Estas consultas começam atrás do ecrã

As videoconsultas não são para todas as especialidades nem para todos os utentes. Esbatem distâncias e tempo, dizem os adeptos. Mas dificilmente o diagnóstico "poderá passar pelo Skype". Falada há mais uma década, a telemedicina ainda carece de regulação, diz especialista em Bioética.

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"Quando há necessidade de fazer o diagnóstico do utente, isso nunca poderá passar pelo Skype", diz o médico Diogo Medina Rui Gaudêncio
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A acessibilidade é o ponto forte, diz Carolina Birr. “Há pessoas, normalmente entre os 20 e os 40 anos, que estão confortáveis na Internet e se sentem melhor em casa” Rui Gaudêncio

Lillian Barros viveu até aos 18 anos no Algarve, uma das zonas do país mais desfalcadas em serviços de saúde, e aprendeu o que “era viver limitada no acesso a algo tão básico”. A noção de distância desapareceu quando começou a estudar nutrição em Lisboa, para rapidamente voltar quando viu, com a crise, alguns dos seus doentes emigrarem. “Muitas pessoas que acompanhava saíram do país e não conseguiam ter um acompanhamento nutricional que falasse a mesma língua e que entendessem a nossa dieta.” Foi dessa necessidade de continuar a acompanhá-los à distância — que tanto lhe lembrava a distância dos algarvios em relação à saúde — que se juntou a uma amiga para fundar a plataforma Nutricionistas Online.

Um dia por semana dá consultas por videoconferência. Ela, sentada no escritório de casa ou à mesa do seu consultório, o utente onde quiser. Este marca a consulta por email, paga e envia a sua ficha clínica. À hora combinada ambos estão em frente ao computador, telefone ou tablet e ligam o Skype, o Facebook ou o Whatsapp — “onde a pessoa se sentir mais confortável”. A partir daí é “como em qualquer outra clínica”, descreve Lillian Barros. Foi a plataforma onde trabalha que lhe permitiu durante os últimos dias de gravidez continuar a dar consultas.

A possibilidade de fazer consultas por videochamada é cada vez mais comum em Portugal. Há médicos, psicólogos e nutricionistas que operam no privado a desdobrar as horas de trabalho entre consultas presenciais e online. Como Lillian, Carolina Birr, psicóloga, e Diogo Medina, médico, encontraram na Internet um meio para chegarem aos utentes e complementarem as consultas presenciais. Os três mantêm os consultórios físicos e concordam que as consultas por vídeo não substituem, mas complementam, o trabalho presencial.

A acessibilidade é o ponto forte, diz Carolina Birr. “Há pessoas, normalmente entre os 20 e os 40 anos, que estão confortáveis na Internet e se sentem melhor em casa”, repara a psicóloga. A plataforma de videoconsultas através da qual trabalha, a Zenklub, tem-lhe permitido aproximar-se de um público cada vez mais jovem, “até aqui reticente em passar a porta de um consultório de psicologia”.

A telemedicina “é uma grande ajuda nas doenças envergonhadas”, diz Diogo Medina, como as doenças mentais e as sexualmente transmissíveis, em que o estigma pode levar os utentes a não procurarem tratamento ou prevenção. Médico na associação GAT — Grupo de Activistas em Tratamentos, onde acompanha pessoas infectadas com o vírus VIH/sida, as consultas online permitem-lhe prescrever vacinas “a quem não teria acesso”. “Isso é notório quando há grandes surtos, como aconteceu com a Hepatite A. Conseguimos prescrever a vacina para pessoas do Algarve, do Porto, das Beiras, um pouco por todo o interior, que não iriam procurar ajuda num centro de saúde da sua terra”, descreve.

Um parecer do conselho médico-legal da Associação Portuguesa de Bioética, de 2008, já vincava a ideia de que “a teleconsulta pode permitir uma acessibilidade acrescida aos serviços de saúde, nomeadamente a determinadas especialidades médicas carenciadas”. “Pode igualmente ser considerado o meio mais eficaz em casos de urgência”, notava.

Nos serviços públicos

As consultas médicas por videoconferência são também a solução encontrada pelo Ministério da Justiça para que os reclusos não sejam obrigados a deslocarem-se algemados. As especialidades abrangidas ainda estão por definir e a medida está neste momento pendente, à espera de um sistema que permita aos estabelecimentos prisionais aceder às plataformas informáticas da saúde. Assim que esteja disponível, as consultas por videoconferência vão começar a ser feitas, como projecto-piloto, nos estabelecimentos prisionais de Linhó, Sintra, Tires e Porto (Custóias), adiantou a tutela ao PÚBLICO.

