O dia em que os catalães festejaram a independência
A república catalã não vai durar sequer um dia, mas já a noite caíra há muitas horas e a intervenção do Governo de Madrid na Catalunha não tinha entrado em vigor. Nas ruas, festejava-se mas a prazo. Rajoy anunciou a destituição da Generalitat e convocou eleições para 21 de Dezembro.
Aprovada às 15h27 (14h27 em Portugal continental), a proclamação da “República catalã como Estado independente e soberano” foi festejada durante muitas horas por centenas de milhares de catalães. À noite, e ao contrário do que costuma acontecer, a multidão reuniu-se em Sant Jaume, a praça do poder de Barcelona, onde se ergue o Palácio da Generalitat e a câmara municipal.
Organizada pela Associação Nacional Catalã e pela Òmnium (as duas maiores organizações independentistas), a festa teve discursos e momentos musicais. A multidão transbordava da praça no Bairro Gótico de Barcelona para as ruas em redor. Muita gente tentava furar sem sucesso.
“As ruas são nossas” foi a palavra de ordem mais ouvida, uma actualização do habitual “as ruas serão sempre nossas”, que costumava ser gritado nas concentrações pró-independentistas catalães.
Ao mesmo tempo, no interior do Palau estava reunido todo o governo catalão, convocado pelo líder, Carles Puigdemont, não só os conselheiros (equivalentes a ministros), mas também directores-gerais e outros cargos da administração.
Terá sido em conjunto que assistiram à declaração de Mariano Rajoy aos espanhóis, a partir das 20h23 (19h23). “Dissolvi o parlamento e haverá eleições a 21 de Dezembro”, anunciou, começando assim a pôr ponto final no sonho dos independentistas, cinco horas depois do início dos festejos. “Hoje, no parlamento [catalão] impuseram-se os que levaram a Catalunha a um beco sem saída. A independência é triste e desoladora, está baseada em mentiras e imposições”, disse em seguida. “A Catalunha precisa de se reconciliar com a verdade e a lei.”
“Aprovámos o afastamento do presidente da Generalitat, do vice-presidente e dos conselheiros, a extinção dos gabinetes do presidente e vice-presidente, da Diplocat [Conselho Diplomático Público da Catalunha, uma espécie de agência de comunicação que representa o governo mas também o FC Barcelona, por exemplo], a extinção das delegações [da Generalitat] no estrangeiro e o afastamento do director-geral da polícia da Generalitat”, Pere Soler, enumerara antes Rajoy.
Dentro da sede do governo, imaginamos, planeavam-se formas de resistir à aplicação do artigo 155 da Constituição. Cá fora, na praça de Sant Jaume, a festa seguia, sem interrupções, o mesmo acontecendo um pouco por toda a Catalunha, principalmente nas maiores cidades, como Girona e Tarragona. Havia gente na rua desde manhã: muitos tinham estado concentrados primeiro nas imediações do parlamento, no interior do Parque da Ciutadella.
Durante a manhã, os gritos eram diferentes. “Nem um passo atrás”, pediam aos políticos. “Estamos com vocês”, garantiam, aplaudindo os autarcas que passavam para assistir ao plenário. “Independência”, foi o grito acompanhado de aplausos e de explosão de alegria no momento da votação. Muitos manifestantes deram os braços e cantaram o hino catalão, Els Segadors, enquanto se abriam garrafas de cava (espumante da região). À noite, dançava-se e cantava-se, como se ninguém quisesse regressar a casa ou dar o dia por terminado.
Em simultâneo à festa dos independentistas, uma manifestação pela unidade de Espanha, em Barcelona, começou por se reunir numa praça do norte da cidade antes de se encaminhar para o Passeio da Grácia, aproximando-se do centro. Uma parte dos manifestantes enfrentou-se com os Mossos d’Esquadra, a polícia catalã, depois de partir vidros e lançar pedras contra o edifício da Catalunha Rádio, a rádio pública catalã. Mais tarde houve distúrbios dentro de um bar, com manifestantes a lançarem latas e petardos para o interior.
