Anozero, a bienal chegou ao quartel
O Mosteiro de Santa Clara-a-Nova vai ser o principal espaço de exposições da bienal de arte contemporânea de Coimbra.
A entrada apresenta o imenso estaleiro em que o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra, está transformado por estes dias. A parte norte do edifício está a ser transformada num museu temporário por conta do Anozero, a bienal de arte contemporânea de Coimbra com a curadoria de Delfim Sardo, que tem em 2017 a segunda edição.
No hall de entrada do edifício que faz um L, uma obra do artista norte-americano James Lee Bryars serve de antecâmara a um percurso de arte contemporânea. Pronounce perfect until it appears é a frase que se ouve repetidamente na instalação sonora pela voz de Bryars.
O arquitecto e director do Círculo de Artes Plásticas de Coimbra (CAPC), Carlos Antunes, é o responsável pela intervenção que adapta a antiga instalação militar a um espaço expositivo efémero. O imenso edifício é, em si, um protagonista da exposição. Foi mosteiro e serviu de quartel, estando ao abandono há vários anos. Um abandono que deixou marcas.
Para abrir as portas com trabalhos de Jimmy Durham, Julião Sarmento, Louise Bourgeois ou William Kentridge era preciso uma recuperação. "Como é que podemos, com gestos muito simples, tornar habitável um edifício?", questiona Carlos Antunes, para introduzir a intervenção no antigo quartel, que acaba por se cruzar com o tema agregador da bienal que decorre entre 11 de Novembro e 30 de Dezembro, "curar e reparar".
A expressão "gestos simples" é também uma referência ao orçamento da bienal que, com 325 mil euros, não daria para levar a cabo um trabalho de recuperação muito mais profundo. "O tempo de haver milhões para fazer tudo acabou. Hoje é fundamental encontrar estratégias de intervenção que possam reabilitar os edifícios", sem que isso implique a despesa de somas avultadas, diz o director do CAPC, estrutura que produz o Anozero.
Esta é também uma oportunidade de tornar o mosteiro visitável. Se uma parte do edifício é ocupada pela Confraria da Rainha Santa Isabel, e está aberta a visitas do público, a parte norte, que pertence ao Ministério da Defesa, foi desactivada há anos e encontra-se encerrada e desocupada. "Em boa verdade, a cidade desconhece este edifico", aponta Carlos Antunes. Haverá a possibilidade de corrigir essa situação durante pouco mais de mês e meio.
Depois da bienal, o futuro do mosteiro é ainda incerto. Em 2016 o espaço do edifício que corresponde ao antigo quartel foi integrado no Revive, o programa do governo português que quer recuperar o património histórico através da concessão a privados e consequente desenvolvimento turístico.
Um edifício aterrador
Entre Novembro e Dezembro, serão mostradas em Coimbra obras de vídeo, fotografia, pintura, instalação, escultura e performance de 35 artistas. E não só em Santa Clara. A bienal estende-se por mais espaços da cidade como o CAPC, a Sala da Cidade, o Museu da Ciência e o Colégio das Artes, obedecendo sempre ao mesmo signo de "curar e reparar".
No grande complexo de Santa Clara, o público será obrigado a seguir um circuito, explica Delfim Sardo. "Tem uma determinada narrativa, mais do que simbólica, que é uma gestão emocional de um percurso." A temperatura das peças, o grau de emotividade que elas têm, foi pensado, de uma determinada maneira, para serem absorvidos pelos visitantes da exposição.
Quando o PÚBLICO percorreu a área do mosteiro com Carlos Antunes e Delfim Sardo, no final de Outubro, o percurso ainda era perturbado por andaimes, instalação de fios eléctricos, cabos pelo chão e pela instalação em curso das peças.
"Quando entrámos, tivemos um postura de fascínio completo pelo espaço." Mas um fascínio que se confundia com um sentimento aterrador, pelo estado em que se encontra e pela escala. Aqui dentro há obras de arte concebidas a pensar nas características do percurso e outras que se encaixam no plano do curador. No antigo refeitório, uma ampla divisão com um pé direito de 13 metros, por exemplo, vai estar uma obra de Fernanda Fragateiro, que utiliza as caleiras do chão como elemento. "Há projectos que são concebidos como apontamentos no próprio edifício e outros que têm uma presença escultórica, sonora ou pictórica", sintetiza Delfim Sardo.
Carlos Antunes aponta para uma peça instalada logo a seguir ao refeitório como exemplo de um trabalho que se encaixa no local, não tendo sido concebido propositadamente. No entanto, tanto a instalação das peças como os trabalhos no edifício seguem a mesma tentativa de rigor, desde a cor dos fios eléctricos a uma instalação sonora de Dominique Gonzalez-Foerster que implicou a remoção da marca das colunas para manter a invisibilidade. A obra intitulada Promenade envolve o espectador com o som de uma tempestade tropical à medida que este percorre o corredor.
Depois há as características do espaço que limitam o que pode ou não ali ser exibido. Uma instalação de desemho de Matt Mullican, por exemplo, não poderia ser mostrada no mosteiro, onde não há controlo sobre a humidade do ar.
No museu temporário de Santa Clara-a-Nova há também momentos de pausa integrados no percurso, em que se aproveita o espaço, como uma antiga capela que serve de cafetaria ou uma cozinha que assume as funções de livraria.
Arte e arquitectura
O tema do Anozero parte do título do livro Ill Fares the Land (O mal ronda a terra), do historiador Tony Judt. "Há toda uma reflexão sobre a ideia do curar e reparar o património, que se pode iniciar pela forma como nós próprios estamos a intervir sobre o espaço", afirma Carlos Antunes. Um espaço que foi monástico e militar, que dá a possibilidade aos artistas de "intervirem a partir desta sobreposição de dois tempos".
A ocupação militar “não deixou de ser muito marcante do ponto de vista da transformação", que implicou a utilização do espaço "sem nenhum pudor". O edifício apresenta as marcas do dois tempos: um "desenho com qualidade" e uma "intervenção mais rude" relacionada com a "necessidade funcional dos militares".
Foi essa a base de trabalho. O mosteiro "não foi embonecado", sublinha Delfim Sardo para explicar o que está à vista. Nisto, aponta para uma mancha verde de humidade que marca a parede da sala do onde vai exibir a norte-americana Marwa Arsanios. "Foi-lhe proposto que deixasse o espaço assim, porque é o estado em que o edifício foi encontrado." Esta espécie de "intervenção todo o terreno" funciona também como uma "reflexão entre arte e arquitectura", num exercício que admite "possibilidades de ver o espaço de formas completamente distintas".
Carlos Antunes resume que a intervenção se baseou em "garantir a operacionalidade do edifício", como o funcionamento da instalação eléctrica. Desde o início de Setembro há uma equipa de 15 pessoas a trabalhar permanentemente no mosteiro. Para esse trabalho contribuíram os apoios mecenáticos, com as ajudas a chegarem em várias formas, seja de bens, monetária ou através de voluntariado. Esta, refere, é também uma missão da bienal: "criar empatia" com a cidade.
O Anozero é promovido pela Universidade de Coimbra, pela Câmara Municipal de Coimbra e pelo Turismo Centro de Portugal e tem financiamento comunitário através do programa Lugares Património Mundial do Centro. A entrada nos espaços é gratuita, com excepção daqueles, como o Museu da Ciência, onde já seria preciso comprar bilhete.