Quando os chefs vão caçar codornizes para o jantar

Com os menus Matéria, no Feitoria, João Rodrigues quer mostrar de onde vêm os animais que comemos. Desta vez, convidou o britânico James Lowe para fazerem juntos um jantar, mas, antes disso, levou-o ao Alentejo para conhecer produtores e restaurantes e para caçar codornizes.

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Despertador para as seis da manhã, saída marcada para as sete. E já não vamos cedo. Rita e João Cavaleiro Ferreira, os proprietários da Casa do Terreiro do Poço, em Borba, estão a preparar-nos o pequeno-almoço, acordados e bem-dispostos como se tivessem dormido uma noite de sono completa.

Temos sumo de laranja natural, pão fresco, sericaia e até dióspiros apanhados no jardim e toucinho de porco preto. Comemos como se nos esperasse um duro dia de trabalho no campo. Não é exactamente isso, mas, de qualquer forma, vamos para o campo. Para a caça.

Estamos todos aqui por causa de um chef: João Rodrigues, do Feitoria, no Altis Belém, está a pôr em prática uma ideia na qual vem pensando há já algum tempo. “O [projecto] Matéria começou por ser um menu no restaurante”, explica. “Mas sabia que criar um menu com o foco no produto ia-me obrigar a conhecê-lo melhor. Há sempre questões com que te deparas, um peixe que nunca trabalhei, por exemplo, onde é que se arranja, de onde vem, como é pescado? Percebi que me falta muito conhecimento.”

Percebeu também que só havia uma forma de conhecer melhor o produto: ir à origem. Decidiu então fazer uma série de jantares convidando sempre um chef estrangeiro e levando-o a uma região de Portugal para conhecer produtos e produtores. Um dos ensonados que aparece, já um pouco atrasado para o pequeno-almoço e desculpando-se por isso, é o chef britânico James Lowe, o primeiro convidado da série de cinco jantares (entre Outubro e Fevereiro) do Feitoria. Acaba de passar a noite num dos 14 quartos da Casa do Terreiro do Poço — precisamente aquele que João e Rita decoraram como se fosse uma cozinha.

Lowe, do restaurante Lyle’s, em Londres (uma estrela Michelin), organiza todos os anos um evento, em que convida também chefs de outros países, em torno do tema da caça. “Trouxemos o James ao Alentejo, que é um sítio de caça por excelência, estamos na época da caça, encaixava perfeitamente no que pretendemos”, diz João Rodrigues.

Falta ainda conhecermos uma figura que será a alma deste dia: Camilo Rodrigues, o pai de João, caçador e que vai provar ser também um excelente cozinheiro com a feijoada de lebre que comeremos mais tarde em Pavia, na propriedade de Joaquim Arnaud, produtor de vinhos, presuntos e outras especialidades do porco preto.

Mas, para já, é tempo de caça. “A época de caça em Portugal começa a 15 de Agosto, com as rolas, os patos, a 1 de Setembro são os coelhos, as codornizes, em Outubro, as lebres, as perdizes. A época dos pombos só termina em Fevereiro. Já a rola, que é migratória, vai para o Norte de África no final de Setembro”, explica Camilo, que durante todo o dia falará em português para um James Lowe que acena que sim com a cabeça, sorrindo, sem perceber grande coisa.

O que se pode caçar hoje são codornizes, uma ave que James nunca caçou. Mais tarde, enquanto esperamos pelo almoço, explica-nos de onde vem o fascínio pela caça. “É uma das coisas que distingue a cozinha inglesa”, diz. “Noutros países, a caça é muitas vezes um hobby e as quantidades não são suficientes para chegar aos restaurantes. Mas as políticas de conservação no Reino Unido são uma preocupação há muitos anos e os stocks mantêm-se elevados.”

Foi há cerca de dez anos que começou a cozinhar caça. “Achei fascinante. Há algo de muito especial num animal que não é criado em cativeiro, tanto eticamente como em termos de sabor, e isso era algo que queria mostrar a pessoas de outros países.”

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"Há algo de muito especial num animal que não é criado em cativeiro, tanto eticamente como em termos de sabor, e isso era algo que queria mostrar a pessoas de outros países.” Fabrice Demoulin

Eticamente? Não é precisamente essa uma das questões que se levanta sempre que se fala de caça? “É verdade que as pessoas sentem uma maior familiaridade com a ideia de as vacas, ovelhas ou porcos morrerem numa quinta. Como não vêem, assumem que está tudo bem. Quando são confrontadas com um animal selvagem, isso força-as a pensar mais na forma como foi morto e não gostam.”

E prossegue: “As pessoas associam armas com barbárie, mas eu diria que há algo muito mais errado em enfiar 50 galinhas num metro quadrado, deixar animais viver só três meses, matá-los em massa, processar milhares por dia. São animais que vivem em jaulas, sabem que vão morrer, estão com medo e traumatizados.”

No meio do campo, os cães correm, excitados, farejando as codornizes. Quando localizam uma, param, corpo em tensão, controlo absoluto, indicando ao dono o seu feito. Nós não conseguimos ver nada. A codorniz mantém-se imóvel. “Diz ao homem para ir”, lança Camilo para o filho. E João, dirigindo-se a James: “Run, run.” De repente, a ave sobe num voo, James aponta a arma e estala um tiro. A codorniz, atingida, cai e o cão lança-se a apanhá-la.

