Arouca e a Freita com um piquenique às costas
O projecto municipal GeoFood quer unir território e gastronomia, numa experiência que atravessa o concelho de Arouca e mostra mais do que a reconhecida carne arouquesa e os Passadiços do Paiva. Comer o que é local e da época, com consciência ambiental, é o objectivo.
Está escondida num edifício recente, mas parece uma mercearia das antigas: chão de mosaico hidráulico, armários de madeira com portas de vidro recortado, fruta disposta em caixas de madeira, um balcão alto e imponente. Não há arcas para congelados nem alimentos processados industrialmente, são poucos os ingredientes sintéticos nas receitas e as etiquetas apresentam um código-postal local — e isso é bom. Bem-vindos ao Mercado Local de Arouca, onde os produtos deste concelho do distrito de Aveiro (mas parte da Área Metropolitana do Porto) têm uma montra para a comunidade, local e não só. Aqui começa uma viagem pelo território através da gastronomia. Comer o que é local e da época, num estilo de vida saudável, é o objectivo do projecto GeoFood, uma parceria entre a autarquia e o Geoparque de Arouca, a piscar o olho ao turismo sustentável que pôs a vila no mapa.
“Historicamente, este território foi-se desenvolvendo em torno da agricultura”, começa por dizer Ana Helena Pinto, nutricionista responsável pelo GeoFood. Mas a tradição perde-se com o passar dos anos e “alguns produtores de pequena escala precisam deste apoio para conseguirem desenvolver a sua actividade”. Unir os produtores locais aos restaurantes locais e, a partir destes, a quem visita o concelho “é a valorização económica que faltava”, defende. O Mercado Local, de portas abertas diariamente, faz a ponte entre os vários elementos do projecto, que junta 70 produtores arouquenses, integrados no Arouca Agrícola, e seis restaurantes com ementas dedicadas. Um deles é o do Hotel S. Pedro, a paragem que se segue.
Assim que chegamos ao hotel, a mesa para o jantar está posta. Há um pequeno menu impresso com o carimbo GeoFood e a garantia de que apenas vamos provar produtos da terra. É um menu 100% arouquense, este que está à nossa espera, e a lousa com as entradas já vem a caminho: broa de milho caseira, enchidos locais, cogumelos shiitake salteados e paté de cogumelos. Eis um caso exemplar do impacto que o GeoFood pode ter na economia local. Os cogumelos de época escolhidos para estas entradas saíram das estufas de Manuel Bouça, produtor há já três anos que viu as encomendas crescerem com a preocupação de sustentabilidade alimentar e territorial. Por semana, o agricultor de 45 anos colhe entre 30 a 40 quilogramas de shiitake, que também transforma em doces, patés, broas — que havemos de provar — e até chocolates recheados. A vitela arouquesa, prato principal do jantar, é servida com legumes da época e batata-doce em vez da tradicional. É que a batata-doce dá-se muito bem em solo arouquense, continua Ana Helena Pinto. E nas receitas regionais — que tiveram de ser adaptadas à sazonalidade dos alimentos — também.
No início de Outubro, o GeoFood foi distinguido com a segunda menção honrosa dos Food & Nutrition Awards 2017. A “visão global de um sistema alimentar”, como Ana Helena Pinto descreve, actua desde o início do processo produtivo, passando pela distribuição e terminando no consumo. “É um produto turístico promotor de bem-estar e saúde, com responsabilidade social e ambiental globais.” Foi com esta ideia em mente que o Hotel S. Pedro criou a Experiência GeoFood 360º, um pacote que inclui refeições 100% arouquenses, uma noite e um passeio pela serra da Freita com direito a piqueniques. Vamos a isso?
Na rota dos miradouros
À medida que subimos a serra, a temperatura vai descendo. Ultrapassamos, em altitude, o nevoeiro que conseguíamos adivinhar da varanda do quarto de hotel e contamos pelos dedos de uma só mão os carros com os quais nos cruzamos. Afinal, a manhã ainda mal começou, apenas o gado arouquês se passeia, livremente, pelas estradas da “Freita Encantada”. É este o nome de um dos itinerários pré-definidos, criados pelo Geoparque de Arouca, que inclui onze geossítios (sítios com interesse geológico), alguns deles com miradouros “encantados”.
