Um homem, uma mulher e o que a multidão fará com eles
Até 22 de Outubro, António Cabrita e São Castro apresentam a sua versão de Dido e Eneias para a Companhia Nacional de Bailado. Com a ajuda de Gonçalo M. Tavares, a dupla de coreógrafos visita uma história de desencontro amoroso.
Dois comboios param numa mesma estação. Frente a frente. Por trás das janelas de cada comboio, um homem e uma mulher trocam olhares, vislumbram em poucos segundos uma história de amor a cumprir-se e um futuro comum a desenhar-se e, pouco depois, as locomotivas retomam a marcha e esse momento esfuma-se. Não é exactamente esta a história de Dido e Eneias, mas esta imagem batida em tudo quanto é guião cinematográfico foi uma das que o escritor Gonçalo M. Tavares levou consigo para discutir com os coreógrafos António Cabrita e São Castro a peça que preparavam a partir da ópera barroca que Henry Purcell escreveu em 1688, com libreto de Nathan Tate.
Tratando-se da primeira estreia da Companhia Nacional de Bailado (CNB) na temporada 2017/18, a inaugural de Paulo Ribeiro enquanto director, a peça que ocupará o Teatro Camões, em Lisboa, de 12 a 22 de Outubro resulta ainda de um convite dirigido à dupla de coreógrafos pela antecessora de Ribeiro no cargo, Luísa Taveira (actualmente administradora do Centro Cultural de Belém). “A proposta na altura assustou-nos um bocadinho”, confessa ao PÚBLICO São Castro. “Não estávamos nada à espera de pegar numa obra assim tão icónica nesta fase. E nunca havíamos trabalhado com música cantada, o que para nós foi um grande desafio.”
Por coincidência, a derradeira sequência de Rule of Thirds, a anterior criação da dupla para um colectivo – pelo meio houve Um Solo para a Sociedade –, terminava com uma obra de Purcell, um excerto de King Arthur, a que subtraíram a voz por ser “muito impositiva”. Agora riem-se dessa decisão – afinal, a armadilha a que tinham tentado fugir antes não lhes permite agora qualquer escape. Daí que se tenha tornado uma preocupação muito presente o modo de relacionar a palavra e o movimento, sem levar à letra o libreto da ópera Dido e Eneias. “Tentámos desconstruir a partir da linguagem que vimos desenvolvendo, a partir da nossa identidade”, comenta a coreógrafa. “Quisemos trazer um lado abstracto, ao mesmo tempo que tentámos aproveitar a palavra e utilizá-la como se fosse uma extensão daquilo que significa, daquilo que está por detrás, mais como um conteúdo emocional. Acho até que desta vez não demos tanta importância como noutras obras à palavra como construção do movimento, concentrámo-nos nesse conteúdo emocional – quem está a falar, de onde vem, para quem fala.”
Esta ideia que lhes surgiu ao longo do processo, de utilizar a história mas relativizar a dramaturgia original, alimentou uma das conversas com Gonçalo M. Tavares – o escritor foi-lhes sugerido por Paulo Ribeiro, enquanto “alguém da palavra que também tivesse uma relação com o corpo” dançado –, mas concordaram em não partir rumo a um território desconhecido. “A ópera está muito desenhada e então deixámo-nos levar intuitivamente por isso”, diz António Cabrita. “Desta vez tínhamos mesmo uma partitura e construímos sobre ela, coisa que nunca tínhamos feito até hoje.”
Essa exploração do motor emocional da coreografia recupera, em parte, a abordagem à obra de William Shakespeare que António Cabrita e São Castro aplicaram no dueto Play False (2014). Da mesma forma que na altura não era fundamental que o público pudesse reconhecer nos seus movimentos Lady Macbeth ou Ricardo III, também em Dido e Eneias não é fundamental – embora a leitura do libreto ajude na relação com as cenas – conhecer em detalhe a história do amor entre Dido, rainha de Cartago, e o herói troiano Eneias.
O colectivo como pulmão
Tratando-se, na origem, de uma história desenrolada no território de Dido, é em Cartago que a encontramos nos minutos iniciais da coreografia, repisando os seus próprios passos, reclamando o seu espaço, deixando claro que será Eneias a chegar – e a partir. Aquele é o lugar do encontro mas também do desencontro. E se é lá que encontramos os movimentos iniciais de Dido, a cortina subida até menos de meio concentra-nos nesse andar inquieto, numa imagem evocadora de um cinemascope que em tudo faz pensar nas constantes ligações a outras disciplinas artísticas que a dupla sempre vem estabelecendo nas suas obras. “Nas nossas peças”, justifica São Castro, “gostamos sempre de fazer como se o público começasse por espreitar por uma fechadura, e só depois tivesse a percepção do espaço todo”.
Era também o que acontecia com Rule of Thirds, em que nos primeiros segundos nascia uma luz que, lentamente, revelava três corpos em cena. Rule of Thirds pressente-se também quando o elenco da CNB se vira na direcção de algo imperscrutável, trazendo à memória uma das imagens que na peça anterior os dois criavam a partir da obra fotográfica de Henri Cartier-Bresson. Desta vez, dizem que aquele grupo olha na direcção do que está por vir, antecipando o desfecho da história de Dido e Eneias.
Na verdade, este Dido e Eneias de António Cabrita e São Castro vive sempre do colectivo. Essa premissa, que esteve presente na criação desde o início, leva a uma recusa da “estrutura natural coreográfica de uma peça”, como lhe chamam, não obedecendo a uma sequência rigorosa de duetos, trios ou solos. “Quisemos que o grupo estivesse o tempo inteiro em cena e funcionasse como um pulmão”, explica São Castro. “Um pulmão que está ali a criar energia, a respirar e que, de repente, expulsa um solo, um dueto ou um trio, mas depois volta a recolher as personagens para se encher novamente de energia.” Ou seja, embora Dido e Eneias sejam personagens identificáveis, à excepção de alguns momentos em que chamam alguma da atenção do público, acabam por se diluir no conjunto.
“Esta peça anda muito em torno da manipulação e da conspiração”, acrescenta António Cabrita, “está cheia de contratempos ou de acções criadas por outros que levam a que as situações aconteçam”. Por isso, tanto quanto se pode ver no colectivo o tal olhar que antecipa o desfecho da história, há também nesse olhar uma certa ingerência que quer encaminhar a história para cumprir um desejo da multidão, no que pode ser facilmente interpretado como a imposição de uma vontade colectiva ao impulso do indivíduo.
E como o cenário deixa perceber, com uma espectacularidade que só se revela em pleno no final, Dido e Eneias será sempre a história do encontro e do choque entre duas forças. As das duas personagens, certo, mas também, talvez, a do impulso individual contra os mandamentos grupais.