"Não receio que o Terminal de Cruzeiros se torne símbolo da Lisboa dos turistas"
O novo Terminal de Cruzeiros de Lisboa dá várias contrapartidas à cidade que vai invadir de turistas. Carrilho da Graça, talvez um dos arquitectos da sua geração que melhor simbolizam Lisboa, fala sobre as ambivalências deste projecto que se adivinha polémico, mas promete fazer escola.
O arquitecto João Luís Carrilho da Graça tem no Terminal de Cruzeiros a sua obra mais visível e emblemática na capital nos últimos anos. Regressa à beira do Tejo para fazer um equipamento de raiz, voltando a ensaiar novos materiais como fez com o Pavilhão do Conhecimento em 1998, desta vez betão com cortiça, à procura de uma maior leveza estrutural.
Nas suas palavras, tem um certo estatuto de objecto, é uma obra mais livre, menos contextualista que outros projectos seus. Visto de Alfama, o terminal, situado ao lado da Estação de Santo Apolónia, parece flutuar.
Pode vir a simbolizar como nenhum outro equipamento recente a chegada do turismo de massas a Lisboa. Mas Carrilho da Graça diz que não tem medo dessa associação porque procurou dar contrapartidas à cidade, como a construção de um parque urbano que vai crescer numa zona sem verdes.
O edifício joga com a ambivalência, com a contradição. Flutua mas tem uma materialidade terrosa dada pelo betão com cortiça, dialoga com Alfama mas apresenta-se como um objecto, esconde-se e abre-se à cidade e ao rio, porque, como nos diz o arquitecto nesta entrevista, há várias maneiras de olhar e entrar numa obra de arquitectura. “Como o tema são os navios de cruzeiro, que vêm saturados de mar e de rio, achei que era interessante criar esta relação encenada.”
O projecto, tal como o Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (MAAT) assinado pela arquitecta britânica Amanda Levete, põe-nos a olhar as colinas de Lisboa da sua cobertura, a partir do rio. Mas o arquitecto lembra que o seu terminal é anterior. Nunca temeu comparações, nem escondeu referências, mas aqui, sublinha, não é o caso.
Comecemos pelo lado formal do edifício, um volume muito simples, que quer flutuar mas ao mesmo tempo tem uma quebra no meio, que o puxa um bocadinho para o solo. É uma das ambivalências que apresenta. Como é que isso foi trabalhado?
O ponto de partido foi um diálogo entre o edifício e a cidade que está em frente. Alfama, aqui, tem uma forma de anfiteatro. Em vez de se centrar em si próprio, o edifício estabelece um diálogo com essa concha.
Há um esquisso inicial feito a partir do miradouro ao lado das Portas do Sol em que se vê a mimésis entre a cidade e o novo edifício.
Depois no render [imagem 3D] do concurso, em que o projecto está quase na sua forma final, já aparecem as fachadas quase cegas, que organizam a maneira como se olha para cidade, escondendo parcialmente e abrindo noutros pontos. Como o tema são os navios de cruzeiro, que vêm saturados de mar e de rio, era interessante criar esta relação encenada.
Depois, há uma vista mais directa nas duas loggias laterais, na cobertura ou na passerele.
O projecto define a teia de relações que propõe não numa sequência linear, como poderia ser um filme ou um livro, mas múltiplas entradas e possibilidades de escolha. A arquitectura pode atrever-se a convocar a realidade (o rio, o mar, a cidade, as pessoas) — e não só a representá-la —, fazendo-a integrar o drama que apresenta.
Quando tive esta primeira intuição que está expressa no esquisso inicial não fazia ideia sequer dos detalhes do programa. É uma intuição formal mas achei curioso que se veio a materializar.
Num projecto é claro que o programa manda muito, mas como é que as ideias em arquitectura passam de um projecto para outro? Este edifício vem de que linhagem no seu trabalho?
Vem, talvez mais directamente, de um concurso que fiz em Milão, para um museu e escola da moda, em que fiquei em segundo lugar. Quando estávamos a fazer o concurso do terminal havia sempre a ressonância de Milão, projecto de que gosto imenso. Em Itália o projecto insere-se num parque que tinha um plano curioso com uma série de linhas cruzadas muito complexas, feito por uma arquitecta paisagista, Petra Blaisse, que trabalha com o Rem Koolhaas. Fiz o edifício como se fosse um pavilhão no meio do parque, o que lhe confere um certo estatuto de objecto. Quando li o programa de Milão e percebi que era um museu e uma escola de moda, decidi não estar com muitas preocupações com o clima, que em Milão é duro, e pensei como se estivesse no Brasil, com total liberdade. Com umas rampas em que imaginava as jovens designers ou modelos a circular. Tudo isso estava levantado do chão e seguia o cruzamento daquelas linhas todas dos caminhos do parque.