O marco geodésico de São Pedro Velho assinala os 1077 metros de altitude e, empoleirada em cima de um domo rochoso de granito da Freita, uma estrutura circular de ferro e madeira forma uma plataforma com uma panorâmica de 360 graus. Daniela Rocha, a geóloga que guia esta visita, vai explicando a “dança dos continentes” que, há milhões de anos, levou à formação das rochas mais abundantes do Geoparque de Arouca, alternando curiosidades científicas com informações turísticas e tradições da região. Ergue a mão para apontar os destinos que se seguem neste passeio, enquanto o nevoeiro baixo se move em torno do miradouro, ora ocultando ora revelando as aldeias do planalto, as linhas de água, os trilhos marcados. Naqueles dias em que as nuvens são totalmente inexistentes, sublinha Daniela, é possível vislumbrar os braços da ria de Aveiro e uma franja de mar.
Uma das aldeias que o nevoeiro esconde é Merujal, aonde é possível chegar percorrendo um percurso pedestre com cerca de dois quilómetros. Além da pedra — que é a imagem de marca deste território —, o trilho está rodeado por pinheiros bravos e cedros e o chão coberto de arbustos, flores e outras plantas comestíveis. É o caso da carqueja, da urze e do tojo, que Ana Helena Pinto vai cheirando e apanhando ao longo do caminho. É também destes passeios pela serra que a jovem nutricionista colhe inspiração para a introdução de novos ingredientes nas ementas que ajuda a desenvolver. A descida de Saõ Pedro Velho é íngreme, mas isso não demove os corredores com os quais nos vamos cruzando e os grupos organizados de caminhantes. O turismo desportivo e de natureza atrai cada vez mais pessoas ao concelho de Arouca, onde a oferta neste campo tem crescido desde a criação do Geoparque. Inaugurado há quase dez anos, em Dezembro de 2007, integra a Rede Europeia de Geoparques sob a tutela da UNESCO — Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura e envolve uma área de 327 quilómetros quadrados.
A zona de merendas adjacente ao Parque de Campismo de Merujal é a escolhida para o primeiro piquenique do dia, em jeito de reforço matinal. Do saco de papel pardo, pensado para caber numa mochila, saem produtos locais: fruta da época — no caso, maçãs pequenas, imperfeitas e saborosas —; fatias de enchidos e de broa de milho caseira; minibroas doces de cogumelos; e “marmelices”, pequenos cubos de marmelada caseira, embalados individualmente. “É para prevenir possíveis quebras de tensão”, justifica Ana Helena Pinto. Restabelecida a energia à sombra dos pinheiros bravos, é tempo para continuar a visita. Ao contrário dos muitos campistas que abandonam as tendas a meio da manhã para se fazerem ao caminho, de mochila às costas e vários quilómetros pela frente, seguimos de carro.
No encalço de um dos ex-líbris da Freita — as pedras parideiras —, Daniela conduz-nos até um dos pontos de observação da mais alta cascata de Portugal Continental. Sabemos que chegamos à Frecha da Mizarela pela presença de carros e motos na berma da estrada e pela movimentação de pessoas com material específico para a prática de canyoning. Aqui, o rio Caima dá um salto de mais de 60 metros, proporcionando uma cascata perfeita para quem procura a adrenalina de desportos radicais. Um Verão e um início de Outono extremamente secos, contudo, encolheram o caudal do Caima, que rompe o granito e os micaxistos ladeado por “vegetação primitiva” da serra, como rododendros, carvalhos-alvarinho e carvalhos-negral. As explicações estão a cargo da geóloga, cujo colete identificativo do Geoparque atrai a atenção de um grupo de turistas intrigados com a imponente queda de água.
Muitas das casas da aldeia da Mizarela apresentam um miradouro particular — sob a forma de varandas e terraços — sobre o vale do Caima e o planalto da Freita, voltadas para o sol e ao abrigo dos ventos agrestes que baixam as temperaturas. É assim nas outras aldeias serranas da região, onde os habitantes — que se contam às poucas dezenas — se dedicam, por norma, à agricultura e ao pastoreio. Os animais com os quais nos cruzamos ao longo de todo o percurso são a prova disso mesmo: este é um território conhecido pela carne de bovino e o gado tem prioridade.
