Nas eleições de 1997, o Natal chegou ao Porto a 6 de Novembro
Sem metro e pré-Capital Europeia da Cultura, o Porto era uma cidade bem diferente, em 1997, quando Fernando Gomes enfrentou e venceu o polémico Carlos Azeredo. Ilda Figueiredo, da CDU, é o denominador comum das duas eleições, repetindo a candidatura à presidência da Câmara do Porto, 20 anos depois.
As autárquicas para a presidência da Câmara do Porto, em Dezembro de 1997, resumem-se numa frase publicada a 30 de Novembro desse ano, nas páginas do PÚBLICO, em que se previa que as eleições passariam “completamente despercebidas se a ‘nova AD’ não tivesse escolhido um candidato que logo a abrir provocou um pequeno terramoto com as suas declarações sobre o nazismo”. O terramoto foi causado por um artigo de opinião, no Jornal de Notícias, a 1 de Agosto, no qual Carlos Azeredo se referia a uma investigação sobre o chamado “ouro nazi”, colocando Holocausto entre aspas, questionando o julgamento dos nazis por um júri que continha “a Rússia Soviética” e argumentando que “a nação” judaica fora “a inventora da usura”.
Num ano em que o socialista Fernando Gomes, vencedor mais do que esperado, se candidatava a um 3.º mandato – que haveria de abandonar a meio, sendo castigado pelo eleitorado nas eleições seguintes –, o adversário apresentado pela coligação CDS-PP/PPD-PSD era o polémico general Carlos Azeredo e os meses que antecederam a eleição de 14 de Dezembro foram mais marcados por casos políticos do que por propostas para a cidade. Na CDU, Ilda Figueiredo era, como hoje, a candidata apresentada.
Há 20 anos a cidade não tinha metro e pelas suas ruas e a vida dos cidadãos não tinha passado ainda o furacão Porto 2001 - Capital Europeia da Cultura. Conhecendo os impactos que um e outro tiveram no Porto, é fácil perceber como a cidade era, então, bem diferente do que é hoje. Mas juntem-se mais três factores – a Via de Cintura Interna ainda estava em fase de conclusão, com o último troço a abrir apenas no último trimestre do ano; o Douro ainda não tinha qualquer ETAR nos limites da cidade; do turismo quase não se falava – e não há como pensar que os problemas de então eram os de hoje.
Ou talvez não seja bem assim. Temas como a desertificação do centro já andavam na boca de todos os candidatos, ainda que o próprio Fernando Gomes dissesse que esse problema não se aplicava nas freguesias do centro histórico, onde “as densidades populacionais são fortíssimas”. E numa intervenção que poderia ter saído, ipsis verbis, da boca de alguns dos candidatos deste ano, Gomes anunciava, no final de Setembro, que queria “criar condições para que a classe média que, a partir dos anos 80 trocou o Porto pelos concelhos limítrofes […], regresse à cidade”. Ilda Figueiredo rivalizava com Carlos Azeredo na visita a bairros sociais e defendia, em relação às ilhas da cidade, que a câmara deveria recuperar as que fosse possível, demolir as restantes e construir habitação social para esses moradores.
Familiar? Não é o único caso. A comunista já andava, há 20 anos, a defender interfaces de transportes e parques de estacionamento periféricos, além da manutenção do eléctrico, enquanto Carlos Azeredo argumentava que a gestão da STCP devia passar para a então Junta Metropolitana do Porto – o actual Conselho Metropolitano do Porto, que viu, este ano, esse processo concretizado. E se acha que o Museu da Cidade polinuclear que Rui Moreira tem andado a instalar pela cidade é uma ideia nova, esqueça – ele já fazia parte do programa de Fernando Gomes nas eleições de 1993 e era apontado como um dos projectos que ficaram por cumprir.
Esse e a construção da Via Nun’Álvares (ainda alguém se lembra dela?), a transformação do Palácio de Cristal num edifício cultural e da Estrada da Circunvalação num “boulevard” ou a construção de uma nova ponte sobre o Douro – que Porto e Vila Nova de Gaia acabariam por apresentar em meados de Outubro. Era uma estrutura situada 300 metros a montante da Ponte da Arrábida, que uniria a VL8, em Gaia, à Via Panorâmica, no Porto, entre as faculdades de Letras e Arquitectura. E se pensa se recorda de ter ouvido falar disto recentemente, é capaz de ser verdade, já que a ideia desta ponte foi sendo recuperada, de vez em quando, pelo ex-presidente da Câmara de Gaia e candidato derrotado do PSD ao Porto nas últimas eleições, Luís Filipe Menezes.
