Pueblos, conquistadores e gringos: a velha Europa no Novo México

Uma viagem pelos pueblos e missões do Novo México, lugares de intersecção cultural que atraíram artistas e historiadores. O’Keeffe e Martin. Warburg e Kubler. Lugares que revelam como a recuperação da memória perdida leva à invenção da tradição.

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Nesta parte da nossa viagem passámos pelo Novo México, um lugar fundamental para a realização do Destino Manifesto. Em 1848, a Cessão Mexicana entregou os territórios da Alta California e Nuevo Mexico aos Estados Unidos, que assim completaram a ocupação desde Este a Oeste da América do Norte.

É um estado marcado pelo colonialismo, pela aculturação dos nativos, pela conquista espanhola e pela ocupação americana. Vamos ver como o Novo México, criado em 1912, construiu a sua identidade cultural com réplicas de elementos de todas estas culturas.

Território disputado

Passámos pelos campos de lava de El Malpais National Monument, uma paisagem que Cormac McCarthy descreve em Meridiano de Sangue (1985) como um mar de “vidro negro” que corta os cascos dos cavalos. O romance explora as tensões que existiam na década de 1840 no Território do Novo México, cuja soberania era disputada entre três culturas — os povos nativos, os Mexicanos e os colonos Americanos. McCarthy descreve com minúcia as atrocidades cometidas por um bando de mercenários gringos contratados pelo governador Mexicano do estado de Chihuahua para dizimar Apaches.

Esta paisagem de lava remete-nos para um lugar e tempo primordiais, em que o planeta estava coberto por oceanos de magma. É aqui que uma das personagens, o Juiz Holden, procura enxofre para, com salitre e carvão, fabricar pólvora. McCarthy alude ao modo como a tecnologia dá o poder para conquistar e subjugar. