Kurt Weill revisitado na justa celebração de Adriana Queiroz
Graças a Adriana Queiroz, Lisboa ouviu Kurt Weill, o que tem sido raro nos últimos tempos. E num espectáculo que, sem cedências, o dignificou.
Adriana Queiroz reincidiu em KW – Kurt Weill e em boa hora o fez. Se em 2014 tinha com ela, no São Luiz, os músicos do Concerto Moderno, teve agora no Tivoli BBVA a Orquestra Metropolitana de Lisboa, sem maestro presente mas com Francisco Sassetti ao piano. Os arranjos, do pianista e compositor Filipe Raposo, resultaram em pleno, combinando leveza e força de forma eficaz e subtil, beneficiando a voz e a essência das canções. Isto, Kurt Weill em pleno coração de Lisboa em dois dias consecutivos, a noite de sábado 17 de Setembro e a tarde de domingo 18, é motivo suficiente para celebrar.
No dia de estreia, compreensivelmente, registou-se algum nervosismo da cantora, que de algum modo não lhe permitiu soltar-se como se esperaria (entrave que poderá terá sido ultrapassado na segunda exibição), mas quando dizemos “compreensivelmente” deve sublinhar-se que ela teve sobre os seus ombros não só a concepção do espectáculo como a sua produção, num esforço titânico só possível pela sua perseverança e crença na arte.
Dito isto, a dramatização do trajecto físico e criativo de Weill, seguindo o seu percurso alemão, francês e americano, correspondeu plenamente ao projectado por Adriana. Alabama Song ouve-se no início em off, com a cantora fora de cena e a orquestra a tocar para uma voz audível mas de corpo ausente. Até que ela irrompe, vinda do fundo do palco, já a cantar Der Bilbao Song e depois mais três canções escolhidas do período alemão: Der Song von Mandelay, Das lied von Surabaya Johnny e Zuhälter-Ballade. Muito boa a sua interpretação alemã, profunda e tocante. Depois, replicando Weill, troca de “cenário” e de roupa, passando logo ao período francês, primeiro com Youkali, depois com J’attends un navire e um belíssimo Complainte de la Seine, só voz e piano. Nos malões presentes no palco, uns abertos e outros fechados, a sugestão de uma viagem sempre em curso e nunca terminada – como foi a de Weill, aliás. As mudanças de roupa ocorriam aí, enquanto se ouvia, em fundo, a gravação de Brecht, ele próprio, a cantar Die moritat von Mackie Messer, vulgo Mack the knife (de que foi, com Weill, co-autor).
Ao período francês seguiu-se o americano, primeiro com Buddy on the nightshift, depois com Speak low e I’m a stranger here myself e, por fim, com o adeus de Lost in the stars, também só voz e piano, com Adriana a cantar virada para uma luz que irradiava do lado esquerdo do palco, de lado, sem olhar para a plateia, ela e Weill já de saída da ribalta.
O regresso fez-se em português. Mack the knife numa outra língua, mas, contrariamente ao que sucedera (segundo a própria cantora) no São Luiz, sem risos e com naturalidade. Adriana cantou (“Tubarão tem dentes fortes/ que não tenta esconder/ mas o Mack tem a navalha/ que ninguém consegue ver”) sublinhando as sílabas, como se fosse uma alemã a cantar português; e nessa transfiguração uniu tudo o que era necessário: Weill, Portugal, ela mesma, as palavras e o sentir de um homem a rodar por várias pátrias e sem ser bem recebido (pelo contrário) por nenhuma. Os aplausos, no fim, levaram a um único encore, que veio do período francês: J’attends un navire, cantada de forma ainda mais interiorizada e envolvente, num belo final.
Os méritos deste KW revisitado, cabendo em primeiro lugar a Adriana Queiroz (que nele apostou, e com acerto), devem ainda ser divididos pelos outros participantes: a Orquestra Metropolitana de Lisboa, Filipe Raposo e Francisco Sassetti, já antes citados, e também por Luís Madureira (apoio vocal), Helena Gonçalves e Pedro Mendes (desenho de luz) e José António Tenente (figurinos). Graças a ela, e a eles, Lisboa ouviu Kurt Weill, o que tem sido raro nos últimos tempos. E num espectáculo que, sem cedências, o dignificou.