Os dois projectos têm uma certa semelhança e foi com bastante consciência que o fizemos.
Chamou-lhe um pavilhão, falou de rampas e citou o projecto de Milão. Mas se olharmos para a sua obra em Lisboa lembramo-nos do Pavilhão do Conhecimento, que fez para a Expo-98. O que é que ficou daí?
Para começar o material é semelhante, betão branco, embora o terminal tenha a adição da cortiça.
Mas os programas são diferentes, porque no Pavilhão do Conhecimento era pedido que a entrada se fizesse pelo piso superior, onde tinha que ser a área principal das exposições. Por isso é que construi aquele “pátio” elevado, que na realidade é um vazio, a que se chega pela rampa.
No Terminal de Cruzeiros há a presença da doca, um rectângulo dentro do qual vou trabalhar. O exterior da doca é, fundamentalmente, o parque urbano verde, mas é o rectângulo da doca que define o espaço. O edifício do terminal é nitidamente o mais pequeno de todos os que apareceram a concurso, embora cumpra o programa e seja marcado por aquele tanque de marés.
O edifício é relativamente sintético em relação à implantação. Aquelas rampas, escadas rolantes e escadas, sistemas de saída e de entrada exteriores, já não pertencem ao espaço climatizado do edifício que tentámos reduzir ao mínimo. As pessoas saem do cruzeiro e quase nem chegam a entrar no edifício.
Resumindo, os dois edifícios têm em comum serem em betão e esse lado sintético, um carácter um pouco de pavilhão, mais objectual. Tudo o que tenho feito, normalmente, são edifícios que se tentam integrar em situações complexas e que nunca têm um carácter objectual.
Tem uma grande passerele com 600 metros de comprimento situada a sete metros do chão. Há alguma coisa que tenha vindo da experiência com a ponte pedestre da Covilhã, que é uma promenade sobre um vale?
Não. Esta passerele tinha até uma forma diferente no concurso e depois evoluiu para este formato, porque tínhamos que libertar o lado do rio para as mangas poderem chegar a qualquer sítio. Eu tentei que a passerele tivesse o mínimo possível de toneladas de aço. Tem uma forma relativamente repetitiva e simples. Antes de a ver construída, apesar de ter imensas imagens de computador, tinha um certo medo que pudesse ficar pesada. Acho que está bastante bem.
No Pavilhão do Conhecimento usou cimento branco, era uma estreia em Portugal. Aqui está a ensaiar o cimento com cortiça, pelo menos a nível estrutural. Qual é a importância deste novo material e da experimentação no projecto?
Na Expo era um edifício enorme e havia até colegas que achavam temerário fazer este edifício todo em betão branco, mas eu já tinha feito um ensaio na Escola de Hotelaria de Faro, no Convento de São Francisco. Gosto imenso de betão branco, dá um sentido plástico global ao edifício. O betão permite não ter revestimentos, rebocos, que depois entram em decadência. O edifício da Expo está construído há 20 anos e está impecável.
O Miguel Ângelo quando desenhava as molduras das janelas não desenhava a estereotomia, a subdivisão em pedras. Deixava isso para o canteiro, porque o objectivo era que as divisões entre as pedras se lessem o menos possível. Se se pudesse fazer tudo na mesma pedra, o que não era possível, ele provavelmente preferiria.
Gosto desta de ideia do betão nos permitir, como uma espécie de barro, entrar num molde e sair homogéneo Nos dois edifícios não já juntas aparentes, o que é fantástico.
Porque é que quis usar o betão com cortiça? Quais são as suas qualidades?
O betão com cortiça tem uma justificação racional, o peso. Quando fizemos o concurso, as estacas de suporte já lá estavam e estivemos a trabalhar sempre com base nessa geometria, onde tínhamos que apoiar a estrutura. Quando estávamos a desenvolver o projecto de execução, os engenheiros disseram que as fachadas tinham que ser ligeiras. Já tinha imaginado que o edifício seria em betão e não tínhamos capacidade de suporte para essa massa, mas a ExperimentaDesign propôs-nos que explorássemos a utilização da cortiça. Com todos os cuidados, trabalhei com um laboratório em Coimbra, com a Secil e com a Amorim, porque é uma coisa mais inovadora do que o betão branco do Pavilhão do Conhecimento.
Está à procura de patente?
