Benjamin Clementine: "Não vou desperdiçar tempo a escrever canções de amor"
I Tell a Fly é o momento em que Benjamin Clementine deixa o seu íntimo para lançar o olhar sobre o mundo. É um álbum sobre a Europa, a sua Europa e os muros que ergue. É também, diz ao Ípsilon, o penúltimo álbum da sua carreira.
O jovem que ninguém ali conhecia, muito alto e elegante, depositou a grande mala que carregava às portas da basílica do Sagrado Coração, em Montmartre. Não lhe servia de nada, era só peso. Peso de coisas antigas, peso morto. Deixou-o ali, perante o olhar de quem não o conhecia, ou que talvez o tivesse visto a tocar de fugida no metro ou nas ruas, mas isso não é conhecer, é reparar em alguém na lufa-lufa do quotidiano e esquecer esse rosto no momento seguinte. Benjamin deixou ali o saco e seguiu, subitamente mais leve, bem mais leve que o peso do saco que carregava. Era então um jovem adolescente de 19 anos. “Embarquei nesta… nova vida”, recordou há alguns anos. A história começava naquele preciso momento. O resto já sabemos.
Benjamin olhou pela janela do avião e não viu estrelas. Viu luzes lá em baixo, muitas, cada vez mais, cada vez mais próximas. Imaginou que as estrelas caíam e iluminavam a terra. “Tudo está em Nova Iorque, as estrelas estão ali mesmo. Transformaram-se em seres humanos”, recordava. Não foi a sua única surpresa à chegada. No Visa que o autorizava a permanecer em território americano, Visa de artista, lia-se, “Alien of extraordinary abilities” – ou seja, um “estrangeiro”, um “estranho”, um “extraterrestre de aptidões extraordinárias”. Primeiro, sentiu-se “perturbado” com o termo utilizado. Depois, pensou em “ironizar” com a situação. Em seguida, assim que pôs os pés na nova casa americana, escreveu: “Alien O Alien! / Standing here and mingling with / birds that cannot fly and fishes that / cannot swim and rainbow black and white / and man that cannot love / what anomaly / O farewell! / farewell alien!”. A história começava naquele preciso momento. A história que estamos a conhecer agora, a de I Tell a Fly, o muito aguardado segundo álbum de Benjamin Clementine, 28 anos, com edição marcada para 15 de Setembro.
Introduz-se com rumores que se tornam vozes indistintas, sons saídos da neblina. “C’est la vie” (será essa uma das expressões que dizem?), ouve-se, antes de as vozes serem substituídas pelas notas do piano em canção de embalar dolente, antes desta ser substituída pelo som metálico, antigo, do cravo, e pela voz de Clementine, o cantor/actor deste álbum pensado como peça em que mergulhamos – sabendo isto, não nos surpreendemos ao sermos agitados pela força da bateria e do baixo que se erguem como em musical da Broadway, mas musicado pelos Sparks. “Farewell alien!”, diz o ‘alien’ que canta. Adeus, estrangeiro, estranho, extraterrestre - é indiferente que tenha ou não aptidões extraordinárias, pois tais distinções não fazem caminho na selva. “Deus salve a selva”, canta agora Benjamin (estamos na segunda canção). Canta esse lugar, traduzamos livremente a letra, “onde as tensões aumentam e onde as crianças têm que crescer o mais rapidamente possível”. I Tell a Fly foi composto nos Estados Unidos, mas a selva a que se refere estava a um continente de distância, bem próxima de Benjamin Clementine – está-lhe no sangue, afinal. Chama-se Europa.
“Nasci nas costas da Europa e senti que tinha que falar dela, porque [na música] muito poucas pessoas o estão a fazer neste momento”. Porquê? “Por uma razão muito simples, porque existe uma coisa chamada conforto. Se se faz dinheiro a falar de tretas, porquê abordar uma questão complexa como esta? Afinal, estão felizes a fazer dinheiro e a viver a sua vida enquanto falam de rabos de mulher, que é o que ouço quando ligo a rádio. Não culpo quem o faz, mas eu não sou assim. Não nasci assim.”
É dia 19 de Agosto e estamos no auditório do Centro Cultural de Paredes de Coura, horas antes de Benjamin Clementine se apresentar no palco principal do festival para um concerto que marcou irremediavelmente a sua 25ª edição. Quando fala ao Ípsilon na sua voz caída num quase sussurro, sopro sumido mas de uma firmeza que nos obriga a ouvir com atenção cada palavra, já sabemos que Clementine, o alienígena, o viajante, nasceu com outra forma.