Repara o Ministério da Justiça que a realização de algumas consultas por videoconferência “representa uma significa redução de custos para o Estado”, uma vez que uma consulta nos moldes tradicionais implica que “o recluso se desloque ao hospital ou centro de saúde numa viatura celular acompanhado de dois guardas prisionais”.

Só este ano, até Agosto, foram realizadas quase 19 mil teleconsultas no Serviço Nacional de Saúde (mais nove mil que no ano passado), em que o utente está sempre acompanhado por outro médico. Segundo o gabinete dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, as consultas podem ser feitas em tempo real ou em diferido, como o caso de um médico de família que envia fotografias da pele e a informação clínica para um especialista e “este devolve o diagnóstico e orientação terapêutica”.

Para além da dermatologia, estas consultas são frequentes em especialidades como a cardiologia, nefrologia, oftalmologia — para rastreio da retinopatia diabética —, endocrinologia, neurologia (via verde do AVC) e medicina interna.

Mas há “pessoas que sentem falta do contacto físico, da presença do outro na mesma sala”, para quem não faz sentido recorrer à consulta online, repara a psicóloga Carolina Birr. É uma questão de gosto para uns, de gestão para outros. “Em muitos casos pode ser feito um equilíbrio: ter uma primeira consulta presencial, para que a avaliação seja mais correcta possível, e continuar o tratamento através do vídeo”, acrescenta a nutricionista Lillian Barros.

Ainda que se assuma como uma alternativa, as teleconsultas não são para todas as pessoas, nem para todas as especialidades. “A telemedicina funciona bem na medicina preventiva. Na prescrição de medicamentos e vacinas, no aconselhamento”, diz Diogo Medina. “Mas quando há necessidade de fazer o diagnóstico do utente, isso nunca poderá passar pelo Skype.”

O diagnóstico é uma das “muitas razões para preocupação” que Rui Nunes, professor na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e especialista em Bioética, vê na telemedicina. Afirma que “os médicos não podem dar um passo maior do que a perna”, ao fazerem um diagnóstico sem estarem munidos de todos os meios para tal. “Na maioria das situações é preciso olhar a três dimensões, para além da necessidade óbvia de auscultar e fazer outros exames.” O que não se aplica à medicina preventiva e, muitas vezes, à psicologia, repara.

Rui Nunes reconhece “óptimos contributos para o acompanhamento de tratamentos e situações de emergência”, mas acredita que a telemedicina tem que ser “extremamente regulada”, o que ainda não acontece. “Já era tempo de existir regulação e um enquadramento, até pedagógico, para que os médicos e utentes saibam o que está em causa, o que vale e o que não vale.”

Do ponto de vista ético, entende, tem que ser estabelecido à priori “o que é uma consulta e o que é um conselho”, sob risco de os médicos virem a ser processados. Acredita Rui Nunes, também presidente da Associação Portuguesa de Bioética, que “a telemedicina não deve substituir a natureza intrínseca ao acto médico que é a proximidade e a relação de confiança com o doente, assim como a qualidade da medicina.” E tem que haver uma especial atenção para a digitalização dos dados, “que podem pôr em risco a confidencialidade”.

“Não ando de pijama”

Não raro os utentes colocam dúvidas por email e os clínicos acompanham os tratamentos “à distância”, diz Rui Nunes. Daí a necessidade de “regular em que situações este apoio pode ser enquadrado como acto médico”.

Há situações em que as consultas por videochamada são esporádicas, quando as circunstâncias o obrigam. Cada vez mais especialistas e clínicas oferecem esta possibilidade de orientação médica online, que começa também a ser coberta por alguns seguros de saúde.

“Em qualquer um dos casos é preciso assegurar a confidencialidade e sigilo profissional e isso não muda por estarmos na Internet”, garante Diogo Medina.

Quem o faz diz que as regras não são mais relaxadas. “Eu não ando de pijama nem faço consultas no meu quarto”, sublinha Carolina, e os três procuram “um lugar recatado, silencioso, onde nada possa comprometer o sigilo profissional”.

No online trabalha-se “mais fora de horas”. Diogo Medina, que também faz videoconsultas para viajantes no portal Consulta do Viajante, fá-lo quase sempre em casa, antes ou depois do trabalho num centro de saúde. Grande parte dos utentes está no local de trabalho à hora da consulta, outros escolhem o fim de jantar. “É uma forma de muitas pessoas não terem que faltar ao trabalho. Podem procurar uma sala, e as duas horas que levariam no caminho, estacionamento e na sala de espera, transformam-se apenas no tempo consulta.”

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