Paella insubmissa
Se não há como saber como reagiram às palavras de Rajoy muitos dos que ele visou na sua intervenção, incluindo todos os que estavam no Palau, conhece-se a reacção de outros políticos. A deputada da CUP (Candidatura de Unidade Popular, partido à esquerda da coligação de governo, Juntos pelo Sim) Mireia Boya, uma das que assinou a proposta de resolução de declaração de independência votada no parlamento, recusava a convocatória de eleições. “A 21 de Dezembro, paella massiva insubmissa. Somos república”, escreveu no Twitter.
“Vão destituir o presidente e os conselheiros e vão pôr os vossos nos lugares deles, mas não os vamos reconhecer”, avisara o senador do PDeCAT (Partido Democrata Europeu Catalão, de Puigdemont) Josep Lluis Cleris, que manifestou “grande tristeza” pelo tom do discurso de Rajoy na câmara alta do Parlamento espanhol, ainda antes da aprovação da proposta de intervenção na Catalunha por parte do Governo. “Foram discurso e aplausos de ‘vamos a eles’, querem levar-nos a 75”, afirmou, em referência ao ano da morte de Franco.
Enquanto a república catalã foi aprovada com 70 votos a favor, dois em branco e dez votos contra, e na ausência dos deputados de três partidos da oposição — Cidadãos, Partido Popular e Partido Socialista Catalão —, a aplicação do 155 no Senado aprovou-se com 81% votos a favor. Contra votaram Unidos Podemos, Esquerda Republicana da Catalunha, PDeCAT, Partido Nacional Basco (PNV), EH Bildu e Compromís.
Do PNV chegou a única declaração de apoio aos independentistas catalães, com o partido a pedir “respeito” pela declaração de independência, uma decisão tomada a partir de “instituições legítimas”. Pouco depois, o presidente do partido, Andoni Ortuzar, lia um comunicado onde expressava o seu “profundo desacordo e recusa” face à decisão do Senado.
“A destituição das instituições legítimas catalãs, eleitas livre e soberanamente pela cidadania, longe de ser uma solução, persiste e aprofunda no erro com que que os poderes centrais do Estado têm abordado a questão catalã desde 2005”, defendeu Ortuzar. O líder basco recua até ao ano da aprovação do Estatuto da Catalunha, que saiu do Congresso mais esvaziado de poderes autonómicos e depois foi ainda mais enfraquecido quando o PP, então na oposição, levou a lei da autonomia ao Tribunal Constitucional.
Solução não violenta
De fora de Espanha, as reacções foram as que se esperavam: “Para a UE não muda nada. Espanha continua a ser o nosso único interlocutor. Espero que o Governo espanhol favoreça a força dos argumentos, não os argumentos da força”, escreveu o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, na sua conta de Twitter.
A 1 de Outubro, data em que se celebrou o referendo inconstitucional que o parlamento catalão usa como base para proclamar a independência, cargas policiais de agentes que pretendiam impedir a votação fizeram mais de mil feridos, confirma a Ordem dos Médicos da Catalunha.
Uma voz ligeiramente diferente foi a do primeiro-ministro belga, Charles Michel, que já tinha sido mais duro do que os colegas europeus na denúncia da actuação policial de dia 1. Michel reclama uma “solução pacífica” e reafirma que a “violência nunca pode ser a resposta” a uma crise política.
Com as decisões anunciadas por Rajoy ainda sem estarem publicadas no Boletim Oficial do Estado (BOE), soube-se que a vice-presidente do Governo, Soraya Sáenz de Santamaría, se reunirá sábado de manhã com os secretários de Estado para começarem a discutir as funções até agora da Generalitat e que passarão a ser asseguradas por diferentes departamentos ministeriais de Madrid.
Pelas ruas de Barcelona, continuava a festa. Quando nascer o dia, é provável que o 155 já esteja em vigor, com a publicação em BOE das decisões tomadas em Madrid. Até lá, nada impedia os independentistas de festejar.