição de potência mundial.
Stepan Smirnov é desse tempo e lembra-se de chegar a qualquer ponto do país, dizer que era de Estalinegrado e receber como resposta “abraços de gratidão”. Hoje já não o pode fazer. Porque a cidade já não se chama Estalinegrado. Chama-se Volgogrado e ser daqui ou de qualquer outro lugar da Rússia é exactamente a mesma coisa. “Ninguém liga”, diz Stepan Smirnov.
Não é estranho por isso que nesta cidade de um milhão de habitantes que se estende numa tira estreita de 80 km ao longo da margem direita do rio Volga ande permanentemente a questionar a sua identidade. “Sempre que há eleições ou alguma comemoração histórica, as pessoas começam a discutir sobre se a cidade deve manter o seu nome ou recuperar o nome que teve”, diz Elena Vasilevskaya, que trabalha como intérprete em negócios de empresas russas com o estrangeiro.
A discussão é fácil de situar: é melhor ser de Estalinegrado, o nome mundialmente conhecido pela batalha e pela prova de força militar que alavancou o poderio político da URSS, mesmo que essa designação esteja associada a um ditador sanguinário? Ou, pelo contrário, é melhor ser de Volgogrado, nome que, sendo desconhecido no Mundo, está pelo menos despido de qualquer conotação com um regime tirânico?
As opiniões dividem-se. Neste caso não há oposições entre esquerda e direita, entre apoiantes de Vladimir Putin e opositores, entre cristãos dominantes e os devotos de qualquer uma das 100 religiões que se praticam nesta região do Volga. Elena Vasilevskaya é cristã praticante e diz-se “conservadora” mas não tem dúvidas em colocar-se ao lado dos que defendem o regresso de Estalinegrado à toponímia da cidade. O padre Serguey Savenkov coloca-se no outro lado da barricada.
Esquecer ou lembrar?
Elena diz que nesta discussão se deve tentar esquecer quem foi e o que fez Estaline e, pelo contrário, invocar e homenagear os dois milhões de soldados alemães e russos que morreram nas ruas da cidade nos 200 dias da batalha que ali decorreu entre Agosto de 1942 e Fevereiro de 1943. Ou de recordar o sofrimento dos seus habitantes naqueles meses de violência e privação – antes da guerra viviam em Estalinegrado 1,5 milhões de pessoas e no final da batalha apareceram 30 mil sobreviventes, embora ninguém saiba ao certo o número de vítimas civis. Já Serguey Savenkov é avesso a fazer a distinção entre o nome de Estaline e as violências que autorizou (nomeadamente as que dirigiu à igreja) e defende a separação entre os acontecimentos da História e a realidade quotidiana. Para ele, “a cidade chama-se Volgogrado e muito bem”.
Como é fácil de perceber, um debate associado ao momento mais venerado pela Rússia contemporânea (a vitória sobre os alemães na Grande Guerra Patriótica) não poderia ficar confinado aos limites de Volgogrado. Quando, na cidade, a discussão aquece, “acaba por ser seguida no resto do país”, diz Elena Vasilevskaya. E quando adquire dimensão nacional, o sim ou não ao regresso a Estalinegrado ganha um apoiante de peso: o próprio Vladimir Putin. “Ele já disse que é a favor da recuperação do nome Estalinegrado, mas acrescenta que essa questão tem de ser decidida por quem cá mora”, diz Elena.
Este ano, nas comemorações dos 75 anos da batalha, Putin esteve em Volgogrado e mostrou-se a favor de um referendo. Putin é avesso à leitura da história que nas últimas décadas tendeu a preservar a imagem de Lenine e a remeter Estaline para o vazio da História.
Nas suas declarações públicas sobre o legado soviético, vai dizendo que Estaline teve um papel decisivo para que, a 8 de Maio de 1945, a Rússia atingisse o clímax da sua grandeza histórica, quando os seus soldados conquistaram Berlim e hastearam a bandeira soviética no Reichtag.
O nacionalismo, o desejo e a vontade de regressarem a esse passado glorioso leva muitos russos, como Putin ou Elena, a relativizarem os milhões de mortos nas fomes da Ucrânia em 1932, no Gulag ou nos Julgamentos de Moscovo para exaltarem a determinação e o espírito de sacrifício que determinaram vitórias como a de Estalinegrado. Derrotada em 1941, a URSS aparece em 1945 como a grande vencedora da Guerra. O papel de Estaline nessa vitória não pode ser descurado.
Obsessão de Hitler
A cidade, e a sua identidade, acabam assim por ficar nesse difícil, confuso e intenso debate em torno de um líder e do seu legado. Tsaritsin (nome de um pequeno afluente do Volga) até 1925, a cidade mudou de nome para homenagear o desempenho de Estaline na guerra civil que, entre 1918 e 1921, opôs os bolchevistas que tinham tomado o poder na revolução de 1917 e os oposicionistas conservadores e monárquicos, com o apoio das potências ocidentais.
