A "guerra por procuração" da China na crise da Coreia do Norte
O agudizar da crise da Coreia do Norte surge numa altura particularmente má para os EUA e para o mundo. O facto de a China antecipar ganhos nesta crise e de os norte-americanos sentirem a sua liderança global em causa, torna-a ainda mais perigosa.
1. A hábil estratégia chinesa de ataque à liderança mundial foi ensaiada em Davos, na Suíça, durante o Fórum Económico Mundial de 2017. Foi facilitada pela não percepção de muitos sobre o perigoso jogo em curso pela hegemonia global. Aproveitando a consternação da generalidade dos aliados dos EUA — sobretudo dos europeus, mas também asiáticos —, pelas intenções de Donald Trump se afastar da ordem liberal (económica e política) criada no pós-II Guerra Mundial, o Presidente da China, Xi Jinping, mostrou determinação em liderar a globalização económica e comercial. Mais do que isso, procurou também apresentar-se, aos olhos dos aliados tradicionais dos EUA, como um líder responsável e comprometido com a paz e estabilidade internacional, em antítese com o "grande desestabilizador", Donald Trump. A China surgia como sucessor "natural" dos EUA na liderança do mundo do século XXI.
2. Na crise da Coreia do Norte a China continua a desenvolver a estratégia já ensaiada em Davos. A intensificação das tensões internacionais ligadas ao programa nuclear da Coreia do Norte deu-lhe nova oportunidade. Os contínuos disparos de mísseis de teste onde os norte-coreanos procuram mostrar a sua capacidade de atingir o território do Japão e dos EUA — o mais recente sobrevoou o Norte do Japão, numa altura em que os EUA e a Coreia do Sul fazem exercícios militares conjuntos —, levaram, há pouco tempo, a uma escalada verbal. Na altura, Donald Trump ameaçou a Coreia do Norte com “fogo e fúria como o mundo nunca viu”. Kim Jong-un respondeu dizendo estar a preparar um plano para atacar a ilha de Guam, situada no arquipélago das Marianas, no Pacífico. (Um território não incorporado na federação, mas sob jurisdição dos EUA, que é o mais próximo da Península da Coreia, dispondo de uma base naval e de uma base aérea de importância geoestratégica para operações militares na Ásia-Pacífico.) Com a escalada da crise, Xi Jinping tem procurado, de forma astuta, apresentar-se ao mundo como um líder altamente responsável — um "grande estabilizador" —, apelando à calma e ao não uso de uma linguagem e actos agressivos.
3. Nesta altura, a crise da Coreia do Norte é o maior foco de perturbação da paz na Ásia-Pacífico e no mundo. É aquela o risco de uma confrontação militar de envergadura é maior, independentemente de quem sejam os responsáveis pelo agudizar das tensões. Um particularismo desta é que envolve dois aliados, com características — e interesses —, à primeira vista, muito diferentes. Desde 1961 que a China e a Coreia do Norte estão ligadas por um Tratado de Ajuda Mútua, Cooperação e Amizade, que prevê garantias de ajuda, incluindo militar, em caso de ataque por outro país ou países. Se esta aliança se pode compreender no contexto da Guerra-Fria — e da disputa ideológica entre o socialismo-comunista e a democracia capitalista liberal —, no mundo actual, e com uma China cada vez mais orientada para a globalização e inserida na economia capitalista internacional, parece obsoleta. A verdade é que o tratado se mantém em vigor, tendo sido renovado em 2001 — contém uma cláusula de renovação automática por períodos de 20 anos —, ou seja, mantém-se válido pelo menos até 2021. Até agora a China nunca manifestou qualquer intenção de o não renovar ou denunciar.
4. Será apenas a inércia, ou uma mera perpetuação de lógicas de alianças do passado sem relevância real no mundo de hoje, que explica a manutenção desta aliança? Mas não será muito curioso que isso ocorra entre um Estado que se diz o maior defensor da paz e estabilidade internacional (a China) e outro que está, constantemente, a fazer testes de mísseis balísticos e capacidades nucleares com uma retórica militarista (Coreia do Norte)? Será que a China não tem meios de controlo efectivo sobre o seu aliado júnior, o qual actuará à sua margem como diz oficialmente o governo chinês? Ou será que estamos perante duas facetas da mesma estratégia chinesa de afirmação de poder na Ásia-Pacífico (e no mundo), estando a Coreia do Norte a ser usada (ou a China a tentar tirar proveito), numa conveniente "guerra por procuração", replicando uma estratégia que era usual durante a Guerra-Fria? Olhemos um pouco melhor para a questão da Coreia e a sua evolução ao longo das últimas décadas.
5. A questão da Coreia tem uma longa história que data dos primórdios da Guerra-Fria. Culminou na guerra da Coreia (1950-1953), e na divisão da península ao longo do paralelo 38, em dois Estados, nos termos do armistício de 1953 (nunca foi concluído um tratado formal de paz entre as partes beligerantes, tendo o resultado militar sido fundamentalmente inconclusivo). O dado novo é a capacidade nuclear da Coreia do Norte, e é obviamente um dado militar, político, estratégico muito importante, que altera os contornos da questão. Mas, como adquiriu a Coreia do Norte, um país onde a vida não é nada invejável — e falta quase tudo —, essa tecnologia nuclear para fins militares? Pelos factos que vão sendo conhecidos, o programa nuclear / balístico é fundamentalmente “made in China” — o seu maior aliado e que lhe tem assegurado a sobrevivência económica e política —, com ajudas adicionais do Paquistão e Irão.