Conhecemos a história e a lenda: o crescimento no bairro londrino de Edmonton; a relação turbulenta com a família; a vida de sem-abrigo a tocar no metro e nas ruas de Paris; a descoberta daquela voz, com assombro, no programa de Jool’s Holland na BBC; a chegada do primeiro álbum At Least For Now (2015); os concertos a chegarem a Portugal e o público a render-se àquela voz, àquela transparência emocional, à forma como, para nossa felicidade, parece carregar nele, “a tristeza essencial da vida”, como alguém apontou de forma certeira. Clementine fá-lo sem angústias ou miserabilismos e, na sua música, reconhece essa tristeza enquanto se ergue acima dela – “I’m sending my condolence to fear / I’m sending my condolence to insecurities”, como canta numa das canções de At Least for Now, palavras feitas coro na noite de Paredes de Coura, luzes de palco desligadas e 27 mil a repetirem-lhe os versos.
Nesse concerto, vimo-lo como o tínhamos visto antes. O banco de pé alto, adequado aos seus mais de 1,90 m, em que se empoleira enquanto os dedos percorrem as teclas do piano e a voz que surge, expressiva como poucas, para cantar sem outro acompanhamento, rosto fechado nos versos, rosto que se abre num sorriso enquanto observa o público que o segue suspenso em cada palavra, em cada esgar. Nesse concerto, vimo-lo como quer que o vejamos agora. Havia o som de um cravo a atravessar os tempos e um coro que cantava como em tragédia grega e que exprimia em discretas coreografias a narrativa cantada. Houve Benjamin Clementine a interagir com o coro e a guiá-lo, houve Benjamin Clementine a sair do banco do piano e a dirigir-se directamente à audiência, cantor que já não era só o cantor, mas alguém que chamava o público até si, que lhe mostrava o ponto que liga o Billy, the bully de Phantom of Aleppoville à corrida desesperada dos que, entre escombros e tiros de snipers e bombas caindo sem aviso, procuravam sobreviver na cidade síria que deu título à canção.
I Tell a Fly é o título do seu novo álbum. “É a história de duas moscas em viagem, e da descoberta que fazem de tantas coisas. Descobrem animais que nunca viram antes, e depois separam-se”, explicou em entrevista recente à Fader. “Eu, enquanto narrador, conto a história destas duas moscas” – o título é, também, um jogo fonético: “É um jogo de palavras com ‘I tell a lie’ [‘Eu digo uma mentira’]”, referiu. Porque ele fala de si enquanto fala de Calais e enquanto fala de Alepo. Porque fala de leões e águias e ratazanas enquanto fala da Europa dos muros e do medo do outro.
Quando olhou para o Visa e leu aquele “Alien with extraordinary abilities”, encontrou o tema a que queria dedicar a sua música. “Percebi que aquela era a palavra que procurava há muito. É isso que sou, é assim que quero que me descrevam. Todos somos alienígenas, todos somos nómadas, viajantes”, diz ao Ípsilon, dedos entrelaçados e tronco dobrado para se tornar mais próximo, para que o ouçamos melhor. Tudo o que tinha preparado para um segundo álbum, todos os esquissos que ia preparando foram então postos de parte. “No tempo que vivemos, é isto que nos define. Daqui a vinte anos, daqui a duzentos anos, quando as pessoas olharem para estes anos, falarão de viajantes, falarão de como se fecharam fronteiras, de como se destruiu a vida de tantos, em países como a Síria. Este é o meu tempo. Pensei: para quê escrever mais uma canção de amor? Escrevem-se e escrevem-se canções de amor, ‘baby, baby’ e muito blá blá blá. Não vou desperdiçar o meu tempo enquanto artista a fazê-lo, porque já foi feito. Mas julgo que uma canção como Phantom of Alepoville ainda não tinha sido feita”.
