Afinal, num túmulo com material de guerra estava mesmo uma mulher viking
Durante mais de 100 anos, um esqueleto da Idade Viking foi considerado de um homem só porque estava no túmulo com uma espada ou setas. As suspeitas foram surgindo e, agora, o seu ADN confirmou que era mesmo uma mulher viking.
Uma espada, setas e dois cavalos de guerra acompanharam um guerreiro viking no seu túmulo, situado em Birka, na Suécia. A descoberta foi feita no século XIX e sempre se pensou que se tratasse de um homem. Tudo porque havia material de guerra no túmulo. Mas a partir dos anos 70 começaram a surgir dúvidas quanto ao sexo deste viking. Uma equipa de cientistas suecos fez testes genéticos ao esqueleto e sabe-se agora que se tratava de uma mulher guerreira viking com estatuto elevado, como refere um artigo científico na revista American Journal of Physical Anthropology.
A Idade Viking estendeu-se de cerca de 790 a cerca de 1085 e foi desde a América do Norte até ao Médio Oriente e da Gronelândia ao Mediterrâneo. “Não necessariamente ao mesmo tempo ou com o mesmo impacto”, realça Hélio Pires, historiador do Instituto de Estudos Medievais da Universidade Nova de Lisboa e autor do livro Os Vikings em Portugal e na Galiza, num comentário ao PÚBLICO sobre o estudo.
Birka situa-se na ilha de Björkö, no Centro oriental da Suécia, e faz parte da história Viking. “Foi a primeira cidade da Idade Viking na Escandinávia Oriental e é um dos sítios arqueológicos mais conhecidos no Norte da Europa”, lê-se no artigo. A sua população era constituída por comerciantes, artesãos e guerreiros. “Era um local especial porque era o mais antigo de um número limitado de centros urbanos da Escandinávia antiga”, acrescenta ainda Hélio Pires, num comentário sobre o estudo. Birka tinha residentes e actividade comercial internacionais todo o ano e pensa-se que teria uma assembleia com funções legislativas e judiciais e protecção de um rei local, segundo o historiador.
Os habitantes desta localidade eram enterrados em cemitérios que circundavam a área urbana. “Aproximadamente três mil sepulturas foram identificadas nestes cemitérios, e pouco mais de 1100 já foram examinadas em contexto arqueológico”, refere o artigo. Muitas das escavações aconteceram no século XIX. Nessa altura, encontrou-se um túmulo chamado “Bj 581”, mais precisamente num cemitério junto ao forte de Birka. Aí estava um esqueleto e material de guerra, como um machado, uma espada, dois escudos, uma lança, setas, dois cavalos de guerra e peças de jogo.
Como estava acompanhado deste material, pensou-se logo que o esqueleto seria de um guerreiro viking. As dúvidas começaram a surgir só nos anos 70, quando o osteólogo Berit Vilkans referiu que os restos do esqueleto tinham características femininas. “A análise osteológica da década de 70 parece ter sido recebida com algum cepticismo porque se tem assumido que a presença de artefactos militares indica uma sepultura masculina”, frisa Hélio Pires.
Anna Kjellström, da Universidade de Estocolmo (Suécia) e uma das autoras do trabalho, continuou a insistir que este esqueleto era de uma mulher. “A morfologia de alguns traços do esqueleto sugere que era mesmo uma mulher. Mas como foi considerado um exemplar de um guerreiro viking durante um século, precisávamos de confirmar o sexo de alguma maneira”, diz num comunicado da sua universidade.
A equipa de cientistas suecos analisou o ADN do úmero esquerdo e do canino esquerdo do esqueleto. Fizeram uma identificação molecular do sexo com base nos cromossomas X e Y. Cada indivíduo tem 23 pares de cromossomas, nas condições normais, sendo que 22 deles são cromossomas não sexuais e um deles é o par de cromossomas sexuais (XY ou XX). O par de cromossomas X e Y determina o sexo masculino e os dois cromossomas X o sexo feminino. A análise da equipa sueca identificou a presença de cromossomas X e constatou a ausência de um cromossoma Y.
Guerreira sim, líder talvez não
“O indivíduo no túmulo Bj 581 é a primeira confirmação de uma guerreira viking de elevado estatuto”, lê-se no artigo científico. E era uma líder entre os guerreiros? “As peças de jogo indicam que era uma oficial, alguém que trabalhava com a táctica e a estratégia, e poderia liderar as tropas em batalha”, considera Charlotte Hedenstierna-Jonson, da Universidade de Uppsala (Suécia) e primeira autora do artigo. “É improvável que as mulheres guerreiras fossem comuns durante a Idade Viking, mas este túmulo pode ser uma excepção, o que faz dela uma mulher muito especial”, diz ainda Anna Kjellström.
Já Hélio Pires refere que esta mulher era uma guerreira, mas não é claro se seria uma líder. “Num contexto que não era o de grande parte da Escandinávia antiga [pois não havia muitos centros urbanos], a relevância militar podia não ser suficiente para se ser líder numa comunidade fosse homem ou mulher. É mais seguro dizer que pode ter sido uma figura de topo entre os guerreiros alojados no forte de Birka”, considera o historiador. “Pela dimensão e localização do túmulo e ainda pelo seu conteúdo, principalmente pelas peças de jogo que podem indicar um estatuto elevado ou um interesse em estratégia para lá do guerreiro comum.”
Esta mulher tem ainda afinidades genéticas com habitantes das actuais Inglaterra, Escócia, Islândia, ilhas Órcades, Dinamarca, Noruega, e, em menor dimensão, com os habitantes das actuais Lituânia e Letónia. Todos estes sítios pertencem ao “mundo viking”. Quanto à Suécia, este esqueleto tem mais afinidades com os suecos do Sul e do Centro sul. “Esta guerreira viking, tinha provavelmente uma origem não local, pode ter-se deslocado para Birka”, conclui-se da análise de isótopos (variantes de átomos) feita ao esqueleto.
E há mais mulheres vikings guerreiras? Anna Kjellström indica, por exemplo, que há dois túmulos com esqueletos femininos na Noruega e com armas, mas que não são consideradas guerreiras. Apenas podiam estar a acompanhar os homens. Hélio Pires também diz que há vários exemplos de esqueletos de mulheres encontradas com equipamento militar na Dinamarca e na Noruega.
E destaca-nos ainda uma sepultura norueguesa de Oseberg, datada de cerca de 830, que tem os restos mortais de uma mulher que pode ter sido uma rainha local, ou seja, uma mulher de elevado estatuto. Com ela encontraram tapeçarias, comida, utensílios domésticos ou objectos quotidianos. “O que este caso de Birka tem de excepcional é o facto de ser um túmulo com um recheio estritamente militar”, frisa o historiador.
As questões de género na Idade Viking têm vindo a ser estudadas. E em número crescente, à medida que os pressupostos de género de estudos passados têm vindo a cair, refere Hélio Pires. “Temos noção que a sociedade nórdica antiga não era igualitária, mas as mulheres também não estavam desprovidas de estatutos e direitos, já que podiam herdar bens e propriedades, exercer poder político e bastante influência religiosa”, explica.
Dá ainda alguns exemplos de narrativas muito masculinizadas, como sagas e textos com conteúdo mitológico nórdico (Edda), onde os homens se sentem muito ofendidos com acusações de feminismo. Mas destaca que estas fontes já são tardias e têm uma visão limitada da Escandinávia. E conclui:“Descobertas como a de Birka mostram que entre os nórdicos antigos havia mesmo mulheres guerreiras com um estatuto elevado.”