6. A diplomacia dos EUA face ao programa nuclear da Coreia do Norte tem sido um acumular de falhanços desde os anos 1990. Primeiro foi o falhanço de Bill Clinton. No acordo de 1994, a Coreia do Norte comprometeu-se a congelar toda a actividade nos seus reactores nucleares, a permitir inspecções internacionais e a desmantelar as instalações nucleares existentes. No entanto, os norte-coreanos violaram o acordo a partir de finais dos anos 1990, com enriquecimento de urânio num laboratório secreto. Essa violação, que já era conhecida por George W. Bush no seu primeiro mandato, não levou qualquer reacção enérgica dos EUA. Mas terá sido aí o momento crítico para parar o programa nuclear norte-coreana, ou por esforços diplomáticos, ou por um eventual ataque militar preventivo. Barack Obama — e a sua Secretária de Estado Hillary Clinton — acentuaram o falhanço nesta questão. A política de “paciência estratégica” apenas permitiu ao regime Kim Jong-un prosseguir com o seu programa nuclear. Na prática, não teve que enfrentar quaisquer consequências sérias.
7. Com este historial de falhanços diplomáticos, e com Donald Trump no poder nos EUA, a China viu uma oportunidade estratégica para aumentar a sua afirmação internacional. Pretende afastar, o mais possível, os EUA da Ásia-Pacífico, substituindo a pax americana por uma pax sinica. É, também, uma vingança contra os EUA, em especial, contra Donald Trump. Este chegou ao poder apontando o dedo às práticas comerciais chinesas falando em rever a situação internacional de Taiwan (a Formosa), algo que espicaçou o orgulho nacionalista chinês — para o governo de Pequim é apenas uma “província rebelde”, mas a questão data da chegada de Mao Tsé-Tung ao poder, em finais dos anos 1940. Embora possa perder também, em termos económicos e comerciais, a China tem previsíveis ganhos geopolíticos numa "guerra por procuração" entre a Coreia do Norte e os EUA e seus aliados (exceptuando, claro, num catastrófico cenário de confrontação nuclear, pela vizinhança do território coreano), devido ao potencial desgastador para estes últimos — que só têm más opções como veremos. Faz o papel de potência responsável empenhada na paz e estabilidade internacional. Ao mesmo tempo, deixa o papel de agitador e provocador para a Coreia do Norte, que não quer desempenhar porque lhe danificaria a imagem, mas lhe é frequentemente conveniente em termos geopolíticos. (Isto não significa que a Coreia do Norte seja um transmissor automático da vontade chinesa, e não tenha, por vezes também, actuações autónomas agressivas face aos vizinhos que irritam a própria China.)
8. Para além de manter uma imagem internacional de condenação dos testes nucleares e balísticos da Coreia do Norte, incluindo no Conselho de Segurança das Nações Unidas, a China pouco faz de substantivo para travar o seu aliado. Como já notado, espera ver o seu poder reforçado com o desgaste político e/ou militar que o conflito provocará nos EUA. Face aos avanços do programa nuclear norte-coreano, para os norte-americanos qualquer opção é má nesta altura. Se não fizerem nada que faça recuar a Coreia do Norte, vão causar apreensão nos seus aliados na Ásia-Pacífico e dar um sinal de fraqueza. Veja-se o caso do recente disparo de um míssil sobre o Japão e o sentimento de insegurança que causou. Alguns países asiáticos poderão ser tentados a uma acomodação, ou subordinação ao interesse da China, afastando-se dos EUA. Por outro lado, se tomarem a iniciativa de um ataque militar, mesmo que selectivo, tentando eliminar o programa nuclear da Coreia do Norte — objectivo de sucesso duvidoso e com possíveis consequências políticas e humanas catastróficas —, os chineses sairão provavelmente a ganhar. Poderão sempre dizer que estavam a mediar nos bastidores uma solução diplomática pacífica, lançando, ainda mais, sobre Donald Trump e os norte-americanos o ónus de uma agressiva política militarista e imperialista.
9. Mas os EUA têm também que se culpar das suas próprias opções políticas. Primeiro foram os falhanços diplomáticos das últimas duas décadas, de Bill Clinton, George W. Bush e Barack Obama. Depois, a eleição de Donald Trump, que, para além de outros problemas, é um presidente errático. Pode ter a tentação de gerir crises internacionais graves, como esta, ao sabor sua fraca popularidade e falhanços na política interna. As suas incursões anteriores em questões internacionais deixaram essa sensação. (Uso da GBU-43/B, a mais potente bomba convencional do arsenal militar norte-americano num bombardeamento isolado no Afeganistão; ataque à base aérea de Shayrat na Síria, após uso pelas forças de Bashar al-Assad de armas químicas). Fica a ideia de terem sido actos político-estratégicos inconsequentes, ao sabor da política interna. Assim, o agudizar da crise da Coreia do Norte surge numa altura particularmente má para os EUA e para o mundo. O facto de a China antecipar ganhos nesta crise, peça útil de uma hábil estratégia de luta pela supremacia mundial, e de os norte-americanos sentirem a sua liderança global em causa, torna-a ainda mais perigosa.