Não será dia de grande caçada, a ideia é mais James ficar a conhecer o Alentejo. Na véspera tínhamos já visitado a fábrica de enchidos SEL – Salsicharia Estremocense, ouvido as explicações sobre a forma como são feitos os enchidos e outros produtos de porco preto alentejano e visto os fumeiros. À noite — e porque a ideia de João Rodrigues é envolver nos cinco jantares um chef da região, jantámos em Estremoz, na Mercearia Gadanha, de Michele Marques (que no dia 12 se juntou a João e James para o menu do jantar no Feitoria, onde apresentou um prato de borrego, mioleira e maçã Bravo de Esmolfe e outro de boletos e toucinho fumado).

No final da breve caçada, enquanto os cães bebem água e James recupera do calor inusitado deste Outubro em Portugal, Pedro Pereira, responsável pela gestão deste couto de caça perto de Montemor-o-Novo, conversa também sobre a imagem negativa que a caça tem junto de muitas pessoas. “Se não fossem os caçadores, muitos destes animais já não existiam. A caça é gerida e se a queremos vender, temos que criar as condições para que ela exista. Somos nós que cuidamos das sementeiras e das linhas de água para os animais selvagens, mais ninguém o faz. O Estado alheou-se completamente disto.”

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James Lowe não quer reivindicar louros, mas conta que nos últimos anos houve um regresso em força dos pratos de caça aos restaurantes britânicos. “Os chefs tinham medo de servir caça, como não a compreendiam nunca a cozinhavam." Fabrice Demoulin

Para Pedro Pereira, a grande responsável pelo desaparecimento de tantas espécies selvagens é a agricultura moderna. “O uso de químicos, de pesticidas, a intensificação da maquinaria destrói os ninhos. E mesmo que consigam fazer criação, no início da vida as aves precisam de insectos porque ainda não há grão no campo, então vão para zonas onde há mais insectos e são pulverizadas com os químicos que matam os insectos.”

E, lamentando que o número de caçadores em Portugal esteja a diminuir drasticamente — “Há vinte anos éramos cerca de 400 mil, hoje somos 100 mil e poucos” —, defende a importância do controlo das espécies e dá o exemplo dos javalis. “São espécies que estão a aumentar exponencialmente, criando graves prejuízos à agricultura. Já há vários acidentes causados pelos javalis e como não há um predador para eles, isso torna-se um problema.”

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Fabrice Demoulin

Dá como exemplo o que se passou na Holanda: “Decidiram proibir a caça aos gansos e a população aumentou de tal maneira que a solução foi o Estado pagar para milhares de gansos serem gaseados.” Abanando a cabeça, conclui: “A caça é necessária para o ecossistema se regular.”

James Lowe não quer reivindicar louros, mas conta que nos últimos anos houve um regresso em força dos pratos de caça aos restaurantes britânicos. “Os chefs tinham medo de servir caça, como não a compreendiam nunca a cozinhavam. Algumas aves têm um sabor forte e muitos ossinhos pequenos que tornam mais difícil comê-las. Mas há dez anos o que os restaurantes de fine dining serviam eram purés, filetes, bife, salmão, tudo o que tivesse uma textura macia e fosse muito seguro. Comida que não ofendia ninguém.”

Pensar no que nos alimenta

O que João Rodrigues pretende com um projecto como o Matéria é precisamente tirar as pessoas dessa zona de conforto e levá-las a pensar no que são os produtos que comem antes de eles lhes aparecerem transformados no prato. “Levamos o produto à mesa para a pessoa ter contacto com ele e não apenas com um prato acabadinho e muito bonito. Não as podemos levar ao campo, como fizemos com o James, mas pelo menos sentem o cheiro, mexem, se quiserem.”

E como reagem?  “Há quem adore e se reveja no que estamos a fazer e quem odeie. Alguns têm uma repugnância total, não gostam do cheiro da maresia, não gostam de ver os bichos.” Mas o chef do Feitoria não tem dúvidas sobre o caminho que quer seguir com o projecto Matéria.

O primeiro objectivo é pôr chefs de outros países em contacto com as regiões e os produtos portugueses, esperando que isso lhes desperte o interesse. No jantar no Feitoria, por exemplo, James Lowe cozinhou num dos pratos dourada, citrinos, batata-doce e carabineiro; noutro, atum, emulsão de fígado e pimento chocolate, a codorniz foi servida com romã e beringela queimada e na sobremesa usou marmelo e merengue de castanha. “Queremos uma dinâmica que envolva todos os sectores”, sublinha João. “E queremos momentos como este, em Pavia, em que comemos uma sericaia, uma feijoada de lebre, bebemos os vinhos do Joaquim Arnaud, ele fala dos produtos dele com alegria, cantamos, rimos, trata-se disso, partilha, comunhão. Esperemos que o James volte feliz para casa.”

O segundo objectivo é pensar no que nos alimenta. “As pessoas podem fingir que não sabem ou que não vêem, mas não vão achar que as codornizes nascem nas prateleiras dos supermercados. Um animal que veio de uma produção industrial foi engordado com farinhas e morto com choques eléctricos. O Matéria tem a ver com isso. As pessoas vivem numa fantasia e por isso há quem coma gato por lebre e fique maravilhado. Mais cedo ou mais tarde vamos ter que voltar às origens. Se quisermos viver no conforto de tirar a embalagem do supermercado, temos que ter consciência do que significa para o planeta.”

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Este é, para um chef, um projecto arriscado? Sim, sobretudo porque “hoje fala-se muito em não correr riscos”. Mas, garante João, “este é o caminho em que acreditamos e que queremos seguir”.

 

 

 

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