A persistência da memória
Minucioso e atento ao detalhe, Kazuo Ishiguro estabeleceu logo ao primeiro livro a sua prática de "escrever e recordar" – uma prática que exerce desde então como se obedecesse a um imperativo ético especialmente urgente perante um presente e um futuro desoladores.
Em 1983, Bill Buford, o americano da Louisiana que viera da New Yorker e chegara a Cambridge quatro anos antes para recuperar uma poeirenta e vetusta revista universitária chamada Granta, decidiu editar um número de 320 páginas com o título genérico de Vinte (autores) com menos de 40 (anos) onde textos de "jovens escritores britânicos" surgiam como exemplos de uma nova forma de expressão literária, em que o cruzamento de culturas e o ímpeto narrativo antecipavam uma nova era de inesperado fulgor. Era o tempo de Margaret Thatcher, da Saatchi & Saatchi e da ideia enraizada de que o marketing era tudo o que verdadeiramente importava – e de que o sucesso era imperativo. Esses Rushdie, McEwan, Amis, Chatwin, Barnes, Barker, Tremain transformaram-se em celebridades, com direito a um tratamento que estava até então reservado às rock stars. Mas nem tudo foi (apenas) propaganda, e a persistência destes e de outros autores da mesma geração transformou e deu novo alento à literatura, cumprindo a visão de Buford.
Neste grupo de brilhantes, audazes e interventivos escritores, estava também um jovem nascido no Japão que viera para Inglaterra quando tinha cinco anos, acompanhando a família – o pai era um cientista que fora convidado para fazer investigação no Instituto Nacional de Oceanografia. Kazuo Ishiguro cresceu submergido no complexo sistema de classes britânico, que observou cuidadosamente, principalmente durante os seus anos de estudos universitários. Desejou ser músico mas o estudo de literatura, primeiro na Universidade de Kent e depois na de East Anglia, onde a influência de professores como Malcolm Bradbury e Angela Carter se fazia sentir, ditou-lhe outro caminho.
Enviou contos à Granta e, em 1982, publicou o seu primeiro livro, As Colinas de Nagasaki (Relógio D'Água, 1989), ao qual se seguiu, em 1986, Um Artista num Mundo Transitório (Livro Aberto), os dois romances da "fase japonesa", assim chamada por versar directamente a cultura nipónica, embora o autor tivesse afirmado, em múltiplas entrevistas, que pouco ou nada recordava do seu país natal, ao qual só regressou, para uma visita, em 1989. Foi no entanto no seu passado como japonês que Ishiguro iniciou a sua prática de "escrever e recordar" – mesmo que as memórias fossem inventadas –, algo que sempre considerou um imperativo para alguém que nascera nas sufocantes cinzas da bomba atómica, numa Nagasáqui ainda ferida de morte. Assim, As Colinas de Nagasaki conta a história de Etsuko, uma japonesa de meia idade a viver sozinha em Inglaterra, assombrada pela memória do país que deixou para trás, a braços com o desenraizamento e com a tragédia do suicídio da filha mais velha, Keiko. O livro desenrola-se a partir da discussão de Etsuko com a filha mais nova, Niki – à qual ela dá um nome que crê ser mais ocidentalizado, para lhe facilitar a integração –, sobre o comportamento cada vez mais anti-social e desesperado de Keiko. Fica muito claro, neste primeiro romance, que Ishiguro continuará a debater-se com as questões da identidade, da migração, do choque de culturas e da intensa e dramática solidão que acompanhará sempre, como uma sombra funesta, os seus personagens. Logo a seguir, em Um Artista num Mundo Transitório, mergulha profundamente no ambiente pós imperial e pós-Segunda Guerra Mundial no Japão, onde as tremendas consequências do conflito se reflectem na vida e na obra do envelhecido pintor Masuji Ono, que deixa de compreender a sua própria arte na confusão de um mundo hostil e, para ele, irreconhecível.
