Madrid avança com tudo para travar referendo, independentistas não recuam
"Não haverá referendo de autodeterminação. A democracia responderá com firmeza”, prometeu Rajoy. Em Barcelona, sob os comandos de Puigdemont, os dirigentes catalães continuaram imparáveis no seu plano para organizar a consulta de 1 de Outubro.
Na Catalunha, pelo segundo dia consecutivo, o plenário do parlamento esteve reunido em clima de guerra, com os independentistas a contornarem regulamentos e a retirar a palavra a membros da oposição para fazerem aprovar duas leis que o Governo em Madrid, os principais partidos do país e a Justiça consideram ilegais: a Lei do Referendo de Autodeterminação, aprovada perto das 22h de quarta-feira, e a Lei Fundadora da República e da Transitoriedade, aprovada na noite desta quinta-feira. É com esta legislação que os partidos que apoiam a Generalitat (governo regional) contam organizar uma consulta no dia 1 de Outubro e, caso vença o “sim” pela independência, estar prontos para a declarar e começar a aplicar de imediato.
Pelo segundo dia, a guerra de palavras no parlamento da Catalunha foi permanente. A tensão chegou a um ponto que um deputado do Catalunya Sí Que Es Pot (aliado do Podemos), que se absteve nestas votações, pediu a palavra para defender os colegas do Partido Popular, Cidadãos e PS Catalão, impedidos sucessivamente de falar pela presidente da assembleia, Carme Forcadell.
“Estamos dispostos a acabar de cara partida para que os outros grupos possam exercer os seus direitos, não se apercebem da gravidade do que se está a fazer aqui”, afirmou Joan Coscubidela, dirigindo-se ao presidente da Generalitat, Carles Puigdemont, e arrancando aplausos das bancadas da direita (PP) e centro-direita (C’s). “Não é tudo igual, senhor presidente. E você tem a responsabilidade máxima”, insistiu Coscubidela.
Pelo que se vê em Barcelona desde quarta-feira de manhã, desta vez os independentistas não estão mesmo dispostos a recuar, decida o Tribunal Constitucional ou a Procuradoria-Geral o que decidir. E, como esperado, perante esse desafio, ao presidente do Governo espanhol, Mariano Rajoy, só restava avançar com tudo o que tem ao dispor.
Na conferência de imprensa em que surgiu rodeado por todos os membros do seu Governo (com excepção de Alfonso Dastis, dos Negócios Estrangeiros, ausente do país), o primeiro-ministro garantiu que estará à altura do desafio. “Sei o que se espera de mim. Farei tudo o que for necessário, sem renunciar a nada, para evitar o referendo”, disse, numa referência à possível aplicação do artigo 155 da Constituição que permite suspender os cargos eleitos ou mesmo assumir o governo da região autonómica. É a chamada “bomba atómica”.
A vontade dos catalães
“A consulta não vai celebrar-se. Não haverá referendo de autodeterminação. A democracia responderá com firmeza, compostura e dignidade”, acrescentou Rajoy. O primeiro-ministro acusou a Generalitat e o seu presidente, Carles Puigdemont, de ter recusado as suas aberturas de diálogo e optado por “impor este referendo que nenhum presidente [de governo] de Espanha pode aceitar ou negociar”. “Ao recorrer ao Constitucional”, disse Rajoy, “o Governo também está a defender a autonomia da Catalunha. A vontade dos catalães foi desprezada”.
Quando falou aos espanhóis, Rajoy já tinha adoptado seis medidas para responder à aprovação, pelo parlamento da Catalunha, da Lei do Referendo de Autodeterminação. Para além de recorrer para o Tribunal Constitucional contra a lei pelos independentistas, decidiu impugnar os decretos de convocatória e regulação da consulta, assim como a nomeação dos membros do Comité Eleitoral; vai ainda contestar a “lei da ruptura” (como é conhecida a Lei Fundadora), e solicitar à justiça que notifique de todas estas decisões os membros do governo catalão, os responsáveis parlamentares e os 947 autarcas da região.
