Se por acaso aquilo que se diz sobre os casamentos — que molhado significa abençoado — também for verdade para as viagens, então esperava-nos um bendito passeio. Pela mesma lógica, o último seria o mais feliz: sob uma persistente chuva miudinha, fomos de um castelo do século XVII a uma comuna livre dentro da cidade — onde comercializam substâncias ilícitas como quem vende malas falsificadas — e, mais tarde, a um mercado de comida do mundo.
O dia começou com confirmação de que a breve visita ao Tivoli — um parque de diversões cosmopolita perto do centro da cidade — seria impossível. Ao nosso lado, um grupo de estudantes em visita da escola preparava-se para entrar, indiferente às condições meteorológicas. Não é surpreendente, tendo em conta que mais de metade das pessoas em Copenhaga andam na rua sem guarda-chuva — no limite, com o capuz.
Do Tivoli ao Castelo de Rosenborg estende-se pouco mais de quilómetro e meio — distância de 20 minutos a passo normal. Vale a pena a caminhada até lá: nenhuma fotografia, nem conversa, nos prepara para a quantidade de bicicletas estacionadas ao longo da longa avenida Nørre Voldgade, onde está localizada saída da estação Nørreport, a mais movimentada do país. Não fosse a chuva, talvez se tivesse tentado contar quantas eram. Segundo a Cycling Embassy of Denmark, as obras feitas em 2012 aumentaram a capacidade do estacionamento de 900 para 1900 bicicletas — sendo que, num dia normal de semana, os lugares estavam praticamente todos cheios.
De acordo com a empresa de design Copenhagenzie — que desde 2011 analisa anualmente as cidades mais amigas das bicicletas —, Copenhaga roubou o número um a Amsterdão. A cidade tem investido fortemente em infra-estruturas como auto-estradas de bicicletas que juntam o centro às periferias e sistemas de partilha de bicicletas eléctricas. Em 2016, o município anunciou que, pela primeira vez o número de bicicletas em circulação ultrapassava o número de carros, de acordo com o Guardian. Os ciclistas, claro, também pedalam à chuva — com auriculares e sem capacete, comandam a estrada, a altas velocidades.
O cenário de caos junto à avenida de passagem muda drasticamente à medida que nos aproximamos do Castelo de Rosenborg. O interior reflecte toda a pompa e circunstância de uma monarquia absoluta que se fazia à imagem de Versalhes. Uns dez monarcas habitaram o palácio, antes de este ser aberto ao público como museu, em 1838: Christian IV foi o original usuário do opulento quarto de mármore, Christian V construiu uma enigmática sala de vidro espelhada e Frederick IV acrescentou-lhe um pequeno esconderijo de arte erótica.
Apesar de já passar das 13h, o restaurante onde almoçámos, Aamann’s 1921, ainda estava cheio — de locais cosmopolitas, não de turistas. Os pratos são servidos na forma do típico smørrebrød dinamarquês — com ingredientes em cima de pão escuro (rugbrød) de moagem caseira. O arenque marinado entre seis a 12 meses com limão (105 coroas) é uma boa opção.
A visita à Freetown Christiania — uma zona independente da cidade, fundada por hippies nos anos 1970 — prometia ser um passeio ameno pelos vestígios de um passado excêntrico. Afinal, a colorida comuna abdicou do estatuto à margem da lei, em 2011, e adquiriu oficialmente a propriedade através de um fundo colectivo.
Os locais parecem ter ficado indiferentes. Na rua principal de Christiania — onde é expressamente proibido fotografar — vende-se cannabis como se de qualquer outro tipo de mercadoria se tratasse: black widow, icey lemon, amnesia… a escolha é do freguês! Há pelo menos uma dúzia de vendedores instalados em bancas de madeira alinhadas ao longo do caminho. Não deixa de ser estranho estarem instalados tão à vontade. Um dos vendedores aponta para o pano que forra o topo da banca, que quando necessário se transforma numa trouxa de escape, com um simples puxar dos cordões. “A polícia vem cá todos os dias”, conta à Fugas.
Numa explosão de cores, o coração do bairro — onde “todos se conhecem” — estende-se por duas ruas principais, que nos levam a um lago. Há espaços culturais, um café com mesas corridas no exterior, uma casota infantil, uma canoa e uma estátua de uma mão.
O jantar foi no Copenhagen Street Food — uma espécie de lisboeta Mercado da Ribeira com comida do mundo, em Paper Island. Não fosse o voo na manhã seguinte às 6h, poder-se-ia ter fechado o dia com um copo no Musen & Elefanten, um pequeno bar escondido numa rua qualquer — encontrado ao acaso, na noite anterior, num momento de desespero, em que a melhor alternativa que se apresentava era um bar de karaoke. Lá dentro, os lugares eram escassos e havia apenas uma mesa de seis, o número exacto do grupo. Em resumo, a definição de serendipidade.
Descemos umas escadinhas da rua e entrámos numa outra dimensão: uma mistura entre o boteco onde a personagem de Diane Kruger é ferida na perna, em Sacanas Sem Lei, e um velho pub com toques excêntricos. A cerveja é servida a partir da tromba de um elefante pendurado na parede. Ao balcão, dois homens entretêm-se num jogo repetitivo de dados, enquanto mantêm uma conversa animada com a empregada. Na maior mesa do bar, um grupo de jovens com um aspecto de diplomatas — com pins na lapela do fato e cabelo penteado para trás com gel — conversam alegremente, ocasionalmente começando a cantar músicas dinamarquesas. De acordo com uma utilizadora do Yelp, não é fora do comum encontrar políticos no pequeno bar.
Da manhã ao final da noite não parou de chover — e sim, foi um dia em cheio.
A Fugas viajou a convite da Carlsberg