Uma discreta revolução nasce em Leiria
Num desactivado complexo industrial, um grupo de músicos – Surma, First Breath After Coma, Whales, entre outros – lutam para viver da música. Ganham eles, Leiria e o país.
Débora Umbelino, pequena para tão grande portão de ferro, e Serra, cão escuro, vagaroso e corpulento, recebem-nos numa manhã de domingo. Débora, rapariga de 22 anos que bebe seis cafés por dia, habituou-se às manhãs nestes armazéns industriais desocupados da Movicortes, na Reixida, a uma dezena de quilómetros de Leiria, transformados em viveiro criativo: foi aqui que, durante quatro meses, gravou, das 8h30 até à noite, Antwerpen, o álbum de estreia do seu projecto Surma.
Encontramos Débora no estúdio e sala de ensaios dos First Breath After Coma, outros leirienses em ascensão. Maços de tabaco vazios formam um padrão na parede onde mora também uma folha de atrasos – o rock também se disciplina, chegar tarde a um ensaio vale multa. Cá fora, um improvisado grelhador denuncia horas ali passadas a fazer mais do que música. O espaço dos First Breath After Coma tornou-se, nos últimos tempos, na sede do Casota Collective, grupo de produção de som e vídeos para músicos formado por três membros da banda e Miguel Ferraz.
Hugo Ferreira, dono da Omnichord Records, a editora no centro da nova música leiriense, partilha com Débora os feitos de uma noite dos First Breath After Coma, que enfiam pós-rock em canções, em terras alemãs. Débora entusiasma-se: em breve será ela que estará na estrada com um disco inteiro para apresentar (ver texto nestas páginas). Concerto após concerto, Surma tornou-se um caso sério de culto na música portuguesa. E já impressiona noutros países. “Nunca pensei sair daqui, ir à Suécia ou a Espanha. Há um respeito enorme, não se ouve um zumbidinho [nos concertos]”, conta.
Na “casota”, Surma prepara agora a transposição da electrónica sonhadora de Antwerpen (com edição marcada para 13 de Outubro) para os palcos. Débora agarra-se a tudo: baixo, guitarra, sintetizadores, uma máquina de loops e pedais de efeitos, mas também auto-harpa, um violino (“estou a aprender pelo YouTube”) e um piano de brincar. Enquanto ensaia, desdobra-se entre a sua voz frágil e todos estes instrumentos, que grava e repete, reconstruindo os seus sonhos nascidos no computador portátil. “Gravámos a voz com uma qualidade brutalíssima, óptima, e eu dizia ‘mete isso com a equalização muito caseirinha, muito ruidosa’. Gosto das gravações de quarto”, confessa. “Quero a Surma um bocado fechada.”
Numa outra sala ali ao lado, onde antes andavam filhos dos trabalhadores da Movicortes (nos vidros, através dos quais se avistam meia dúzia de casas e campos agrícolas, ainda há desenhos infantis), Hugo Domingues, com os pés descalços em cima do tapete, e Luís Jerónimo, membros dos Nice Weather For Ducks, fazem música de dança com teclados e caixa de ritmos. A gravá-los está Nuno Rancho, metade dos Few Fingers, que, em breve, ocupará uma sala deste armazém onde por ora está apenas um solitário telefone no chão. O duo de Domingues e Jerónimo, ainda numa “fase embrionária”, chama-se Oba Simaa e nasceu como resposta a um convite para tocar no festival A Porta, em Leiria. Domingues, de 24 anos, resume: “Fazemos o que nos apetece, sem decidir muito. É decidir sem decidir.”
Fazer certo
A Omnichord Records foi fundada, em 2012, depois de Hugo Ferreira visitar a Islândia e ficar inspirado pelo sucesso de uma comunidade de músicos criada por pessoas normais. Desde então, os First Breath After Coma impuseram-se como uma força exportadora da música portuguesa, com concertos em toda a Europa (e uma nomeação pela Associação Europeia de Editoras Independentes para melhor disco europeu de 2016). O caminho fora de portas também já foi iniciado por Surma e Nice Weather for Ducks.
A editora de Hugo Ferreira fez mais: apostou em André Barros, pianista entre o universo clássico e o das bandas sonoras, nos rockers Twin Transistors e do rock com sapateado (!) dos Les Crazy Coconuts. E há ainda os Whales, que encontramos a aprumar o seu rock aditivado por sintetizadores numa das salas deste complexo industrial feito laboratório de bandas – preparam-se para começar a gravar em Outubro o álbum de estreia previsto para 2018. Este ano acabará com 25 edições no catálogo da Omnichord. No meio disto tudo, Hugo, que tem 39 anos, ainda arranja tempo para gerir uma fábrica de moldes.
“Este boom que está a haver em Leiria nota-se na cidade, nas pessoas lá em baixo, no centro. É óptimo ter Leiria no mapa da cultura”, diz Pedro Carvalho, de 28 anos, dos Whales. “Antes havia montes de projectos e muitas ideias, mas não saíamos de cá. O Hugo [Ferreira] pegou nas bandas e disse: ‘Malta, façam isto certo’”, aponta Hugo Domingues, dos Nice Weather for Ducks.
