A hospitalidade francesa na feira do livro das “musas”

A 69.ª edição da Feira do Livro de Frankfurt abre as portas esta quarta-feira. Mais ambiciosa do que nunca, com uma embaixada gigantesca, a França é o país convidado – na inauguração oficial desta tarde, Merkel e Macron imprimiram, juntos, a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

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Uma representação esmagadora: a França traz a Frankfurt 180 autores convidados, o triplo das embaixadas anteriores RONALD WITTEK/EPA
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O pavilhão francês foi pensado por Ruedi Baur, e realizado pelos professores Denis Coueignoux e Eric Jourdain juntamente com os seus alunos da Escola Superior de Arte e Design de Saint-Etienne RONALD WITTEK/EPA
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"Frankfurt em francês", lê-se num banner desta 69.ª Feira do Livro de Frankfurt Ralph Orlowski/Reuters
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Emmanuel Macron e Angela Merkel imprimiram a Declaração Universal dos Direitos do Homem numa prensa de Gutenberg ARMANDO BABANI/EPA
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Emmanuel Macron e Angela Merkel imprimiram a Declaração Universal dos Direitos do Homem numa prensa de Gutenberg ARMANDO BABANI/EPA

Uma cabine escura com um sofá onde à frente dos nossos olhos surge o holograma de um actor a ler o livro que tirámos da prateleira. Uma réplica da prensa móvel de Gutenberg onde são impressas primeiras páginas de obras para que se perceba como tudo começou na edição de livros. Uma exposição que nos leva à melhor banda desenhada que se faz actualmente em língua francesa, mas também ao mundo da ilustração e da literatura infanto-juvenil francófona. E, claro, uma livraria e um café para exibir a melhor cuisine. Tudo isto está à disposição do visitante do pavilhão francês da 69.ª Feira do Livro de Frankfurt, que começa esta quarta-feira e termina no próximo domingo.

É a segunda vez que a França é o país convidado desta feira, mas passaram quase 30 anos desde essa edição de 1989 em que os seus editores foram homenageados. E por isso está mais ambiciosa. Neste ano de 2017, a França chega ao evento mais importante do sector – reunindo 140 mil profissionais do mercado editorial mundial, com cerca de 700 agentes literários encarregados da venda de direitos e dez mil jornalistas do mundo inteiro acreditados – com uma embaixada de 180 autores.

"É o triplo dos autores das embaixadas dos anteriores países convidados. É gigantesco”, diz um dos guias que esta terça-feira de manhã orientou a visita guiada para a imprensa. “Claro que estamos contentíssimos porque isto vai permitir que toda a atenção esteja voltada para a discussão e para o debate”, acrescenta, realçando a importância que a França dá à sua programação, já que pelo pavilhão passarão alguns dos autores mais importantes da actual edição francófona: Michel Houellebecq, Tahar Ben Jelloun, Emmanuel Carrère, Philippe Claudel, Marie Darrieussecq, Virginie Despentes, Mathias Enard, Philippe Djian, Jérome Ferrari, Laurent Gaudé, Hédi Kaddour, Yasmina Khadra, Júlia Kristeva, o Prémio Nobel Jean-Marie Le Clézio, Pierre Lemaitre, Achille Mbembe, Marie NDiaye, Amélie Nothomb, Olivier Rolin ou Yasmina Reza. Todos estão editados na Alemanha, país onde o francês é neste momento a segunda língua mais traduzida (segundo dados de 2015, o alemão é a terceira língua mais traduzida em França).

A hospitalidade no turbilhão

O pavilhão francês de 2500 metros quadrados, onde a madeira é omnipresente, foi pensado por Ruedi Baur, e realizado pelos professores Denis Coueignoux e Eric Jourdain juntamente com os seus alunos da Escola Superior de Arte e Design de Saint-Etienne, os vencedores do concurso para este projecto. Não tem o impacto visual de outros pavilhões de anteriores países convidados, como o do Brasil ou o da Nova Zelândia, cuja espectacularidade deixou muitos visitantes maravilhados, mas não será por isso que os visitantes deixarão de ficar a conhecer melhor o mundo editorial francófono e a literatura francesa.

“Hospitalidade" foi uma das palavras-chave na concepção do pavilhão, que optou por dar ênfase à programação e pretende ser também uma espécie de biblioteca, um lugar acolhedor, de debate e de conhecimento, no frenesim que vão ser os próximos cinco dias em Frankfurt. Funcionará, esperam os organizadores, como se fosse um espaço cultural no turbilhão de uma cidade, neste caso no turbilhão que é uma gigantesca feira com 7150 expositores, 106 países representados e um número estimado de 278 mil visitantes. Um sítio onde as pessoas possam ver livros, perder-se em exposições como a dedicada à literatura infanto-juvenil (que só no ano passado teve um crescimento de 13% em França), ABCD, l'esprit de la lettre, onde 26 ilustradores interpretam palavras escolhidas a partir de cada uma das letras do abecedário. Mais à frente, podem ver-se várias edições de livros juvenis para mostrar como este sector é um dos mais inventivos.