"Não sou político, nem profeta"
“Não vou desperdiçar o meu tempo enquanto artista”, disse-nos Benjamin Clementine. A ideia de si enquanto artista é fundamental para o compreendermos e para mergulharmos no álbum que acaba de editar. É uma ideia que atravessa todo o seu percurso. Uma ideia fundada na sua singularidade. É o mais novo de cinco irmãos e cresceu numa família de classe média, de ascendência ganesa. Foi criado pela avó até à morte desta, depois pela mãe e pelo pai, entretanto divorciados, num ambiente rígido marcado pela devoção católica e pela vontade férrea do pai em vê-lo cursar Direito, chegando por isso mesmo a proibi-lo de ter instrumentos musicais em casa. Clementine foi, nas suas próprias palavras, uma criança marcada por uma timidez paralisante e uma dificuldade aparentemente inultrapassável em relacionar-se com os outros – o bullying que sofreu na infância e a que regressa tantas vezes foi a dura consequência. O mundo moderno pouco lhe dizia. Quando ouvia rádio, não parava nas emissoras pop e rock, mas sim na BBC 3, dedicada à música erudita e que lhe mostrava, para seu assombro, Satie ou Debussy.
Os colegas embirravam com ele e gozavam-no por, ao contrário deles, fazer questão de usar o uniforme da escola mesmo nos dias em que não tinha aulas. Fazia-o porque o pai rasgava as camisolas com capuz e a roupa desportiva dos filhos – queria que se apresentassem como jovens adultos vestidos de forma distinta e, ao mesmo tempo, receava que aquela roupa que rasgava, numa sociedade tendencialmente discriminatória, chamasse a atenção da polícia para os filhos. Mas Benjamin sentia-se bem no seu uniforme – via-o como forma de se distinguir num mundo de iguais. Talvez, especulemos, se sentisse dessa forma mais próximo daqueles que, conta, eram então os seus únicos amigos, pessoas com nomes como William Blake, Rimbaud ou T.S. Eliot, nascidas em séculos diferentes do seu, mortas há muito, mas vivíssimas na sua imaginação. A sua ideia de artista, a de alguém que tem que acrescentar ao mundo algo de profundo, de questionador, de revelador, ficará aí formada. Lemos no seu site: “Não sou nem um político, nem um profeta, mas um artista que crie apenas para entreter não é melhor que um vigarista”.
Clementine descobriu com Bob Dylan, Nick Cave, Leonard Choen, Tom Waits ou Nina Simone que os músicos que mais admirava não se limitavam a cantar, falavam – e falavam das suas experiências, dramatizando-as, tornando-as universais. Em Paris, encontraria na música de Jacques Brel ou Georges Brassens uma atenção à palavra e uma intensidade emocional que recebeu como uma revelação – contou que passava horas a ver vídeos online das suas actuações ao vivo. Porém, em Agosto de 2017, em Portugal, quando fala connosco de I Tell a Fly, não é a nenhum deles que se refere como inspiração. Pensou o álbum como uma narrativa e são de prosadores ou dramaturgos os nomes que cita. Vai mais longe.
Quase no fim da entrevista, para nossa surpresa, dirá que o canto lhe diz pouco. “Adoro Jimi Hendrix e Nina Simone, adoro fado, mas é para Oscar Wilde e Samuel Beckett que olho quando crio. Para mim, o mais importante são peças e poemas, é ter actores em palco. Quando acabar de cantar o que tenho para cantar, terei que seguir em frente”. E quando se dará essa mudança? 10, 15 anos?, arriscamos. “O meu terceiro álbum será provavelmente o último”. No primeiro deu voz ao seu íntimo. Este que agora chega lança o seu olhar sobre o mundo. “No terceiro falarei do que sobra. Acrescentarei o surreal, como no trabalho de Magritte. É isso que ambiciono”. Acto contínuo, falará da sua vontade de apresentar I Tell a Fly como obra dramatúrgica, com actores a interpretar as canções no palco e ele e a banda escondidos no fosso de orquestra. Esse é o futuro imaginado. Futuro surpreendente. Mas agora estamos no presente. Voltemos a ele.
Um espelho sobre a realidade
Benjamin Clementine sabia o que queria exprimir, mas sabia também que não poderia fazê-lo como em At Least For Now. “Concluí que a melhor forma de chegar às pessoas seria escrever uma história. Se escrevesse uma canção sobre este tema, e depois outra, e outra, quando terminasse, tudo pareceria um grande lamento, soaria a mim farto do mundo. Agi, portanto, como um escritor. Olhemos para Oscar Wilde, para Mark Twain e o seu Huckleberry Finn, olhemos para Samuel Beckett e Hemingway. Quando escrevem, dão espaço aos leitores enquanto os conduzem a um sítio diferente, ao lugar que eles mesmos criaram”.