Mas é em Quando Éramos Órfãos (2000) que Ishiguro constrói uma metáfora do universo pré-Segunda Guerra Mundial, um tempo ainda não arrasado e enterrado, recordado pelo protagonista, o detective Cristopher Banks. Numa linguagem essencialmente onírica, numa Xangai colonial vibrante, Banks, convicto de que o Mal pode ser combatido, representa uma certa "pureza", rapidamente ofuscada pela constatação de que "o criminoso moderno" se estaria a tornar cada vez mais inteligente, mais ambicioso e mais ousado, na posse de um novo arsenal de armas sofisticadas postas à sua disposição pela ciência. A ilusão de que é possível manter uma qualquer ordem harmoniosa que contrarie o caos do universo é levada ao extremo no famoso Os Despojos do Dia (1989), onde tudo depende da aparência, mantida a todo o custo por um mordomo, o célebre Mister Stevens (interpretado, no cinema, por um trágico e patético Anthony Hopkins, contracenando com uma vibrante Emma Thomson), que, tal como Ryder, o pianista de Os Inconsolados (1995), constrói uma persona intrinsecamente ligada à sua profissão. Tanto Stevens, que recusa o amor e a intimidade com a sua antiga colega Miss Kenton, na faustosa e decadente casa do seu patrão, um simpatizante nazi, como Ryder, que se angustia antes de um concerto, vivem permanentemente num "palco" onde representam as suas vidas, apagando-se e mascarando o seu próprio "eu", lutando contra imposições, frustrados na sua incapacidade de serem eles próprios. Em Os Despojos do Dia, Ishiguro é magistral ao aproximar a rigidez dos costumes da aristocracia britânica com os cerimoniosos rituais que condicionaram a sociedade nipónica, fazendo da luta inglória para preservar um passado fugidio uma poderosa metáfora do fim de uma época e do falhanço de um desejo impossível de concretizar.
Um autor-consciência
No seu romance mais extraordinário, Nunca me Deixes (2005), passado num futuro distópico, onde se coloca em debate a questão da clonagem, acompanhamos o desenrolar de um processo assustador de "criação" de crianças e de jovens que aceitam fatalisticamente o seu destino, o de serem mortos para fornecer órgãos aos "bons" cidadãos britânicos. Kathy, a narradora, recorda o tempo que passou numa escola especial, a muito britânica Hailsham, onde os professores são chamados de guardiões e onde o ensino da arte e a preocupação com as questões de saúde são prioritárias – fumar é considerado crime e o trabalho no jardim orgânico é obrigatório. Kathy e dois outros estudantes, Ruth e Tommy, constroem uma amizade complexa e as emoções desencadeadas à medida que o tempo passa levá-los-ão a questionar a sua função meramente utilitária, enquanto procuram lugar num mundo hostil, fora do espaço da escola que aparentemente os "protege", mas, na verdade, os aprisiona.
Ishiguro, que é também dramaturgo e autor de contos – Nocturnos (2009) está editado em português pela Gradiva –, é um perito na arte da minúcia nas descrições. A sua escrita imaculada, tão delicada quanto a caligrafia japonesa, atinge um grau de fastidiosa perfeição no seu último romance, O Gigante Enterrado (2015), um texto que se desenrola num tom de devaneio, ao correr de um tempo mítico – um breve interlúdio de paz entre britânicos e saxões –, época de " enevoado esquecimento" na Inglaterra pré-arturiana, habitada por elfos, dragões (o bafo da dragão Querig petrifica a Terra e os homens) e, evidentemente, gigantes. É uma saga épica, inspirada no Beowulf, com alusões a Tolkien e à sua literatura com raízes folclóricas, sem esquecer as referências a Macbeth, de Shakespeare, e a Dom Quixote, de Cervantes, numa linguagem fantástica, reminiscente de uma época em que havia heróis a percorrerem um território (quase) imaculado.
De acordo com a porta-voz da Academia sueca, o prémio foi atribuído a Ishiguro pela grande força emocional contida nos seus romances onde revela, também, o abismo que reside na ilusão da nossa relação com o mundo". Estas palavras, certeiramente enunciadas, são um eco do pensamento de um autor essencialmente pessimista – acusado por alguns de reaccionário – que, ao longo das últimas três décadas, nos tem alertado para a crescente "malaise" instalada na nossa contemporaneidade. A solidão individual no seio das multidões, os perigos da experimentação científica desregulada, a ascensão de nacionalismos e populismos e, principalmente, a dificuldade da permanência da memória que, tal como o seu "gigante enterrado", se desvanece num presente e num futuro desoladores, fazem de Ishiguro uma espécie de autor-consciência e de conselheiro avisado num universo global ameaçador e, para muitos, incompreensível.