Tomar as rédeas da esquizofrenia com a ajuda de uma app

Aplicação móvel visa capacitar os doentes com esquizofrenia e prevenir recaídas. Rute, uma utente que testou a Wecope, diz que é uma “rampa de lançamento para a recuperação”.

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Aplicação foi pensada durante o doutoramento da terapeuta Paulo Pimenta
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Paulo Pimenta

Incentivar as pessoas com perturbações psicóticas, como a esquizofrenia, a serem mais activas no seu processo de recuperação. É essa a missão da Wecope, uma aplicação móvel pensada no doutoramento da terapeuta ocupacional Raquel Simões de Almeida e programada por alunos e docentes do Instituto Superior de Engenharia do Porto.

O objetivo é “dar independência aos utentes, sem lhes retirar uma rede de segurança”, explica a autora da ideia: “Queremos trabalhar o 'empoderamento' das pessoas que se encontram numa fase em que já possuem algum nível de autonomia. Porque elas sentem que, apesar de terem um técnico disponível, ao utilizarem a aplicação podem ir resolvendo as questões que vão surgindo no dia-a-dia, referentes ao seu problema de saúde mental.”

Mas a Wecope não pretende isolar o doente no longo caminho da recuperação. Aliás, caso tal fique acordado entre o utente e o profissional que o acompanha (terapeuta, psicólogo ou psiquiatra), todas as informações inseridas na aplicação são transmitidas ao técnico em tempo real. O que pode mesmo evitar situações de risco.

“Estamos a falar de doenças crónicas, em que se pode estar bem num momento e depois ter-se uma recaída. E a aplicação pode ajudar a identificar atempadamente estas situações”, diz Raquel Simões de Almeida. E acrescenta:  “Se eu tiver a informação de que um determinado utente está a ouvir muitas vozes, eu posso contactá-lo, entender o que se passa e marcar uma consulta. Ou quando a pessoa se sente muito ansiosa, pode usar o modo de relaxamento da app. E se quiser colocar uma questão acerca da medicação, pode enviá-la pelo chat ao seu técnico. As várias funcionalidades da Wecope não vão substituir as consultas, mas podem ser um suporte que ajude as pessoas a estarem na comunidade e a serem mais independentes.”

Monitorizar, resolver, relaxar

Uma das funcionalidades da app é dedicada à monitorização de sintomas. Lá, o utente escreve acerca das alucinações auditivas, especificando, por exemplo, quando e onde ouviu a voz, se o incomodou, que estratégias usou para lidar com a situação e se resultaram ou não. “Basicamente, [serve para] desconstruir e reflectir sobre tudo o que está relacionado com aquela voz para que a pessoa, conscientemente, perceba que é um sintoma e entenda que consegue lidar com a situação. Porque sabemos que há pessoas que, apesar de tomarem a medicação, continuam a ouvir vozes e têm de conseguir adaptar-se e gerir a sua vida apesar disso”, afirma a terapeuta.

Através de outro módulo disponível, o da resolução de problemas, o utilizador pode apresentar uma situação que está a condicionar o seu bem-estar  – como “perdi o autocarro” ou “discuti com um familiar” – e responder a uma série de questões, por etapas, que o ajudam a encontrar a solução mais vantajosa. Isto porque “a resolução de problemas é uma área em défice nas pessoas com algum tipo de perturbação psicótica”, explica a terapeuta ocupacional. Para relaxar em tempos de maior ansiedade, o utente também pode ouvir vários áudios de técnicas de relaxamento disponibilizados.

Segundo Raquel Simões de Almeida, a funcionalidade que permite delinear objectivos é uma das “mais importantes”. “No processo de recuperação é fundamental que a pessoa defina objectivos porque este processo tem muito a ver com a mudança. E ao definir um objectivo na aplicação, o utente está a comprometer-se com esta mudança”, assegura a autora.

Também é possível utilizar um chat, uma via gratuita, desde que haja acesso à Internet, em que os utentes podem trocar mensagens com o seu técnico sobre questões relativas à medicação ou até em momentos de crise. Mas é uma funcionalidade com limites. “Apesar de haver o contacto directo e gratuito entre o profissional e o utilizador, o modo de articulação de horários deve ser discutido previamente. É preciso haver uma espécie de negociação sobre como é que esta funcionalidade pode ajudar o utilizador e não prejudicar o técnico.”