Foi esse espaço e esse lugar que Benjamin Clementine tentou criar em Tell a Fly. “Obriga a que o ouçamos várias vezes até nos apercebamos de tudo o que contém. Depois, poderão levá-lo onde quiserem. Claro que dirão que é um álbum político, mas apenas se as pessoas o quiserem colocar nesse lugar. Da minha parte, tudo bem, mas eu não disse que este era um álbum político”. Apontamos que, de facto, I Tell a Fly é um álbum que descreve, que mostra, que cria alegorias. Mas não aponta o dedo e não oferece julgamento das realidades que ilustra. “Nunca o faria. Estou, antes de mais, a pôr o espelho da realidade perante mim. Mas se está perante mim, estará perante toda a gente”.
Quando da edição de At Least For Now, Benjamin Clementine contava-nos que a sua rotina matinal consistia em acordar e dirigir-se imediatamente ao piano. Descalço como nos concertos, tocava e tocava, imerso no seu universo interior. A rotina alterou-se enquanto compunha I Tell a Fly em Nova Iorque. “Mudou porque estava mais consciente do que no álbum anterior. Mudou porque quis abordar um tema tão importante, gigantesco. Não é a mesma coisa que estar sentado no quarto a falar dos meus problemas”. Ao acordar, dirigia-se à porta do apartamento, não ao piano. “Queria sentir a brisa e caminhar sem destino. Queria olhar as pessoas, ouvir a sirene de um carro, sentir verdadeiramente o que acontece. Queria sintonizar-me com o caos que me rodeava e observar como as pessoas reagiam a cada situação. É por isso”, acrescenta, “que o álbum está repleto de porções de som que aparecem e desaparecem”.
Enquanto passeava pelas ruas de Nova Iorque, aconteciam os atentados na Promenade des Anglais, em Nice, acontecia o ataque terrorista numa discoteca de Orlando. Aconteciam pequenos crimes de ódio no bairro que habitava e de que não ouvíamos falar aqui. E ele, já na pele de alien, “olhava e cheirava”, confirmava algo que já sentia: “Que o alien também pertence aos que o olham como tal. Todos somos bárbaros ao olhar de alguém”.
Compostas as canções do álbum, Benjamin Clementine regressou à sua cidade, Londres, para o gravar nos RAK Studios. Reuniu ao piano a bateria e o baixo, o cravo que adquiriu e que quis utilizar por senti-lo intimamente ligado à história da Europa, e os sintetizadores pelos quais se apaixonou depois de colaborar com os Gorillaz de Damon Albarn em Hallelujah money. Benjamin refere que a própria escolha dos elementos musicais contém em si uma mensagem. “Não estou a fazer isto apenas por mim. Tem que compreender que eu sou julgado pela minha aparência”, ou seja, a de um inglês, nascido em Londres, educado em escolas britânicas, maturado musicalmente entre Paris e a Inglaterra, que é negro e de ascendência ganesa. “Não é suposto que pessoas com o meu aspecto amem música clássica e queiram falar da Europa, percebe? Ainda que eu esteja mais habilitado a falar dela que muitas das que se ‘parecem’ com a Europa, mas que não querem saber deste tipo de questões."
A Europa de que fala Benjamin Clementine é vasta. Expande-se no território e estende-se no tempo. É a de hoje e a romana, estendida ao Médio Oriente e Norte de África. “Se reparar com atenção na capa do álbum, verá que se projecta do meu olho a passagem do tempo. O tempo a avançar, sempre em círculos. Estamos constantemente a viajar, estamos desde sempre a empurrar e a derrubamos pessoas que não consideramos as nossas, que achamos que estão contra nós e que querem tomar o nosso lugar. Isso perturba-nos e deixa-nos inquietos, mas fazemo-lo há séculos”. I Tell a Fly é Benjamin Clementine a dizer “com tristeza, que isso nunca mudará”. É Benjamin a manifestar o seu desejo de que, ainda assim, a mudança seja possível.
O álbum despede-se com um verso entoado como alerta: “Barbarians are coming!”. Recebe como resposta uma exortação: “Dreamers stay strong!”. Os sonhadores estão do nosso lado do muro, os bárbaros avançam rapidamente até ele (ou será ao contrário?). Somos todos os mesmos, bárbaros e sonhadores, do mesmo lado do muro e separados por ele. No fim de tudo, é isso que nos diz Benjamin Clementine.