Amesterdão tem bicicletas a mais?, perguntam os seus habitantes

Uma ONG holandesa encontrou uma forma de pôr quem vive na capital a pensar e a questionar o espaço onde vivem. É um exemplo do modo de vida dos Países Baixos, cujos monarcas visitam Portugal esta semana.

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Haverá 1,2 milhões de bicicletas na área urbana de Amesterdão Nelson Garrido/PÚBLICO

Egbert Fransen quer acabar com as bicicletas no centro de Amesterdão. Não é preciso ser um grande conhecedor da capital holandesa para saber que esta é uma proposta no mínimo controversa. Mas esta é a missão que este antigo empresário escolheu e que desempenha há uma década – pensar e questionar a sua cidade e o próprio conceito de cidade. E essa “febre” está a espalhar-se pela Europa.

Os cálculos de Fransen apontam para que haja cerca de 1,2 milhões de bicicletas nesta área urbana onde vivem 800 mil pessoas. “São demasiadas”, diz. E nota-se. Enquanto na maioria das cidades o perigo vem do tráfico automóvel, em Amesterdão são as bicicletas a alta velocidade que assustam os transeuntes mais distraídos. “Nós sabemos usar bicicletas, mas os turistas não”, acrescenta Fransen, com um olhar que não disfarça o aborrecimento.

Uma das soluções que apresenta seria vedar o centro turístico a bicicletas pessoais e estender o sistema de aluguer já existente – mas sobretudo utilizado por turistas – a todos os habitantes.

Fransen recebe-nos num edifício castanho, que está de costas para um dos milhares de canais de Amesterdão, chamado Pakhuis de Zwijger, que à letra significa “armazém do silencioso”. O nome é inspirado pelo cognome de Guilherme de Orange, fundador da dinastia Orange-Nassau e líder da revolta contra o domínio da coroa espanhola nos Países Baixos. Por se recusar a falar com o monarca espanhol Filipe II, este passou a chamá-lo "silencioso".

Mas actualmente é raro o dia que o edifício da Pakhuis de Zwijger seja silencioso. É ao fim do dia que o burburinho começa a fazer-se ouvir. Todas as noites, a equipa de Fransen organiza em média três iniciativas, desde conferências, mesas-redondas, projecções de filmes ou documentários, ou simples conversas com um orador.

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“Começámos a crescer devagar, com 30, 40 pessoas. Agora, temos entre 400 a 500 pessoas todas as noites aqui no edifício”, diz. Em 2016, durante os dez meses em que esteve aberta, passaram pela Pakhuis 75 mil pessoas e 25 mil acompanharam através de live-streaming."

Diálogo

E que faz aqui tanta gente todas as noites? Amesterdão tem uma tradição de grupos de debate sobre os temas mais variados, mas Fransen queria algo diferente. “Eu estava um bocado cansado dessa forma de comunicação, porque se trata sempre de uma oposição – alguém perde e alguém ganha o debate. O que eu queria era um diálogo sobre a cidade. Colocar um assunto em cima da mesa, ver o que nos liga e usar as diferenças para uma co-criação.”

A associação, que hoje funciona como uma organização não-governamental, foi fundada por Fransen em 2006 e durante os primeiros três anos teve de ter um funcionamento comercial para ser sustentável. Hoje, tem fontes de financiamento próprio, através do arrendamento de espaço para escritórios e reuniões durante o dia e de um restaurante no rés-do-chão, e também através de concursos públicos que vai ganhando. Mas a independência é uma prioridade para Fransen. Há empresas que contratam a Pakhuis para organizar debates ou conferências, “mas nenhum destes parceiros pode interferir nos conteúdos”, garante o director.

A semana em que visitamos a Pakhuis é dedicada à solidão na cidade – e trata-se de uma encomenda feita precisamente pela câmara municipal. “Há cada vez mais pessoas sozinhas a chegar às cidades, ano após ano”, diz Fransen, que afasta um mito. “Não são apenas os idosos a sentir solidão, também entre os mais jovens, os estudantes, talvez por causa das redes sociais”, acrescenta.

A Pakhuis entra em campo como uma espécie de “rede social” com presença física, pondo em contacto o maior número possível de interessados em dado tema. A força desta ONG é a rede que foi estabelecendo daquilo que designam como “city-makers”, que muitas vezes são pessoas que iniciam sozinhas uma iniciativa no próprio bairro. Fransen dá os exemplos de uma mulher que começou a arranjar abrigos para refugiados na zona leste da cidade e de um médico de 85 anos que presta cuidados a sem-abrigo.

“As instituições, como a autarquia, sabem que estamos nas veias da cidade, conhecemos muita gente e estamos muito bem organizados”, assume Fransen, defendendo a sua posição com a força dos números: “Se organizarmos sessões em torno da questão da solidão, por exemplo, é certo que iremos ter 300 pessoas, se for a câmara a fazê-lo, é possível que tenham cem.”

A pergunta que está subjacente à acção da Pakhuis de Zwijger está longe de ser simples: “A quem pertence a cidade?” É quando se colocam questões deste género que as relações com o poder político e económico podem azedar. “Há temas em que alguns políticos nos consideram um bocado chatos”, diz o director, sem esconder um certo orgulho.

Um dos tópicos que tem gerado maior discussão em Amesterdão é a construção de edifícios altos. Arranha-céus são uma imagem rara na capital holandesa, onde se tenta preservar uma harmonia arquitectónica. Porém, explica Fransen, há uma pressão crescente por parte das construtoras e do sector imobiliário para que se desenvolvam prédios elevados nas zonas mais recentes da cidade.

Outro tema que preocupa a Pakhuis é a separação urbana entre zonas de ricos e pobres, por causa da subida dos preços das rendas. “Nem todos os partidos políticos apreciam este tema”, diz Fransen, sem se alongar muito mais. “Às vezes acham que somos demasiado activistas, mas achamos que, como uma plataforma independente, temos de colocar estas questões”, justifica.

Rede europeia

A certa altura, a equipa do Pakhuis decidiu perceber qual era a situação noutras cidades europeias. “Em todas acontece o mesmo: nos bairros, as pessoas estão a tomar iniciativa pelas próprias mãos, estão a voluntariar-se", contou. O director diz que têm actualmente uma rede de city-makers espalhados pela Europa com quem tentam manter o contacto constante – Fransen estava de partida para Helsínquia, quando falou com o PÚBLICO. “Podemos aprender muito uns com os outros”, afirma.

Por vezes, não é necessário um elevadíssimo grau de planeamento ou especialização para fazer alguma diferença entre uma comunidade. Basta uma mesa com comida.

Uma vez por mês, a Pakhuis organiza um encontro entre grupos de refugiados que serve como uma espécie de boas-vindas, em que têm um primeiro contacto com habitantes da cidade e com refugiados que chegaram há mais tempo – por vezes, há até quem saia daqui com propostas de trabalho, diz Fransen. Na semana anterior, decidiram convidar também um grupo de idosos que vivem sozinhos. “Foi uma confusão e um caos total”, diz o director. Mas teve uma parte importante: “Todos falaram uns com os outros.”

O jornalista viajou a convite do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Holanda     

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