Estalinegrado era uma importante cidade industrial e um importante cruzamento ferroviário, mas nada justificava a obsessão de Hitler em conquistá-la nesse Verão de 1942. No desenho da sua segunda ofensiva lançada contra a URSS, na Primavera de 1942, o grande objectivo estratégico eram os campos petrolíferos do Cáucaso.
Vários historiadores consideram que a paranóia de Hitler e de Estaline e o ódio visceral que nutriam ajudam a explicar a razão pela qual tornaram Estalinegrado na batalha do tudo ou nada.
Os alemães esperavam conquistar a cidade numa semana, como tinham feito nas semanas anteriores em cidades importantes como Rostov ou Sebastopol. Mas, para Estaline, aquele era o ponto onde a URSS tinha de resistir até aos limites. “Não há vida na outra margem do Volga”, era o mote da campanha.
Os alemães começam a operação com um bombardeamento aéreo que durou uma semana e matou 40 mil civis. O seu avanço fulminante levou-os a controlar 80% da cidade. Estaline reage com determinação e brutalidade. Milhões de soldados deslocaram-se para a cidade, tendo de atravessar o Volga em embarcações frágeis sob constante fogo inimigo. Dezenas de milhares morreram sem disparar um tiro. Morrer em Estalinegrado seria uma honra. Estaline decreta a brutal Ordem. Nº. 227: “nem um passo atrás”. Esquadrões de execução eram colocados na rectaguarda da frente soviética para abater quem ousasse fugir.
Reconstruir Estalinegrado da devastação levou dez anos. Milhares de prisioneiros alemães fizeram a limpeza dos detritos da guerra e a exumação de centenas de milhares de cadáveres. Pensou-se em reerguer a cidade noutro lugar. Seria mais fácil e mais barato – ainda hoje qualquer buraco feito na cidade encontra restos de armamento ou ossos humanos. Mas os sobreviventes recusaram.
Em 1950 a recuperação dos escassos edifícios que ficaram de pé ou a construção dos novos arrancou. No monte Mamayev Kurgan, um ponto estratégico dezenas de vezes conquistado e reconquistado por russos e alemães, começou a ser construída uma estátua gigantesca (86 metros de altura, uma das maiores do Mundo), em homenagem à Mãe Pátria. Num cemitério ao lado, foram colocados os restos mortais de 35 mil soldados que ali morreram.
Uma galeria de heróis, entre os quais o famoso sniper Vassili Zaitsev (conhecido pelo filme Inimigo às Portas, de jean-Jaques Annaud), está lá. Na cúpula da chama eterna, uma guarda de honra dá solenidade ao lugar. De há alguns anos a esta parte, a música de fundo que se ouve é do alemão Robert Schumman.
Desestalinização
Uma associação tão profunda a Estaline e às suas vitórias só poderia suscitar uma rejeição com a mesma profundidade quando, depois de 1956, no XX Congresso do Partido Comunista, o ditador é denunciado, as suas perseguições censuradas e o seu culto da personalidade criticado. Estalinegrado tinha de ser desestalinizada.
Em 1961, a operação começa. De um dia para o outro, a cidade passa a chamar-se Volgogrado. A gigantesca Avenida de Estaline, que se prolonga ao longo de 16 quilómetros paralela ao rio, passa a chamar-se Avenida Lenine. Um pouco mais abaixo no curso do Volga, quando este rio gigantesco (3500 km de comprimento) se aproxima do rio Don, a gigantesca estátua de Estaline, com 30 metros de altura, é discretamente retirada. Ao lado subiria outra, de Lenine.
Desapossada da sua identidade histórica, Volgogrado perde fulgor. “Os mais jovens estão a sair daqui por falta de emprego”, diz Irina Skorchenko. O turismo, que outrora trazia à cidade 2,5 milhões de visitantes de todo o mundo, é hoje residual. A cidade é uma das onze sedes do próximo Mundial de Futebol, o que gera expectativa e obrigou a enormes investimentos públicos em infra-estruturas.
Também por isso, o debate sobre Estalinegrado/Volgogrado faz sentido. Estalinegrado é uma marca mundial, um nome que se encontra em nomes de ruas e praças europeias, a expressão de um momento crucial na História do século XX, quando se provou que a Wehrmacht alemã podia ser derrotada, quando o Exército Vermelho iniciou a sua marcha triunfal até Berlim. Os soviéticos consideram-se os grandes vencedores da Guerra e a História dá-lhes razão: 80% das baixas militares dos alemães registaram-se na frente Leste.
Volgogrado é hoje uma cidade tipicamente soviética, na sua racionalidade geométrica, na sua esqualidez, na sua obsessão pela uniformidade. Os edifícios que entretanto nasceram não ajudaram. “Nos tempos da URSS era bem mais bonita”, diz Irina Skorchenko. Caminhar nas suas ruas impõe o regresso a esse pesadelo.
No museu onde Irina trabalha há 4000 peças em exposição e 170 mil em arquivo que o recordam com crueza. Entre todas, o seu director, Alexei Vasin, elege um tanque russo descoberto num riacho. A sua tripulação morreu e os seus restos mortais permaneceram no seu interior até que o tanque foi recuperado. Para ele, o museu tem um sentido: “Evitar que nunca mais se façam museus destes”.