Se a proximidade entre o Porto de há 20 anos e o de hoje ainda lhe parece pequena, fique com a informação de que 1997 foi o ano em que o edifício do antigo Matadouro, em Campanhã, regressou à posse da câmara, com Fernando Gomes a pretender instalar ali um equipamento de apoio à actividade municipal. Só para terminar, o que o PÚBLICO identificava como “a grande proposta” de Gomes para o novo mandato que se adivinhava era a reconversão e dinamização da zona Oriental. Em meados de Novembro, a cerca de um mês das eleições, o autarca andava mesmo pelos Estados Unidos da América, segundo as notícias, “a estudar parques lúdicos para Campanhã”. O socialista pretendia instalar ali, no ano 2000, a “Feira Popular do século XXI” – o que retira toda a inovação a Rui Rio quando, anos depois, foi a Copenhaga, na Dinamarca, espreitar o parque Tivoli, como uma hipótese para dinamizar a freguesia mais Oriental do Porto.
Do que não se falava em 1997 era do turismo e das eventuais consequências negativas que poderia trazer. O “inimigo” favorito desse ano eram os arrumadores, com Carlos Azeredo a prometer acabar, fosse como fosse, com essa “praga”. O vencedor do concurso do metro foi conhecido em plena pré-campanha e o general insistia que o traçado previsto devia incluir a Exponor e o aeroporto. O Mercado do Bolhão, tema quente dos últimos anos de campanhas eleitorais, não aparece nos discursos e visitas dos candidatos retratados no PÚBLICO, e o Bairro do Aleixo, imagine-se, era apresentado como estando a ser objecto de “uma acção exemplar por parte da autarquia portuense”, estando a mudar a sua imagem como um dos principais espaços de tráfico de droga da cidade. Já na Pasteleira circulava um panfleto a apelar ao boicote às eleições, tantos eram os problemas por resolver no bairro camarário – e que hoje continuam a ser mais que muitos, enquanto o título “Aleixo ressuscita”, de 1997, parece agora uma estranha ironia.
Mas, como já foi referido, as eleições autárquicas no Porto, em 1997, com um vencedor anunciado à partida, foram muito mais marcadas por casos políticos do que por propostas inovadoras para a cidade. A emoção, diga-se, estava toda do outro lado do rio Douro, onde Luís Filipe Menezes se apresentava pela primeira vez como candidato à presidência da Câmara de Vila Nova de Gaia, contra um estafado Heitor Carvalheiras. Menezes venceria esta eleição e retiraria a Gomes e ao PS a vontade de fazer grandes festejos, na noite eleitoral, já que a perda de Gaia significou também a perda da maioria socialista na Área Metropolitana do Porto.
Voltando a Fernando Gomes, ele era o vencedor anunciado, mas era também o candidato que não iria cumprir o novo mandato até ao fim, algo de que já se falava meses antes das eleições. O autarca demorou a oficializar a sua candidatura – só o faria a 3 de Outubro e depois de, alegadamente, ter obtido “garantias” do Governo de que poderia avançar com projectos como o Metro do Porto. Um dia antes de apresentar a candidatura, afirmava estar “a ponderar levar até ao fim” o mandato, mas a 3 de Outubro era bem mais taxativo. “Sou candidato de corpo inteiro para uma missão de quatro anos”, afirmava, acrescentando ainda: “Quando terminar a minha vida política gostaria de o fazer como presidente da Câmara do Porto”. Só que, a poucos dias das eleições, num encontro com estudantes de Direito da Universidade Católica, as certezas já pareciam menores: “Só um terramoto me levará a deixar o Porto, mas em política, nunca se diz nunca”, declarou.
Gomes abandonaria a câmara em Outubro de 1999 (deixando o polémico independente e seu número dois, Nuno Cardoso, a substitui-lo), para seguir para o Governo como ministro Adjunto e da Administração Interna, mas a experiência correu-lhe mal e o Porto não lhe perdoou o abandono – quando se recandidatou em 2001 foi vencido, contra todas as sondagens, por Rui Rio.