Ao início da noite, o Tribunal Constitucional suspendeu a Lei do Referendo aprovada na véspera e os decretos entretanto assinados para convocar a consulta de autodeterminação. Os 12 juízes tinham decidido reunir-se de urgência para analisar os pedidos de impugnação e os recursos apresentados pelo Governo de Madrid contra os políticos catalães.
Polícias de sobreaviso
O Procurador-Geral, José Manuel Maza, anunciara entretanto que vai adoptar medidas "para a defesa da legalidade e do Estado de Direito", ou seja para inviabilizar a Lei Fundadora da República e da Transitoriedade, que, na prática, visa permitir a separação da Catalunha do resto de Espanha. Maza deu ordens à Policia Nacional, Guardia Civil e Mossos (polícia catalã) para que investiguem, "através das suas unidades de polícia judicial todas as actividades destinadas à organização do referendo ilegal". Desde quarta-feira que há dois agentes à porta de uma gráfica onde se suspeita estarem a ser impressos os boletins.
As medidas ordenadas por Maza passam por acções judiciais contra todos os membros do governo da Catalunha, bem como contra os deputados do parlamento catalão e a sua presidente, Forcadell, que permitiram a passagem da lei do referendo. Ausentaram-se na altura da votação o Partido Popular, Cidadãos e Partido Socialista da Catalunha.
São ainda visadas as quatro procuradorias catalãs, para evitar que possam agir de algum modo na preparação do referendo. E todos os que se envolvam na impressão de boletins ou preparação das mesas de voto – polícias, professores, funcionários administrativos – podem ser multados ou perder os seus empregos; basta participarem em qualquer actividade vista como destinada a ajudar na votação.
As diferenças com 2014
Puigdemont deu 48 horas aos autarcas para disponibilizarem os locais habituais de voto ou recusarem fazê-lo; segundo a Associação de Municípios pela Independência, 400 dos 947 autarcas da região já responderam afirmativamente ao longo do dia. Mas para além do aviso do procurador, Rajoy decidiu escrever ele próprio a todos os presidentes de câmara. “Queremos que estejam avisados do seu dever de impedir ou paralisar qualquer iniciativa que favoreça a organização do referendo”, afirmou o chefe do Governo no final do Conselho de Ministros extraordinário.
Longe está 2014, quando o então líder da Generalitat, Artur Mas, desistiu do referendo que prometera aos catalães, declarado ilegal pela justiça, transformando-o numa consulta não vinculativa supostamente organizada por associações civis – Associação Nacional Catalã, na altura presidida por Forcadell, e Ómnium Cultural – e por um exército de voluntários, sem participação sua ou de membros do seu executivo. Não foi por isso que Artur Mas se livrou dos tribunais: condenado por “desobediência grave” e prevaricação”, está impedido de exercer cargos públicos durante dois anos.
Certo é que a 9 de Novembro de 2014, 30% dos eleitores catalães saíram de casa para votar, mesmo sabendo que o seu boletim não teria consequências políticas. Mais de 80% dos que votaram escolheram que “a Catalunha passe a ser um estado independente de Espanha”. As expectativas criadas à população não podiam mais ser ignoradas; agora, parece ser o momento de não retorno para cumprir a promessa de um referendo vinculativo.
Num sinal claro de como a crise catalã é uma crise espanhola, o presidente da Xunta e líder do PP da Galiza, Alberto Feijóo, descreveu os acontecimentos na Catalunha como “o mais grave que Espanha já passou desde o 23-F (a tentativa de golpe de Estado de 1981). Em Madrid, Rajoy tem contado com o apoio inequívoco dos principais partidos, PSOE e Cidadãos, numa unidade que contrasta inevitavelmente com a guerra que se vive na Catalunha.
Os independentistas não parecem dispostos a recuar e dizem ser já tarde para o diálogo. Como resumiu o porta-voz do governo catalão, Jordi Turull, “faça sol ou faça chuva, vamos fazê-lo porque é esse o nosso contrato com os cidadãos da Catalunha.”