A Mata Nacional de Leiria foi-se. Que raio de país!
Não há volta a dar: desta vez o Estado é 100% responsável por tudo o que aconteceu no pinhal.
Lá se foi o Pinhal do Rei, que tristeza. Era a joia da coroa da floresta portuguesa com os seus 11.062 hectares de viçosa floresta de pinheiro bravo. A maior propriedade florestal em Portugal, a mata nacional mais emblemática e que serviu de modelo para o ordenamento de muitas outras matas públicas, comunitárias e privadas. Lá se foi o vasto conjunto de árvores e maciços arbóreos classificados de interesse público e o património construído de elevado valor histórico-cultural.
Tem-se dito, e é verdade, que as áreas florestais neste país estão todas retalhadas em pequenas propriedades, pasme-se de um a três hectares, ingeríveis em termos florestais, e por conseguinte dificultando o combate dos incêndios. Pois é, mas aqui estamos perante uma única propriedade de 11.062 hectares e o Estado como único proprietário de tão grande mancha florestal. O Estado conseguiu falhar desta vez diretamente a todos os níveis, em termos de gestão florestal, de prevenção e em termos de combate. Não há volta a dar, desta vez o Estado é 100% responsável por tudo o que aconteceu no pinhal. Aliás, está bem à vista que o Estado abandonou a floresta portuguesa há muito tempo e que não eram só as dos outros que ardiam. Não se esperava muito num país que desinvestiu tanto na floresta e que conseguiu destruir uma organização florestal centenária. De facto, em 1996 (era primeiro-ministro António Guterres e ministro da Agricultura Fernando Gomes da Silva) foram eliminados os Serviços Florestais, deixando que uma nova Direcção-Geral das Florestas se transformasse numa estrutura central, passando a parte desconcentrada a ser incluída nas Direcções Regionais de Agricultura, que nunca possuíram vocação florestal. Extinguiu-se um serviço capaz e proativo por uma máquina burocrática, deixando perdidos e em função ambígua centenas de guardas e mestres florestais, que deixaram de ter intervenção direta na gestão e fiscalização das Matas Nacionais e Perímetros Nacionais. Em resultado direto desta medida, as Matas Nacionais deixaram de ter ao seu serviço funcionários que frequentemente possuíam grande valia técnica e detinham profundo conhecimento da realidade local. No seguimento desta política, em 2006, o Corpo Nacional da Guarda Florestal que ainda fiscalizava o cumprimento de legislação nos espaços florestais foi extinto e os seus efetivos foram integrados na GNR, passando da alçada do Ministério da Agricultura para a do Ministério da Administração Interna. Era primeiro-ministro José Sócrates, ministro da Agricultura Jaime Silva e ministro da Administração Interna António Costa.
A autoridade florestal mudou tantas vezes que até mesmo para um técnico florestal experiente se torna confuso entender as alterações de políticas florestais que têm sido seguidas no nosso país. Antes havia apenas os Serviços Florestais criados em 1886, na dependência da Direcção-Geral de Agricultura. Em 1919 surge a Direcção-Geral dos Serviços Florestais e Aquícolas. Em 1975 é criada a Direcção-Geral dos Recursos Florestais. Passa a Direcção-Geral do Ordenamento e Gestão Florestal em 1977. Passa a Instituto Florestal em 1993. Surge, em 1996, a nova Direcção-Geral das Florestas. Em 2004 passa a nova Direcção-Geral dos Recursos Florestais. Em 2008 surge a Autoridade Florestal Nacional, e em 2012 surge o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas. Isto é um resumo não exaustivo, pois, entretanto, as leis orgânicas de alguns destes organismos mudaram, e houve toda uma panóplia de agências, divisões e serviços ligados à floresta e conservação da natureza que iam surgindo e desaparecendo. A floresta precisa de estabilidade, mas nada disto tem sido oferecido pelos nossos políticos.
Para se ter uma ideia do desinvestimento na floresta, tome-se que na década de 1980 a Mata Nacional de Leiria possuía duas administrações florestais distintas (Engenho e Vieira de Leiria), sendo a sua gestão apoiada tecnicamente também pelos Serviços Florestais sediados na Marinha Grande. Estavam diretamente afetos à gestão da mata quatro técnicos, quatro mestres florestais, 29 guardas florestais e 144 trabalhadores rurais. Provavelmente muitos dos guardas e mestres ocupavam as 50 casas de guardas florestais existentes no perímetro da mata. Por contraste, à data de 2012, estavam afetos apenas um técnico a tempo parcial (tendo a cargo simultaneamente a gestão da Mata Nacional do Casal da Lebre) e 19 assistentes operacionais também a tempo parcial (pois trabalhavam também nas Matas Nacionais do Casal da Lebre, Ravasco, Pedrógão e Urso). Embora não tenha elementos para o afirmar, pela tendência de desinvestimento na floresta, à data do desastre de 15 de Outubro de 2017 é provável que os números não fossem melhores. Hoje todas as casas de guarda florestal estão desabitadas e ao abandono.