Em 2012, quando os Nice Weather for Ducks se estrearam nos discos com Quack!, muitos olhos voltaram-se para esta cidade no centro do país. “Já não se falava de Leiria desde os Silence 4”, lembra Hugo Ferreira. “O pessoal daqui tinha tantas bandas, havia o [festival] Fade In, que fazia concertos com gajos absolutamente incríveis que ninguém conhecia, havia várias escolas de música, imensas lojas de música – não há nenhuma cidade pequena [portuguesa] com tantas lojas de música.”
Havia combustível, faltava a ignição que os Nice Weather forneceram. De repente, havia “uma banda de Leiria a tocar na rádio”. A Omnichord, fundada nesse ano de 2012, tornou-se a estrutura “360 graus” que apoia as bandas de Leiria, do estúdio ao palco.
100% Leiria
Para Débora, da aldeia de Vale do Horto (sorri com o rosto todo quando diz, orgulhosa, “Vale do Horto”), onde “passa um carro de seis em seis horas”, 2012 “foi o começo de tudo”. Tinha então 14 anos, tocava versões em bares, apresentava-se “com cabelo comprido e t-shirt de Ramones”. Ver os “patos” saírem de Leiria deu-lhe vontade de “gravar coisas e ir lá para fora”. Antes de ser Surma, Débora passou pelos Backwater and the Screaming Fantasy, onde andaram também dois dos Whales.
Débora, que vive em Lisboa, mas visita Leiria todos os fins-de-semana (“ensaio aqui, ensaio lá, ensaio onde houver um quartinho”), olha para a sua cidade e vê uma “explosão incrível de criatividade” e um crescimento “do modo certo, não muito depressa”. Tudo muito diferente do que aconteceu na segunda metade dos anos 1990 com os Silence 4, aponta Hugo Ferreira. Aquele fenómeno, quase irrepetível, não foi o estímulo de que Leiria precisava, defende: “Não vais começar a tocar porque os Silence 4 chegaram ao primeiro lugar do top. Aquilo foi uma tempestade perfeita.”
Neste momento, há quatro projectos da Omnichord que “estão a 100% na música” (Surma, First Breath After Coma, Whales e Few Fingers), algo raro numa editora independente portuguesa. É, para já, um investimento, mas Hugo acredita que o retorno – pôr algumas destas pessoas a viver da música – pode surgir dentro de “meia dúzia de anos, no máximo”. O que falta para acelerar tudo isto? Apoios de entidades como o Turismo de Portugal, responde Hugo, que é também fundador da Why Portugal, associação apostada em promover a música portuguesa no estrangeiro. Dá exemplos que encontrou noutros países de autarquias que pagam aos músicos locais que tocam com frequência noutras cidades. “Turisticamente, a cultura e o desporto são as maiores âncoras. Quando ouço os Ermo tenho vontade de ir a Braga. Ouvi o Slow J e pensei: ‘porra, já não vou a Setúbal há tanto tempo’.”
Há óbvio orgulho leiriense no discurso “positivo” do fundador da Omnichord. “Há cinco anos, no primeiro disco dos Nice Weather, gravámos aqui, misturámos fora, fizemos o disco em França, o design foi feito noutro lado. Passados cinco anos, o ciclo já se consegue fazer todo aqui.”
Este “aqui” é para levar a sério. Foi nestes terrenos da Movicortes que a Casota gravou o vídeo de How long, dos Whales, com o actor Valdemar Santos a ser arrastado pela terra. É num armazém da Movicortes que guardam objectos que já usaram nos seus estranhos vídeos – um remo, a gaiola de On the sand by the sea dos Nice Weather for Ducks, entre outros. “É a nossa mini-Hollywood”, brinca Hugo Ferreira.
A sementinha
Passo a passo, este grupo de leirienses criou uma espécie de “cooperativa” em que os trajectos individuais enriquecem o conjunto. A experiência dos First Breath After Coma, por exemplo, deu o domínio de estúdio necessário para que o Casota Collective assumisse a produção de Antwerpen, de Surma. “Acho que o disco da Débora é muito a forma como a Casota gosta de trabalhar: a troca de ideias é fundamental para ter o melhor resultado possível. O disco da Débora foi exactamente isso: ela chegou com o que queria e depois, num trabalho conjunto, puxámos por ela: ‘‘bora’ experimentar isto’”, descreve Miguel Ferraz. “Estas músicas são tão minhas como deles”, reforça Débora.
Sorri quando diz que Antwerpen é uma obra “de Leiria”, o centro do país, o “centro do mundo” desde os tempos da escola. Vive um momento especial, cheio de solicitações. “Nem tenho dormido”, confessa Débora. “Sempre tive trabalhos em Lisboa para pagar a renda e as contas, mas não está a dar para conciliar trabalho com a Surma. Parei tudo. É um investimento que estamos a fazer. Se não estás a 100% numa coisa mais vale não estares. Temos que semear a sementinha, vamos lá a ver o que é que dá.”