Uma “continuação” do trabalho dos técnicos

A aplicação já foi testada durante oito semanas e os resultados, deduzidos a partir de questionários feitos aos doentes, são positivos: “Conseguimos ver melhorias nos utentes, principalmente ao nível do empowerment, da autodeterminação”, revela a doutoranda. Um dos casos de sucesso foi o de Rute Bastos, de 32 anos, que está a terminar o 12.º ano no curso de Técnica de Apoio à Família e Comunidade.

Rute tem esquizofrenia e, para ela, a aplicação que utilizou durante dois meses foi “como uma coisa que caiu do céu”. Quando começou a usar a Wecope, tinha aulas das 9h às 17h e por isso não podia ir à Associação Nova Aurora ter o acompanhamento presencial a que estava habituada. Mas a aplicação entrou em cena e impediu o pior. “Naquela altura, acho que o facto de poder trocar mensagens com a minha técnica a qualquer altura foi benéfico para as duas porque não resultou em crise, conseguimos contornar a situação. Ajudou muito, nem sei dizer o quanto.”

Mas o chat não foi a única funcionalidade que lhe deu apoio para continuar. “Quando sentia que ia ‘cair’, ia ver os objectivos que tinha cumprido e aqueles que tinha para cumprir. O facto de escrever que consegui uma coisa, motivava-me a conseguir outra”, conta. E no dia-a-dia o modo de relaxamento também foi útil: “Cheguei ao ponto de ter Internet no bufete e de pôr os auriculares e ouvir numa de ‘tenho de aguentar a fila até ao fim para almoçar’.”

Mesmo não utilizando a monitorização de sintomas, porque Rute não tem alucinações auditivas, a aplicação foi “essencial” para a manter estável. “Consegui aguentar até acabar o curso sem aumento de medicação. Por causa da aplicação. E se eu tivesse aumentado a medicação naquela altura, ia ser muito mais complicado acabar o curso. Aquele acompanhamento diário fez-me aguentar até Agosto e aí sim, recorri à medicação. Porque tinha o Agosto em casa e o tratamento podia ser diferente.”

A fase experimental da Wecope já terminou, mas Rute quer continuar a usá-la. “É um trabalho de 'empoderamento' fantástico, é a rampa de lançamento para a nossa recuperação. Antes da aplicação, o trabalho da minha técnica foi excelente. A aplicação é uma continuação”, explica.

Segundo Raquel Simões de Almeida, a distribuição desta aplicação – a única dedicada à esquizofrenia em Portugal – vai ficar, no segundo semestre de 2018, a cargo do Laboratório de Reabilitação Psicossocial (pertencente à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e à Escola Superior de Saúde – Politécnico do Porto). Este laboratório vai atribuir licenças de utilização a hospitais, centros de reabilitação e fóruns sócio-ocupacionais.

Saúde mental em défice

António Marques, director do Laboratório de Reabilitação Psicossocial e orientador da tese de doutoramento da terapeuta ocupacional, argumenta que esta aplicação pode ser um contributo positivo num “país que está ainda altamente deficitário no número de respostas que existem de suporte às pessoas com doença mental”. 

“As pessoas ou estão internadas ou estão a ser seguidas em consulta com um período diferencial entre as consultas largamente superior àquilo que é definido pela OMS [Organização Mundial da Saúde]. E a recuperação destas pessoas, de forma a que elas tenham mais qualidade de vida, sejam mais funcionais e possam participar na sociedade, só é viável se elas tiverem um trabalho de recuperação continuado. E sendo esta resposta claramente deficitária, o que esta aplicação pretende não é dar a resposta mais adequada mas, pelo menos, potenciá-la.”

E adianta: “Hoje está demonstrado que, durante o processo de recuperação, se dermos mais possibilidades às pessoas de terem oportunidade de escolha, de compreenderem as opções que devem tomar, de se envolverem activamente no processo de recuperação delas e no processo de recuperação dos seus pares, isso é potenciador de melhores resultados na reabilitação. Portanto, tudo aquilo que sejam instrumentos que potenciem estes valores, devem ser utilizados e é nessa linha que esta app foi desenhada.”

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