No meio da terra seca, o planalto mirandês pede ajuda e chuva
Produtores dizem não ter memória de um período tão prolongado de seca. Falta de água e de alimentação para os animais é o que mais preocupa, de Miranda do Douro a Mogadouro.
Evaristo Martins aproxima-se do terreno onde as suas vacas procuram algum verde inexistente para mastigar e é como se fosse um só com a paisagem: toda a roupa está coberta por uma tonalidade amarelada deixada pela poeira dos campos que se lhe colou à pele. Estamos no final de Outubro e, ao meio-dia, o termómetro aproxima-se dos 30 graus em Miranda do Douro ou em Vilar Seco, Vimioso, onde estão as vacas do criador de 62 anos. O sol forte dá uma tonalidade enjoativa e amarelada ao céu, que se estende para o resto da paisagem. Verde só nas copas de algumas árvores, o resto é poeira. “Não me lembro de um ano assim. Tanto tempo sem chover, em contínuo”, diz.
A frase há-de ser repetida por outros produtores e criadores da região. Já houve seca, mas como esta, não há memória no planalto mirandês. Apontando o campo amarelado onde as vacas se passeiam, Evaristo explica o que deveríamos estar a ver, num ano normal: “Neste tempo, teria pasto. Agora, já comecei a dar palha”. O problema, explica Valter Raposo, da Associação de Criadores de Bovinos da Raça Mirandesa, é que a seca não começou agora. Desde a Primavera de 2016 que praticamente não chove. “Já não houve forragens nem pasto na Primavera. A forragem que se conseguiu foi pela metade ou nem isso. O feno nem rebentou nos lameiros. No ano passado já houve pouca comida, o tempo não mudou, não choveu e as vacas têm estado a comer à mão [em vez de pastarem]. Já começaram a comer as reservas para o Inverno”.
Porque lá fora, não há nada. Os pastos são chão seco. Os campos que deveriam estar lavrados são torrões de terra castanha, sem um pouco de vida a despontar. A ribeira da Angueira, que até no Verão costuma ter água, só tem um pouco de água estagnada numa ninharia do leito castanho. Perto da aldeia da Póvoa, em Miranda da Douro, uma lagoa que Domingos Fernandes garante que nunca seca, e que dá de beber não só os rebanhos que por ali costumam andar à solta, mas também aos animais selvagens da região, como os javalis ou as cabras, não tem uma gota de água. A lagoa da Fonte Seca, criada para que os helicópteros se pudessem abastecer no combate aos incêndios, está vazia. Felizmente que ali não houve fogo, este ano. E até o poço das ruínas da capela da Senhora do Picão, local de aparições marianas em 1910, está hoje seco. Quem lá costuma ir encher garrafões da água dita “milagrosa” para levar para casa – e Domingos garante que são muitos – não tem agora nada para levar.
O presidente da Associação de Agricultores do Planalto Mirandês também tem terrenos e vacas, da raça charolesa. Andam num campo, tão seco como os outros, e uma cisterna ali colocada por Domingos garante-lhes alguma água. E não só a elas. “Na semana passada vi duas cabras selvagens a beber da cisterna. Não é normal”, diz o produtor.
A falta de água é um problema, afirma Valter Raposo, mas mais grave ainda é a falta de alimento. Que está intimamente ligada à primeira. Porque os campos no planalto mirandês produzem sobretudo forragens para os animais e as sementeiras que, normalmente, se fazem entre meados de Setembro e meados de Outubro, ainda nem começaram. Alguns arriscaram e plantaram cedo, apanhando umas poucas chuvas de há poucas semanas. Mas Valter não está optimista. “As plantas germinaram, mas sem chuva em abundância, vão secar e morrer sem crescer”, diz.
Domingos andou a semear na quinta e na sexta-feira. Inês Teixeira, 53 anos, diz que vai, finalmente, arriscar semear na sexta-feira. Apesar dos receios que tudo se perca se não chover. “Nem um grão semeei assim. Ainda ontem andei no campo e caía-me pó das pestanas. Tive que limpar os olhos com soro fisiológico, tanta era a poeira. Tenho tido medo de semear, mas vou começar hoje [sexta-feira passada]. E só com arados nem pensar. Andam aos saltos, não enterram. Só com charruas. É uma tristeza”, lamenta-se.
Tal como todos os outros criadores, Inês também já teve que comprar palha aos fornecedores espanhóis. Diz que se deita e se levanta a pensar na alimentação dos animais, que até já viu a roer, pela primeira vez, folhas de carvalho, “o único verde que encontram”. Com a seca que assola o país e os incêndios que queimaram tanto do Norte e Centro, a procura pela palha cresceu e quem vende aumentou os preços. Se no ano passado se comprava a quatro cêntimos por quilo, agora paga-se o dobro. Valter diz que conhece quem a tenha comprado a nove cêntimos. Inês comprou a oito cêntimos. Evaristo a sete. Xavier Martins, da aldeia de Saldanha, Mogadouro, a sete cêntimos e meio.
As vacas de Xavier, 29 anos, são leiteiras. Passam o ano no estábulo, mas estão também a sofrer com a seca. Na primeira quinzena de Outubro, a Associação de Produtores de Leite do Planalto Mirandês já avisava que, se não chovesse na segunda quinzena, a produção poderia cair um terço. Não choveu e Xavier tem um ar desconsolado. “Vamos ter que comprar mais palha, senão é complicado. Não há reservas de água, as sementes não crescem… Dos nossos campos costumamos tirar 1100, 1200 rolos de forragem, este ano só tiramos 550, e os gastos foram iguais. Precisamos de ser ajudados.”
Chuva e ajuda do Governo, é o que se ouve da boca de cada um dos produtores com quem falamos. As verbas já anunciadas são bem-vindas. Mas todos pedem mais e a isenção de pagamento da Segurança Social – já aplicada em 2012 – é um pedido comum. Mas a chuva, a chuva é que faz falta.
Amílcar Fernandes, 52 anos, não pára de falar junto a um dos seus olivais, em Alfândega da Fé. Mostra-nos umas azeitonas enormes, umas poucas que foram regadas por estarem perto de um campo de regadio, e mostra-nos as outras, quase todas, criadas em regime de sequeiro, e que são uma amostra do que deve ser uma azeitona. “Eu não vendo caroços”, diz o homem que tem olival, floresta de sobreiros, alguma amêndoa e uma pequena produção pecuária. Por isso, garante, nem se vai dar ao trabalho de apanhar a maior parte da azeitona que produziu. As perdas, diz, são na ordem dos 80%. E não acabam aí.
É que o produtor teme que muitas árvores não sobrevivam. Tanto oliveiras, como “50% dos sobreiros" que, este ano, pela primeira vez, deveriam dar cortiça. “É preciso esperar pela Primavera e ver se alguma coisa recupera”, diz. Para ele, a solução terá que passar obrigatoriamente pela criação de sistemas de rega. Caso contrário, não tem grande esperança. “Corremos o risco de desertificação total. Sem pontos de água, o Nordeste Transmontano desaparece em 20 anos.”