“Puigdemont, ouve, nós também somos o povo”

Pela segunda vez desde o referendo de 1 de Outubro, os catalães que defendem a unidade de Espanha voltaram a encher o centro de Barcelona. “Sinto-me catalã e espanhola. Não quero deixar de ser espanhola”.

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A manifestação encheu as ruas do centro de Barcelona Toni Albir/EPA

Masi (“Maximiana é demasiado comprido”) começa por hesitar, mas no fim da conversa não resiste: “Meu Deus, é a minha primeira manifestação e acabo a dar uma entrevista”, exclama, bem-disposta.

Enquanto a conversa dura, vai-se surpreendendo com o “êxito do cartaz” que trouxe para a manifestação convocada pela Sociedade Civil Catalã (SCC) sob o lema “Todos somos Catalunha”. Não pára de passar gente que pede para o fotografar. É uma simples folha A5 com um dos lados dividido entre a bandeira de Espanha e a bandeira da Catalunha e a palavra “Todos”; do outro lado, “Maus governos dividem os povos (a culpa é do outro)”, escrito a marcador.

“Sim, claro que estava a pensar na Generalitat”, diz Masi. “Se fosse um bom governo tinha-me respeitado a mim, que não sou independentista. Só quero isso, um governo que nos una e que não me traia, culpando depois o outro, Madrid”, explica. “Em Madrid também não são bons”, atira o marido, que se afastou mas não resiste a ir ouvindo a mulher e a deixar escapar alguns comentários.

O marido de Masi veio da Extremadura, como ela, há muitos anos. A diferença é que “ele veio porque tinha trabalho”, ela “por capricho”. “Sabes quando és nova e queres dinheiro para comprar as tuas coisas? Pois, vim para cá com a minha irmã, arranjei trabalho e comprei o que queria. Depois, voltei à minha terra, uma aldeia, e não aguentei. Pensei, ‘agora vais viver aqui, depois do que já viste?”.

Masi chegou há 45 anos e tem 66. “Eu sinto-me catalã e espanhola. Não quero deixar de ser espanhola. Mas foi a Catalunha que me deu tudo, com o meu trabalho claro, foi aqui que fiz a minha vida, tive as minhas duas filhas. Também não quero deixar de ser catalã…”, explica.

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Muitos diziam-se orgulhosos de serem catalães e espanhóis Javier Etxezarreta/EPA

As filhas de Masi “são mais ou menos independentistas, ainda não têm experiência de vida suficiente”. Nas últimas semanas, em almoços de família, já houve zangas. “Acabaram bem porque são minhas filhas. A semana passada uma ameaçou ir embora, mas lá nos acalmámos. O meu marido até foi para a cozinha”.

O motivo da discussão foi o referendo inconstitucional de 1 de Outubro, quando votaram, segundo a Generalitat, 43% dos eleitores catalães e 90% disseram “sim” a uma nova república, a mesma que 70 deputados (de um parlamento de 135) declararam na sexta-feira, horas antes de Madrid iniciar a aplicação do artigo 155, destituindo o governo catalão, dissolvendo o parlamento e marcando eleições para 21 de Dezembro.

“Vamos votar no 21”, foi uma das frases ouvidas entre o Passeio da Gràcia e a Gran Via, o fim do percurso oficial, onde se ergueu o palco, com muita gente que começou a andar a partir da avenida Laietana ou da praça Urquinaona sem nunca conseguir furar entre a multidão e alcançá-lo.

“Votaremos” em Espanha

Uma semana depois do referendo, a 8 de Outubro, a SCC reunia pela primeira vez um mar de gente: mais de um milhão, segundo os organizadores; 350 mil, de acordo com a Guardia Urbana. Desta vez, o percurso escolhido deixava claro que a organização esperava uma multidão ainda maior – a Guardia Civil fala em 300 mil pessoas, mas a SCC garante que foram mais de 1,3 milhões.