Há mais Arouca para lá dos passadiços
Na aldeia que se segue, a da Castanheira, o pastoreio é o motor da economia familiar e rural. Apenas nove habitantes ocupam aqui as suas casas e são às centenas as cabeças de gado que pertencem à Castanheira, de condições climáticas adversas e solos pobres. Na rua principal, uma construção arquitectónica moderna destaca-se dos demais edifícios: é o Centro de Interpretação da Casa das Pedras Parideiras, um dos geossítios mais emblemáticos do Geoparque de Arouca, com características únicas em todo o mundo. Estas “pedras que parem pedras” estendem-se por uma área de perto de um quilómetro quadrado e são visitadas por milhares de pessoas por ano. Mas porquê parideiras? Alexandra Paz, geóloga do Centro de Interpretação, explica, ainda antes de vermos do que se trata: o granito de tons claros apresenta uma invulgar quantidade de nódulos negros (biotíticos), que se libertam por acção da erosão. No granito da Castanheira restam, assim, cavidades mais escuras, resultantes dos nódulos que dele se soltaram.
As datações mais recentes, elucida o filme 3D que a Casa das Pedras Parideiras mostra a todos os visitantes, apontam para que este geossítio tenha entre 320 e 310 milhões de anos. O “tesouro geológico” destas pedras pode ser admirado numa zona coberta, contígua ao Centro de Interpretação, e num campo delimitado do outro lado da rua, vizinho de terrenos de cultivo dos habitantes da aldeia, para quem as pedras parideiras não são novidade. Assim que Alexandra Sá, grávida de Matilde, atravessa a rua, uma voz chama-a. “É a D. Maria”, diz a geóloga, que se fez família das mulheres e dos homens da Castanheira quando o centro foi inaugurado, em 2012. Pronta para ir “apanhar erva” para os animais, mesmo ali ao lado das pedras que projectam outras pedras, D. Maria quer saber da menina que há-de nascer, de braço dado com Alexandra. Histórias antigas contam que uma pedra parideira debaixo da almofada de um casal aumentava a fertilidade; “Outros tempos”, brinca D. Maria.
É Alexandra quem nos guia até ao penúltimo miradouro do dia, no décimo andar do Radar Meteorológico de Arouca. No piso panorâmico deste radar — instalado, em 2015, a 1046 metros de altitude e gerido pelo Geoparque —, paredes envidraçadas mostram os locais por onde andamos e muitos mais, muito mais longínquos. Desde a serra de Montemuro à serra da Estrela, assinaladas com caneta branca nos vidros da torre, até à área urbana do Porto, é possível ter uma vista superior a 100 quilómetros. “Chega a conseguir ver-se Matosinhos”, garante Alexandra.
Com o fim da manhã aproxima-se o momento do segundo piquenique do dia, no último miradouro do circuito, a pouco mais de dez minutos de viagem de carro desde o Radar. De vidros abertos, o silêncio da serra é substituído pelo ruído das pás dos aerogeradores, 16 no total. Próximo de um deles está o local escolhido para o almoço, o Detrelo da Malhada: uma plataforma circular — de ferro e madeira, como a de São Pedro Velho — pendura-se na vertente norte da Freita, voltada para o vale de Arouca. Da cozinha do Hotel S. Pedro saíram a salada de feijão frade com espinafres e maçã e as sanduíches de vitela arouquesa em pão rústico, as broas doces de cogumelos regressam para terminar a refeição. Ana Helena aguça a vista e enumera as aldeias que se vêem do Detrelo da Malhada e aquilo que cada uma produz: o mel do pequeno-almoço é de Adaufe, as maçãs são de Moldes, a broa de milho da Várzea e a de abóbora de Urrô. Sabe-se o que se come, de onde vem e quem o faz, de pernas estendidas na terra dura, o olhar para lá do vale do Paiva, casa dos passadiços mais conhecidos de Portugal. Há Arouca para lá dos passadiços, prova-o uma manhã passada na “Freita Encantada”.
A Fugas esteve em Arouca a convite do Hotel S. Pedro