Eu também julguei que ia ficar rico, mas não é desta e não vai haver patente [risos]. Tinha que ser feita em todos os países do mundo. Era estupidamente caro e tinha que estar constantemente a ser renovada. Bastava um dos países sair da patente e podia ser produzido aí. A Secil e a Amorim concluíram que ia ser open source.
O que é interessante é que a cortiça é introduzida em pó, com algumas partículas pequeninas e outras obviamente maiores, permitindo diminuir a massa mas também que se mantenham as reacções entre os vários elementos químicos que constituem o betão. Por isso é que o betão é estrutural e mais leve. Houve uma série de ensaios, quer em laboratório, quer já durante a obra, para chegarmos aqui.
Antes do edifício ser construído, tinha uma imagem, que passo sempre nas conferências, de uma parede em taipa e o aspecto não é muito diferente. A taipa é mais estratificada, mas este material tem um aspecto quase terroso.
Gosto bastante dessa textura que dá um aspecto natural a uma coisa que é construída. Visto nas imagens aéreas, tiradas dos drones, é como se o edifício não tocasse no chão, ao mesmo tempo que há essa sensação da taipa, que é uma coisa que tem que partir do chão. Depois, a taipa vai-se desfazendo, mas é de cima para baixo. Aqui estamos numa posição quase invertida, o que é uma contradição muito interessante.
Visto de cima, dos miradouros, parece um origami.
Um bocado.
Trabalhou a ideia de anfiteatro, mas também outras imagens, como a de um edifício que flutua. Trata-se de um terminal de cruzeiros.
Sim, mas isso foi inconsciente. Quando terminei o concurso, alguém entrou na sala, olhou para os painéis na parede e comentou: “Antes dos navios chegarem, já chegou o terminal.” Parecia um navio, mas talvez mais na versão em que estava pintado de branco. Aquela forma, com as paredes inclinadas para dentro, lembra-nos os navios.
Como trabalha a área de recepção a negro, esse espaço desmaterializa-se no contacto com a fachada.
A forma mais evidente do terminal seria a de um aeroporto com grandes envidraçados. Mas o edifício propõe interagir com a cidade e com o rio de forma não tão evidente e directa.
O projecto é de 2010, anterior ao MAAT [de 2012], como sublinhou...
Sublinhei depois de ser questionado... Nunca tinha falado disso.
São dois projectos em Lisboa que nos fazem subir e andar pelas coberturas de maneira orgânica, trabalhando o tema da colina em Lisboa, dos anfiteatros. O que é que vê de diferente no Terminal, além do projecto ser anterior?
Disse na altura da inauguração do MAAT, quando as televisões me perguntaram, que era importante ter aquele equipamento em Lisboa. Está resolvido de forma correcta, mas se o projecto fosse meu procuraria outro tipo de magia. Do ponto de vista formal são diferentes, o MAAT tem curvas e o meu é mais anguloso.
Pegando em anguloso, na cobertura vemos como trabalha os planos...
Sentem-se os planos em todo o edifício, mesmo que depois eles sejam deformados e surjam mais plásticos. Nós não temos propriamente curvas, a não ser aquele pequeno cilindro na cobertura.
São também programas diferentes — um museu e um terminal de cruzeiros. O terminal sempre teve objectivos funcionais muito directos, a que tinha que responder.
Não é que o projecto seja particularmente complexo. Tentei sempre que fosse entendido como uma espécie de espaços contentores debaixo de uma cobertura. Um edifício deste tipo está sempre a mudar em relação ao programa e mudou imenso do concurso até à construção. Admito que continue a mudar. Não queria estar a apostar em coisas que pudessem ser postas em causa e fossem uma perturbação para esta evolução funcional do edifício mais ou menos inevitável.
Porque é que o Terminal de Cruzeiros só será inaugurado depois das eleições autárquicas? Houve algum receio de trazer novamente o tema do turismo e da cidade sobrelotada para a discussão no período eleitoral?
Acho que a câmara e o Governo teriam interesse em inaugurar o terminal o mais rapidamente possível para ter concluída toda aquela zona. Ninguém se entusiasma com obras que complicam o trânsito. Acho que não houve nem cálculo nem defesa.
Chegaram os primeiros passageiros ao terminal e esteve lá a ministra do Mar, não era possível ter feito um acto inaugural?
Não deixou de o ser. Foi uma primeira utilização do edifício, mas ele não está acabado. Também andamos cá fora, há terra, faltam as árvores. Se ele fosse inaugurado provavelmente tinha um ar eleitoralista e não era apropriado. Enquanto arquitecto faço sempre uma certa pressão para que as coisas sejam bem feitas e não me parece que cortar a fita decida eleições.