Era muita, muita gente, num ambiente mais festivo e descontraído do que o de há três semanas, talvez por já saberem que “não estão sós”. Talvez por se sentirem aliviados com a aplicação do artigo 155 e já não se considerarem governados por quem não sentem representá-los. Voltou a gritar-se Carles “Puigdemont para a prisão” e “golpistas”, mas cantou-se mais “Que viva Espanha”, “Espanha unida, jamais será vencida” ou “Não queremos passaporte”.

“Votaremos”, em catalão, terá sido a palavra de ordem mais ouvida. Uma espécie de outro lado do espelho, nesta Catalunha profundamente dividida. “Votaremos” era o que gritavam os independentistas quando Mariano Rajoy garantia que o referendo de dia 1 não se ia realizar.

Cuspidelas e “traidores”

Alguns analistas descreveram a marcha de dia 8 como uma espécie de “desbloqueio de um trauma do franquismo”. Ainda se ouviram gritos de “Somos espanhóis, não somos fachos”. E ainda se viram no Passeio da Gràcia ou nas ruas transversais grupos de extrema-direita como a Democracia Nacional (com faixas que não permitem confusões e até T-Shirts onde se lê Waffen SS, nome da unidade de elite de combate das SS na Alemanha nazi).

Umas dezenas de manifestantes mais exaltados aproximaram-se dos Mossos (a polícia catalã) estacionados à frente de duas carrinhas na Ronda de San Pere, a rua que une a praça Urquinaona à da Catalunha (uma das laterais do Corte Inglês) para gritar ofensas e lançar cuspidelas. “Trapero para a prisão”, gritaram, em referência ao recém-deposto comandante dos Mossos. “Traidores” ou “Filhos da puta” foram outras frases que os agentes ouviram em silêncio, enquanto alguns manifestantes”. “Eles não são todos iguais”, diziam, ou “Só cumpriam ordens”.

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“Eles”, acreditam estas pessoas, não os defenderam quando deixaram que se votasse no dia 1, enquanto a Guardia Civil e a Polícia Espanhola desalojavam assembleias de voto a golpes de bastão. Outra diferença: nas concentrações independentistas, os helicópteros da polícia são apupados; aqui, são aplaudidos.

Longe destes momentos mais duros, a manifestação decorreu em tom de festa. A maioria dos cartazes improvisados falava de “paz e serenidade” ou continha mensagens directas ao líder da Generalitat deposto. “Puigdemont, não representas o povo da Catalunha” ou “Puigdemont, ouve, nós também somos o povo”, por exemplo, e houve ainda mais bandeiras de Espanha (vendiam-se a cinco euros no meio da multidão, mas bastava hesitar um pouco para o preço descer para três euros).

Estudantes e desemprego

José Luque, 55 anos, e a mulher, Maria Dolores, de 53, vieram com a irmã desta e o marido. Manifestaram-se pela primeira vez a 8 de Outubro e voltaram a sair à rua “para que se veja que somos a maioria, parece que só percebem assim”, diz José. “Agora reivindicamos o nosso direito à democracia”

O casal espera que não se passe nada de grave nas próximas semanas. “Há muita tensão, é preciso que não chegue à rua”, afirma José. “A mim dão-me medo os estudantes universitários. Querem democracia e respeito para eles mas não respeitam os outros”, acusa Dolores, a propósito dos membros do grupo Universidades pela República que impediram alguns estudantes de entrar nas aulas num dia de greve da semana passada.

“Enchem a boca para falar de repressão e de Franco, como se soubessem o que isso quer dizer”, acusa José. “Eu era pequeno mas lembro-me do que eram manifestações reprimidas, quando chegavam nos autocarros e espancavam sem ver quem, fossem avós ou crianças”, acrescenta, bandeira de Espanha atada ao pescoço, como o resto da família.

José trabalha na editora Planeta, que já transferiu a sua sede de Barcelona a Madrid. Maria Dolores está numa empresa de cosméticos, a Maymo, que “acaba ser comprada por um catalão, um destes”, diz, “destes” em vez de independentista. “Agora, vai levar a fábrica e a empresa para Figueres [Norte da Catalunha] e eu preparo-me para ir para o desemprego”.

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