Logo ali ao lado, há uma parede com um organigrama onde se pode perceber por que é que “o livro é a primeira indústria cultural em França” – “desde sempre, mesmo antes do cinema” – e que mostra a diversidade do panorama das casas de edição francesas desde o século XVIII até aos nossos dias. Os mais de 2000 prémios literários anualmente atribuídos em França também não foram esquecidos e nesta quarta-feira será feito na feira o anúncio dos finalistas do mais importante prémio francês, o Goncourt. Também a lei do preço fixo do livro e a importância que esta tem para a dinamização do sector e das livrarias em França é lembrada na exposição e em vários ecrãs é possível ver, por exemplo, os documentos que Jack Lang, então ministro da Cultura, assinou em 1981. A Lei Lang inspiraria outros países a seguirem o exemplo, entre os quais Portugal, em 1996.

Uma prensa para Merkel e Macron

Um dos espaços que suscitará mais curiosidade é aquele que mostra que esta feira do livro começou por ser uma feira de impressores e onde se pode ver uma réplica da prensa móvel de Gutenberg, que os autores usarão para imprimir, em francês e em alemão, as primeiras páginas dos seus romances. Para o fazer precisarão de tinta, de papel e da força dos braços. Os chefes dos dois países, a chanceler alemã Angela Merkel e o presidente francês Emmanuel Macron, utilizaram-na já esta noite para imprimir a Declaração Universal dos Direitos do Homem na cerimónia oficial de abertura do pavilhão.

Outro espaço entusiasmante é o local onde está uma cabine inspirada n'A Biblioteca de Babel de Jorge Luis Borges. É um espaço fechado, que permitirá aos visitantes que ali se isolem por cinco minutos. Há um sofá e uma prateleira com livros. O visitante escolhe uma dessas obras disponíveis em alemão e francês, passa o código de barras do livro impresso por um scanner e vê a luz da cabine escurecer gradualmente até que surge à sua frente um actor, e a leitura começa.

Esquecer Astérix

As tendências actuais da banda desenhada de expressão francesa são analisadas naquela que é a exposição mais interessante do pavilhão. O “rico património tradicional da BD francófona”, Astérix incluído, foi intencionalmente esquecido para se olhar para o que de melhor se faz hoje em dia. Espalhadas por sete salas estão pranchas e desenhos – numa das salas, o tema é o humor e a sátira, com a presença do jornal satírico Charlie Hebdo, que desde o ano passado tem uma edição alemã. Outros temas: a BD para os jovens ou a BD feita pelos franceses imitando a manga japonesa, uma tendência muito actual, bem como a BD digital. A renovação da BD tradicional, a banda desenhada autobiográfica, a banda desenhada do real ou a reportagem feita em BD também não foram esquecidas. É possível assistir a excertos de filmes (duram um minuto) que adaptaram novelas como Persépolis, de Marjane Satrapi, e compará-los com as mesmas imagens do livro. Há ainda um espaço onde é possível colocar uns óculos de realidade virtual e entrar no universo de uma BD de Marc-Antoine Mathieu, que trabalhou com uma equipa de vídeo para reinventar o que criou para o papel.

Por fim, no meio do pavilhão francês, há ainda um atelier digital onde estão disponíveis vários computadores para que os artistas belgas, franceses, suíços ou alemães convidados pela organização para fazer a reportagem do que se passa na feira ali produzam os seus desenhos. O projecto intitula-se Ping Pong: Frankfurt em francês contado pelos autores de banda desenhada e os desenhos serão publicados no site oficial da feira e nas redes sociais.

O espaço está também à disposição dos alunos da escola Estienne, em homenagem a Henri Estienne (1528- 1598), humanista francês e impressor que em 1573 escreveu um texto hoje considerado a primeira reportagem da Feira do Livro de Frankfurt. Nele escrevia que esta feira tinha resgatado as musas do exílio (“elle a ramené les Muses d’exil”, foram as suas palavras).

O comissário geral de França como país convidado, Paul de Sinety, lembra no catálogo Frankfurt en français: “O futuro do livro nos nossos países põe a questão do futuro da Europa, da sua identidade, dos nossos valores democráticos e daquilo que pretendemos como modelo de vida: uma Europa da tradução, da pluralidade editorial, da partilha de saberes e da hospitalidade”. Tal como outrora, em Frankfurt, é tempo de celebrar o que nos une como cidadãos através de uma cultura comum: a do livro.

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