Já em 1997, a população não parecia particularmente satisfeita com a prestação de Gomes, classificando, numa sondagem da Universidade Católica, como estando mal ou muito mal a situação do trânsito (55,7%), da habitação (42,8%), da segurança (47,2%) ou do saneamento (33%) na cidade. A questão é que o adversário mais directo de Fernando Gomes era Carlos Azeredo e nada na campanha de Azeredo – monárquico, ex-chefe da Casa Militar do Presidente Mário Soares e, nas palavras de Vasco Lourenço, um militar do 25 de Abril “que se arrependeu logo no dia seguinte” – parecia correr bem.
Agosto estava a começar e o general incendiou o Verão com o polémico artigo publicado no Jornal de Notícias. Espécie de André Ventura de há 20 anos, Azeredo foi contestado publicamente por pessoas dentro do PSD, mas nenhum dos partidos da coligação lhe retirou o apoio e ele continuou, declarando a O Independente, por exemplo que ainda lhe soava “bem o Deus, Pátria e Família” e que “a classe política do Estado Novo era mais séria”. Pelo caminho, foi obtendo declarações de apoio de estruturas da extrema-direita, como o Centro Nacional de Estudos e o Movimento da Direita Nacionalista – o que, neste último caso, levou a campanha do general a emitir um comunicado, declinando “qualquer responsabilidade” no apoio anunciado.
O regresso dos golfinhos
Com Amorim Pereira, actual vereador da Câmara do Porto caído em desgraça no PSD, como número dois, e o entretanto falecido vereador de Rui Moreira, Sampaio Pimentel, como director de campanha (Pimentel acabaria por se demitir a meio, em protesto pela falta de apoios), Carlos Azeredo apresenta o seu programa de campanha com a indicação de que quer voltar a ter golfinhos no rio Douro, como aqueles que, dizia, “encantaram as [suas] tardes de menino” e acaba por levar Fernando Gomes à fúria, e à recusa em participar em qualquer iniciativa em que o general esteja presente, já em plena campanha, quando, num debate na Rádio Renascença, acusa o autarca de “promover a corrupção”.
A presença do presidente da Câmara do Porto na rádio já tivera um momento caricato quando, a 12 de Novembro, o primeiro ouvinte a participar no Fórum da TSF para o qual Gomes fora convidado lança a pergunta: “O dr. Fernando Gomes usa cabelo postiço?”. O autarca recusou-se a responder, indignando-se com o que disse ser uma pergunta “encomendada”. A ouvir a intervenção, na companhia dos seus apoiantes, Carlos Azeredo manda emitir um curto comunicado, ditando: “Se eu quiser, far-lhe-ei directamente a pergunta sobre o que usa na cabeça.”
Ilda Figueiredo, que tinha duas outras mulheres a fazer-lhe companhia na corrida à presidência – Alda Macedo, pelas Esquerdas Unidas pelo Porto, e Maria Hermínia Fernandes Antunes, pelo PCTP/MRPP – conseguiu ser eleita, mantendo a tradição de existir um vereador CDU no executivo portuense. Mas nem as duas outras candidatas nem os candidatos da UDP, José Castro, ou do PPM, Portal Madeira, tiveram a mesma sorte.
Para Fernando Gomes, que conseguiu quase 55,8% dos votos (Azeredo ficou-se pelos 26,3%) a eleição foi um verdadeiro passeio, só crispado pelas lutas internas socialistas de quem não gostou de ver o independente Nuno Cardoso declarar, à TSF, que o PS não era um partido atractivo e que só poderia assumir funções de vereador a tempo inteiro em 1999, caso contrário, levaria “à ruína” o orçamento familiar. Por isso, Gomes pouca campanha fez e andou mesmo pelos EUA e pelo Luxemburgo, onde apresentou a candidatura da cidade a capital europeia da cultura, enquanto os opositores faziam pré-campanha. Além de umas visitas a bairros que não foram previamente divulgadas junto de toda a comunicação social e de alguns debates, o autarca ofereceu à cidade “o recorde mundial da antecipação das luzes de Natal”, como se ironizava no PÚBLICO, ao ligar a iluminação a 6 de Novembro. E nem o slogan escolhido, curiosamente, o prejudicou. Achou estranha a mensagem dos cartazes deste ano do socialista Manuel Pizarro, “Fazer pelos Dois”? Então diga lá o que acha da mensagem escolhida por Gomes, há vinte anos: “Esta cidade não tem fim. Este projecto sim.”.