Um Nobel contra Trump, Kim e a legitimidade dos arsenais nucleares
O risco de uma guerra nuclear "é maior do que tem sido em muito tempo", explicou o Comité Norueguês ao atribuir o Nobel da Paz à Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares.
No ano em que o risco de um confronto nuclear voltou a ser credível, o Comité Nobel Norueguês premiou uma aliança de organizações não-governamentais que luta pela erradicação da arma mais destrutiva alguma vez criada – um objectivo considerado irrealista por muitos, mas que ganhou novo fôlego perante os ensaios da Coreia do Norte e a guerra de palavras entre Washington e Pyongyang. “As armas nucleares têm o potencial de acabar literalmente com o mundo. Enquanto existirem, o risco estará lá e a nossa sorte poderá esgotar-se”, lembrava, ainda há dias, à AFP a directora-executiva da agora galardoada Campanha Internacional para a Abolição das Armas Nucleares (Ican).
A escolha do Nobel da Paz de 2017 acaba por não surpreender, mesmo que entre os favoritos para a edição deste ano estivessem os negociadores do acordo de 2015 que levou à suspensão do programa nuclear do Irão, a troco do levantamento das sanções que há uma década isolavam o país e asfixiavam a sua economia. Uma escolha que teria sido uma farpa ainda mais directa ao Presidente norte-americano, Donald Trump, que já na próxima semana pode dar o primeiro golpe naquele que é visto como um dos grandes sucessos da diplomacia internacional dos últimos anos, ao declarar (contra os conselhos de várias vozes em Washington e dos seus aliados na Europa) que o Irão não está a respeitar os compromissos assumidos há dois anos.
Mas premiar o Irão – ainda que apenas na figura do seu principal negociador, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mohammad Javad Zarif – teria sido uma escolha difícil para o júri do Nobel da Paz face à situação dos direitos humanos no país. Ao invés, optou por dar visibilidade à Ican, que se apresenta como uma coligação de mais de 400 ONG e que foi uma das forças impulsionadoras do Tratado para a Proibição das Armas Nucleares, assinado em Julho por 122 países representados nas Nações Unidas e que entrará em vigor quando for ratificado por pelo menos 50.
O texto não terá qualquer efeito imediato, uma vez que entre os signatários não está nenhuma das nove potências nucleares, dos países que albergam no seu território bombas atómicas ou que integram (como é o caso de Portugal) alianças que assentam nelas a sua defesa. Mas à semelhança do que aconteceu com a convenção para a proibição das minas antipessoais, os promotores acreditam que o tratado, ao declarar ilegal o fabrico, posse ou sequer a ameaça de uso destas armas, contribuirá para deslegitimar os arsenais nucleares – uma posição a que o Nobel da Paz dá força.
Um prémio "sem controvérsia"
“Vivemos num mundo onde o risco de as armas nucleares virem a ser usadas é maior do que tem sido em muito tempo. Alguns Estados estão a modernizar os seus arsenais nucleares e há o risco real de outros países virem a tentar adquirir armas nucleares, como ficou demonstrado com a Coreia do Norte”, explicou o Comité Nobel Norueguês, sublinhando a contribuição do Ican “a chamar a atenção para as consequências humanitárias catastróficas” que teria a repetição de ataques como os de Hiroshima e Nagasaki, há 72 anos.
Berit Reiss-Andersen, líder do Comité Nobel Norueguês, assegurou que “este não é um prémio controverso” e que a sua atribuição não é um recado a Trump ou ao líder coreano, Kim Jong-un – a luta contra a proliferação nuclear “é um objectivo comum”, afirmou.
Mas dificilmente o prémio pode ser dissociado da sucessão de ensaios nucleares efectuados pela Coreia do Norte – que em Setembro assegurou ter testado a sua primeira bomba de hidrogénio – e da escalada na tensão entre Pyongyang, de um lado, e Washington e os seus aliados do outro. Ou sequer das dúvidas que pairam sobre o futuro do acordo nuclear iraniano ou dos assumidos esforços dos EUA e da Rússia para modernizar os seus arsenais, pondo em causa as promessas de os reduzir.
“Os especialistas não cessam de o repetir: o risco de um ataque nuclear é hoje tão grande como era no final dos anos de 1980, se não maior”, sublinhava nesta sexta-feira o jornal francês Le Monde, questionando-se sobre o porquê de tantos continuarem a acreditar que o “espectro de uma guerra nuclear foi enterrado com o fim da Guerra Fria”.
Quem não se furtou a enviar recados foi Beatrice Fihn, a sueca que desde 2014 dirige a Ican, organização que, apesar de pouco conhecida do grande público, conta com financiamento de vários países e instituições (incluindo a UE e o Vaticano) e o apoio de muitas celebridades, incluindo os também Nobel da Paz Desmond Tutu e Dalai Lama na sua campanha para mobilizar a opinião pública a favor da proibição das armas nucleares.
“Não temos de viver com o medo que Donald Trump possa iniciar uma guerra nuclear que nos destruiria a todos. Não podemos basear a nossa segurança no facto de ele ter ou não o dedo sobre o botão”, disse a activista ao jornal Washington Post, acrescentando que quer o Presidente americano, quer o norte-coreano Kim Jong-un, “são líderes muito perigosos” que, sob o pretexto da dissuasão nuclear, “arriscam com a sua irracionalidade provocar uma guerra nuclear”.
Reacções contidas
A maioria dos governos foi parca na reacção à escolha do Nobel da Paz de 2017, elogiado sobretudo por activistas e organizações internacionais. “Agora, mais do que nunca, precisamos de um mundo sem armas nucleares”, reagiu António Guterres, secretário-geral da ONU, organização que em 2005 viu o Comité Norueguês distinguir com o mesmo prémio a Agência Internacional de Energia Atómica e o seu então director-geral, Mohamed ElBaradei.
Carl Bildt, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros sueco e um crítico do tratado assinado este ano (que vê como uma ameaça ao Tratado de Não proliferação Nuclear, reconhecido pelas suas maiores potências), lamentou, contudo, que a escolha não tenha recaído sobre os negociadores do acordo iraniano – “que conseguiu realmente alguma coisa e deveria ter merecido este prémio”.
Mas Dan Smith, director do Instituto Internacional de Estocolmo para a Investigação da Paz (Sipri), disse ao jornal Guardian que “a eficácia da campanha do Ican é um sinal da impaciência crescente com o que muitos consideram ser o fracasso” do tratado de não-proliferação nos esforços para o desarmamento. “Num mundo onde a ameaça nuclear está a crescer, o Ican lembra-nos o quão importante é imaginar um mundo onde ela não exista.”