As rãs que não se envenenam nem se ouvem a si próprias
Dois estudos dão conta de dois fenómenos no mundo dos anfíbios: num deles, duas espécies de rãs não ouvem os seus próprios chamamentos de acasalamento; no outro, é explicada a razão pela qual as rãs venenosas não são afectadas pelas toxinas que segregam.
Há duas espécies de rãs em que as fêmeas e os machos não conseguem ouvir os sons de acasalamento emitidos pelos machos, presumindo-se que seja o primeiro caso registado de animais que emitem sons sem que os consigam ouvir. As razões que tentam explicar o fenómeno são apresentadas num estudo feito por uma equipa de investigadores internacional, publicadas esta quinta-feira na revista científica Nature, no mesmo dia em que é anunciado um outro estudo que tenta dar resposta ao facto de as rãs venenosas não se envenenarem a si próprias.
O primeiro estudo foca-se em duas das espécies de rãs da família Brachycephalus, que têm poucos milímetros e estão entre as rãs mais pequenas que existem, de nome científico Brachycephalus ephippium e Brachycephalus pitanga — conhecidas vulgarmente por sapinhos-dourados e pingos-de-ouro. O trabalho de campo foi feito (por investigadores do Brasil, Dinamarca e Reino Unido) na Mata Atlântica do Brasil, habitat natural destas espécies, e permitiu descobrir que os machos de ambas as espécies fazem chamamentos para acasalar que estão fora dos seus próprios espectros auditivos e também do das fêmeas.
A coordenadora do estudo ficou surpreendida pela falta de resposta das rãs à reprodução do som de chamamento: “Não pensámos que seria possível que eles não fossem capazes de ouvir os seus próprios chamamentos”, afirmou Sandra Goutte, da Universidade Estadual de Campinas, no Brasil. “Este é um caso único no reino animal de um sinal de comunicação a persistir mesmo depois do grupo alvo ter perdido a capacidade de o detectar”, lê-se num comunicado da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU, de Syddansk Universitet).
Estas conclusões foram confirmadas através de testes anatómicos feitos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, que provaram que a parte da audição destas rãs responsável pelos sons de alta frequência é vestigial nas duas espécies de Brachycephalus.
Por norma, os anfíbios macho assinalam ao sexo oposto que estão dispostos a acasalar através de sons que, além de consumirem energia, podem ter o efeito negativo de atrair predadores ou parasitas — o que não é muito preocupante para estas duas espécies, já que ambas são venenosas. Ainda assim, “seria de esperar que, se um sinal não for detectado pela audiência pretendida, perder-se-ia durante o processo de evolução”, disse Goutte, principal autora do estudo.
Nos resultados da investigação, é sugerido que esta característica acústica “ineficaz” não se perdeu no processo evolutivo das rãs porque passou a ser usado como um sinal visual. Os investigadores acreditam que o que pode estar em causa não é o som emitido mas sim o factor visual, ou seja, o movimento da garganta feito pelos machos ao emitirem o som. As rãs tomam assim partido de uma característica derivada do comportamento de sinalização inicial (o som) e a hipótese faz sentido já que estes animais pertencem a espécies diurnas, que gesticulam face às ameaças e têm cores garridas, provas da importância do seu carácter visual.
E porque razão não se envenenam as rãs venenosas a elas mesmas?
Tal como as rãs da família Brachycephalus, há centenas de outras espécies de anfíbios que são venenosas. Com base na análise de 28 espécies de rãs, um outro estudo feito por investigadores da Universidade do Texas em Austin tenta dar resposta a uma questão que tem já vários anos: por que razão não se envenenam as rãs venenosas a elas mesmas? A resposta pode até ter utilidade na saúde humana.
Os investigadores analisaram um grupo específico de rãs – do género Epipedobates – que têm na sua pele a toxina epibatidina. Para evitar que os predadores as comam, as rãs usam como defesa esta toxina que, em contacto com o inimigo, se liga a receptores (proteínas no exterior das células que permitem a interacção de diferentes substâncias com o interior celular) no sistema nervoso do animal e pode causar hipertensão, convulsões e até a morte.
A resposta à questão do envenenamento parece simples: em suma, os investigadores descobriram que uma pequena mutação genética nas rãs impede que a toxina aja nos seus receptores, tornando-as imunes aos efeitos letais da epibatidina. Esta mutação estava presente em apenas três dos 2500 aminoácidos que constituem o receptor e aparecia de forma independente em três grupos diferentes dos anfíbios analisados.
Mas a forma como tudo isto acontece é mais complexa. E “fascinante”. Quem o diz é Cecilia Borguese, uma das investigadoras, que refere que uma das partes mais “aliciantes” do fenómeno é a forma como os aminoácidos, “que não entram sequer em contacto directo com a epibatidina, conseguem modificar a função de um receptor de uma forma tão precisa”. Citada num comunicado da universidade, Borguese diz-se fascinada por verificar que o receptor continua a funcionar normalmente para outras substâncias, excepto pela sua resistência à toxina em questão.
Os novos dados sobre esta substância poderão ser úteis na sua aplicação farmacêutica para uso humano, já que a toxina pode ser usada tanto como analgésico como em comprimidos para ajudar a deixar de fumar.