Como é que se faz um edifício a pensar que se vai ter um arranha-céus, termo que já usou em relação aos cruzeiros que vão acostar ao lado? Como é que foi trabalhar com essas diferenças de escala?
Tenho uma imagem [com o edifício] feita a partir de uma fotografia que nos era fornecida para o concurso com um navio de cruzeiros. E aquele navio de cruzeiros é para aí metade dos que existem hoje. Por isso, a relação principal que os navios que ali aparecem estabelecem — e geralmente são dois — é com a cidade.
Neste momento o Terminal de Cruzeiros ainda tem uma certa força e singularidade porque as árvores que o vão envolver ainda não cresceram. Quando todas as árvores crescerem o edifício estará enquadrado no maciço verde. Mas os navios de cruzeiro nunca estarão e vão sempre estabelecer uma relação com a cidade quase de pé de igualdade, digamos assim.
Ensombrava-o essa imagem dos grandes cruzeiros?
Em Veneza faz-me impressão. Até acho que tem uma certa força dramática — e do ponto de vista estético não acho horroroso —, mas do ponto de vista ecológico deve ser um desastre passarem ali aqueles gigantescos navios de cruzeiro.
Aqui não acho grave. Não é que me imagine a fazer um cruzeiro, porque é coisa que nunca pensei fazer em barcos tão grandes. Toda a vida pensei que qualquer barco em cima da água era sempre bonito, com o brilho da água e sobretudo num espaço com a dimensão do Mar da Palha, mas os navios começam a ser tão gigantescos e tão banalizados que já têm um lado suburbano.
Numa cidade que começa a estar traumatizada com o turismo, os cruzeiros são aquilo que as pessoas não querem. Os barcos chegam e são despejadas milhares de pessoas.
A mim faz-me imensa confusão.
Acha que o Terminal de Cruzeiros se pode tornar um símbolo dessa Lisboa dos turistas?
Não tenho esse receio. A descrição faz-me impressão, porque saem milhares de turistas, entram em autocarros e são levados imediatamente daqui para fora. Acho que a atracção é Fátima. Tudo isto me parece bastante banal.
Tentou dar alguma coisa em troca à cidade por causa da carga negativa?
A carga negativa não estava tão presente na altura em que fiz o concurso. Foi-se esclarecendo com o aumento da dimensão dos navios de cruzeiro e outras questões. Mas o que sempre tentei, sem sombra de dúvida, foi que a construção do terminal e a chegada dos cruzeiros desse como contrapartida à cidade um parque urbano ao longo do rio nesta zona da cidade que não tem zonas verdes. Tentei que houvesse uma certa continuidade de percursos a pé entre este ponto de Santa Apolónia e a Baixa. Isso vai ser possível sobretudo fora da época dos cruzeiros. Imagino aquele parque bastante calmo e passível de ser utilizado de formas muito diversificadas.
Tentei também devolver algo à cidade através da cobertura panorâmica, da existência daquele cafezinho com esplanada [numa das loggias].
Qual é o impacto que o terminal vai ter na cidade já cheia de turistas?
Os arquitectos têm que ter uma consciência clara de que não estão a fazer os programas. Ninguém me perguntou se proporia um terminal de cruzeiros naquele sítio. Fizeram um concurso internacional em que participei.
Também não é programa que me atraia, mas podia eventualmente fazer uma prisão ou outra coisa que não me agradasse como situação de vida. O nosso papel é tentar humanizar o programa o mais possível, fazer com que revele as qualidades do sítio da cidade onde se implanta. E, do meu ponto de vista, torná-lo mais público, mais acessível, mais interligado com a cidade. Mas a quantidade de turista que vão ali chegar transcende-me um bocado.
Isso não o preocupa.
Preocupa-me. Mas, em certa medida, estou a tentar ajudar a cidade a digerir essa avalanche de turistas.
Imagino que tenha feito pesquisa para o projecto. Como é que é a Lisboa vista do Tejo? Os lisboetas não têm muito essa experiência.
Se não me engano a última vez que andei num barco ao longo do rio foi na altura da Expo-98.
Não foi ao rio para pensar o projecto?
Não. Na generalidade os concursos em Portugal não são pagos. Não temos muitos meios para fazer durante meses uma pesquisa exaustiva. Temos que ter uma consciência tão lúcida quanto possível, mas às vezes difusa, seguindo a nossa intuição, ao mesmo tempo que vamos fazendo experiências, até chegar a uma solução consistente.