A Mata Nacional de Leiria precisava atualmente de manutenção dos caminhos, do desbaste das florestas densas, da limpeza de matos por métodos mecânicos e do controlo de vegetação através de fogo controlado, tudo isso fazia falta. Precisava também que as rearborizações fossem feitas através de plantações. Sim, porque na gestão corrente da mata após o corte raso de um talhão optava-se pela opção mais barata: fazer o reaproveitamento da regeneração natural através do banco de sementes de pinheiro existentes no solo. Perguntam-me se isso resulta e é válido. Sim, é possível e está nos manuais de silvicultura, porém a plantação, entre outras vantagens, diminui o risco de incêndio comparativamente a deixar crescer milhares de pinheirinhos em manto contínuo até que venham a ocorrer as intervenções de desbaste (também chamadas de limpezas). Apenas por volta dos dez anos de idade as densidades de árvores ficam regularizadas. É muito tempo para manter um tão grande risco! Mas então se a Mata Nacional de Leiria era rica, por que não se fazia as manutenções e se optava pela plantação? De facto, a mata era rica. Por exemplo, entre 2000 e 2011 houve uma média anual de receitas (corte de madeira e resinagem) de quase dois milhões de euros/ano (1.900.417). E os investimentos (limpezas, controlo de vegetação, desramações, etc.) foram de 159.700 euros/ano. Com esta tesouraria, era para a mata estar impecável e exemplarmente tratada, mas isso não ocorria. As receitas anuais iam para os cofres do Estado, ficando a mata com as parcas disponibilidades financeiras distribuídas a custo pelo Orçamento do Estado. Não se reinvestiu na mata e agora Inês é morta.
Por fim, resta-me dizer que ainda assim a mata era uma referência, o estado de gestão dela, aparte os talhões de regeneração natural, era razoável. Os volumes de madeira eram incríveis, as árvores eram esbeltas e davam toros retos e de grandes dimensões. 11.062 hectares de fazer inveja às florestas de pinheiros no Brasil, que é uma das melhores referências de florestas plantadas de pinheiro do mundo. Além disso, a área era plana e ainda com plena possibilidade de circulação de meios a combate de incêndio em todo o perímetro dos talhões. Não sei por isso como deixaram a mata arder. Talvez os três postos de vigia da mata (Facho, Novo e Castinhas) estivessem encerrados a partir de 1 de Outubro, não tendo sido identificado o foco de incêndio prematuramente, os meios aéreos também podiam estar nos mínimos, talvez tenha havido incompetência no combate ao fogo e, por fim, é muito provável que os bombeiros não tenham sabido e querido combater o incêndio florestal, que não tenham usado máquinas pesadas para a abertura de faixas de interrupção de combustível e que tenham dado prioridade a posicionarem-se junto às infraestruturas e aglomerados populacionais ao invés de focar meios para proativamente proteger a floresta. Exige-se uma explicação de como foi possível que numa mancha florestal relativamente fácil de combater, ao comparar com a região do Pinhal Interior, pode ter ocorrido tamanho desastre sem nada que o abreviasse!
A comunicação social falou em 80% da Mata Nacional de Leiria ardida, porém ainda arderam ao lado desta parte muito significativa das Matas Nacionais de Pedrogão e a do Urso. Propriedades do Estado com, respetivamente, 1816 hectares e 6053 hectares. Falta quantificar este desastre.
Agora que tudo ardeu há muita coisa a fazer. Está nas mãos do Estado fazer o que for preciso de agora adiante, e não é complicado, já que o Estado tem gerência absoluta na mata. Será preciso cortar a madeira ardida mas antes tem de se pensar onde colocar essa madeira, pois o mercado nacional não irá conseguir absorver tanta madeira em tão curto espaço de tempo. Tem de se pensar na exportação e também na conservação em pátio da madeira em toros. Depois há que plantar, evitando ao máximo o simples reaproveitamento da regeneração natural, utilizando para esse fim a semente melhorada do pomar clonal de sementes de 1.ª geração que se encontra instalado na Mata Nacional de Escaroupim. O material vegetal desse pomar representa um trabalho exaustivo de seleção das melhores árvores identificadas na própria Mata Nacional de Leiria na década de 1960, e que após diversos testes de descendência pressupõe ganhos de crescimento e de volume na ordem dos 30% relativamente à média dos povoamentos originários.
O soundbite, repetido à exaustão, que o Governo fez uma “reforma da floresta” pode iludir alguns. É um absurdo falar na existência da reforma da floresta, uma reforma mexe com interesses instalados e tem de ser acompanhada de investimento público, este conjunto de leis aprovadas, independentemente da sua oportunidade, não é nenhum dos casos. Este é o momento do Governo para mostrar a toda a gente que, para além de saber falar, consegue também fazer alguma coisa pela nossa floresta.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico