Ergueram-se corações no concerto de Salvador Sobral. “Algum deles haverá de servir”, disse ele
Noite de emoções na despedida ao público, por tempo indeterminado, de Salvador Sobral. Concerto no Estoril foi como havia prometido: bonito e especial.
Nos concertos que se seguiram à vitória do festival da Eurovisão, em Maio, o público esperava ansiosamente que ele cantasse a tal, aquela, o motivo que fazia arrastar multidões, a canção vencedora, Amar pelos dois. Desta vez não foi possível. O público esperou mas ele quase não a cantou.
Balbuciou. Escondeu a cara. Emocionou-se. Mas valeu-lhe um aliado de peso: as cerca de 3000 pessoas que sabiam a canção de cor e a devolveram a ele e à irmã, Luísa Sobral, também presente em palco.
Foi esta sexta-feira à noite, nos jardins do Casino do Estoril, naquele que foi o concerto emocionado do “até já”, ou na sua versão espirituosa do “até…jazz”, a pausa por tempo indeterminado por razões de saúde.
A notícia soube-se na terça-feira, através do próprio, na sua página do Facebook. “Já não é segredo para ninguém que a minha saúde é frágil”, dizia num vídeo, adiantando que havia chegado a altura de entregar “o corpo à ciência” e ausentar-se “da vida dos concertos e da música em geral.” Recorde-se que no final do mês passado havia cancelado três concertos por razões de saúde. O espectáculo do Estoril, a “despedida temporária”, foi antecipado por ele como sendo “bonito e especial.”
E foi. Nestas ocasiões a coisa pode descambar. O desejo de amparo do público pode ser desmesurado e quem está em palco soçobrar. Mas não. Claro que existiu muita emoção. Mas foi tudo justo, íntegro, isso, bonito.
Às tantas, já o concerto de duas horas ia na segunda metade, gracejou que, agora sim, finalmente, começara a habituar-se à fama e a saber geri-la. “Agora abracei a vida de famoso, até já digo aquelas coisas: você sabe quem eu sou?”, brincou, pedindo desculpa se alguma vez se excedeu “por nem sempre ter lidado bem com a fama”, para logo de seguida, no seu jeito paradoxal, recordar que entre o público poderia haver “convidados indesejados”, numa menção ao jornal Correio da Manhã, “mas isto era à borla”, disse, provocando risadas, e “não se pode controlar quem vem”.
Foi quase sempre assim. Nos intervalos entre as canções discorreu sobre o seu momento actual, a doença, o seu aspecto físico, a permanência em hospitais, mas sempre com uma graça desarmante. E quando a música se fez ouvir, fez-se um respeitoso silêncio na assistência. No início havia pedido para que não existissem distracções com telemóveis e fotografias.
E assim aconteceu. Esse talvez tenha sido o seu maior triunfo desde Maio. O de ter conseguido fazer perceber ao público que era muito mais do que aquela canção. No início foi difícil. Agora não. E a grande maioria revela disponibilidade para se deixar levar numa viagem onde o jazz vocal é abordado com desenvoltura por um intérprete dotado, mas também por três excelentes músicos que o acompanham e que também não esperariam ver a sua música exposta desta forma para um público tão transversal.
“No piano”, apresenta Sobral, “e na amizade”, Júlio Resende. No contrabaixo, “já lhe saquei umas gajas”, o André Rosinha. E na bateria o “lendário” Bruno Pedroso. Mais tarde haveria de voltar a Resende para, comovido, dizer que “vou ficar sem a minha alma gémea musical durante algum tempo, mas no regresso haveremos de fazer muitas coisas juntos”.
A ideia de partida temporária, como é evidente, esteve presente ao longo da noite. Salvador Sobral não esconde nada, é generoso na forma como se entrega, mas ao mesmo tempo tem consciência do seu lugar. “Estou sensibilizado com esta coisa dos corações”, afirmou no início, numa alusão ao facto de terem sido distribuídos milhares de balões brancos em forma de coração ao público, com a assistência de imediato a saudá-lo com os ditos, para ele rematar que “algum deles haverá de servir”, fazendo rir a assistência..
Não é preciso dizer mais. O auditório percebe a alusão ao momento de saúde que está a viver. “Não é fácil cantar com um nó na garganta, mas vamos conseguir”, lançou, dizendo que tem a certeza que o seu pai, presente, a esta hora, “já rebentou o seu coração.” Pelo meio canta em português, castelhano ou inglês, puxa as calças para cima amiúde, senta-se por vezes, às vezes procura a sombra do palco para observar apenas os músicos quando estes se entregam a jogos instrumentais colectivos.
No final da interpretação de Ela disse-me assim, onde canta as desventuras do amor, enternece-se, dizendo que é uma canção bonita e “agora não vamos poder ouvi-la durante um tempo”. Às vezes existe apenas as notas, soltas, espaçosas, do piano de Resende, e a sua voz, como em Nem eu, “uma canção que não precisa de explicação de tão bonita”, tinha dito antes, adiantando que “hoje quase não consigo falar o que não é nada habitual, mas o Júlio vai falar à sua maneira”, numa balada elegíaca, preguiçosa e íntima. “Quem inventou o amor não fui eu nem ninguém”, canta no maior dos silêncios, apenas o vento a passar.
Na assistência, no final da interpretação, grita-se “és o maior!”, e ele riposta, “estão a gostar? Também não pagaram um cêntimo”, provoca entre risos, antes do quarteto entrar numa toada mais próxima do blues com Benjamin, com o contrabaixo, encorpado, em grande evidência.
Depois houve aquele momento, chamou a irmã ao palco, para cantarem, mais uma vez, mais uma noite, Amar pelos dois, mas não foi fácil, com momentos em que foi o público que suportou a canção, tornando-a sua, restituindo-a aos seus autores, comovidos, com ele de seguida, na canção seguinte, a despedir-se com um “Hello hello, i don’t know why you say goodbye, I say hello”, citando os Beatles. No encore, sentou-se só ao piano, falando com afecto dos pais, ficando a pairar A case of you (Joni Mitchell), antes de sair de cena, à flor da pele, com o público a gritar “até já”.
Notícia corrigida às 12h00: corrigiu-se o nome da irmã de Salvador Sobral.