Já foi ver o seu edifício do rio?
Ainda não fui. Já vi fotografias e gostei bastante, porque é um volume elementar e depois a cidade fica por cima com o panteão e os outros edifícios todos. Gostei bastante de ver aquela relação que antecipava.
No concurso já tínhamos feito em três dimensões toda a cidade. Pediram-nos uma fotomontagem a partir da água para o júri perceber que não ia haver um impacto forte sobre a cidade já instituída. No contexto do parque e próximo do Mar da Palha, lembro-me de ter pensado que o edifício podia sentir uma certa liberdade com uma altura relativamente contida. Hoje, acho que essa relação é muito exaltante e ao mesmo tempo pacífica do ponto de vista da presença e da geometria.
Como é que vê o crescimento do turismo em Lisboa?
Tomei consciência disso há quatro ou cinco anos. Fiz um percurso a pé que adorava: descer do Rato à Escola Politécnica, chegar ao Cais do Sodré, virar para o Terreiro do Paço e seguir para o Campo das Cebolas. Foi na altura do concurso do Campo das Cebolas. Fiquei chocado quando vi a transformação que esse percurso estava a sofrer, porque tinha memórias de uma cidade meio adormecida mas maravilhosa que estava a desaparecer e a aparecerem imensas banalidades. Hoje já não tenho tanto essa sensação, mas é muito incomodativo chegar ao Chiado e não ouvir sequer falar português.
E como arquitecto?
Durante estes anos houve uma certa permissividade desculpável porque estávamos em crise. Lembro-me de uma altura em que não entravam projectos na câmara e não havia nada para apreciar: nem alterações, nem recuperações, nem construções novas, nada. Era uma situação quase de emergência.
Neste momento, já devíamos começar a dar mais atenção à maneira como se constrói e ao que se constrói. Muitas vezes aceita-se a hipótese de demolir edifícios que deviam ser recuperados e aproveitados. Detesto a ideia de manter fachadas, demolir o interior e reconstruir de uma forma diferente.
Versão apartamento Fernando Medina?
Como? Não queria ir por aí em cima das eleições, sendo apoiante do Medina... Estava a falar dos que mantêm a fachada e depois lá de dentro sai um monstro de vidro. Acho que os edifícios ou são de qualidade e devem ser recuperados ou não têm hipótese de recuperação e então mais vale demoli-los e fazer de novo.
Vai ser difícil os lisboetas continuarem a viver no centro da cidade? Vão sendo expulsos com a subida dos preços das rendas e das casas?
Para a câmara e para o Governo parece-me possível, porque é um investimento estratégico interessante, introduzir habitação a custos razoáveis em Lisboa.
Não paramos de conhecer pessoas que têm que largar as casas porque não as podem pagar. Acredita mesmo que há soluções para isso?
Acredito mesmo, porque há uma questão que nunca foi bem equacionada. Eu não olho para a cidade de Lisboa apenas com os seus 500 mil habitantes, que estão na zona antiga que conhecemos e gostamos de viver, mas estou mais interessado na área metropolitana que tem 3,5 milhões. Se olharmos dessa maneira, com o estuário do Tejo e com a intensidade e a força de todas as outras cidades que estão à volta, esse caminho já nos disponibiliza uma série de possibilidades.
O que está a dizer é que pode ser interessante ir viver para o Seixal?
Se olharmos para o estuário do Tejo no seu conjunto aquilo é lindíssimo. Do ponto de vista ecológico e das paisagens, se olharmos com cuidado para cada uma dessas coisas é maravilhoso. A interacção, até com as ligações fluviais entre todas essas áreas, mostra uma cidade muito mais interessante do que só Lisboa.
Não estou a dizer isto para tentar convencer pessoas a irem morar noutros sítios, mas que se olharmos para a cidade com este potencial dos 3,5 milhões em vez dos 500 mil aparecem muitas outras possibilidades e a intervenção quer do Governo quer da câmara na promoção e na disponibilização de terrenos ou na promoção de habitação a custos razoáveis já não é tão difícil. Isso pode alterar completamente este equilíbrio de forças que neste momento se sente.
Os preços estão inflacionadíssimos e o que é normal é que haja uma gentrificação e que os habitantes de Lisboa sejam progressivamente expulsos. Só que é preciso coragem para assumir esse tipo de posições. É tudo tão lento.
Há anos que faço trabalhos na escola sobre estes temas do estuário do Tejo e parece sempre uma utopia. Entretanto vão acontecendo coisas, são tomadas decisões sem esta atenção global ao espaço geográfico, paisagístico e real em que nós vivemos.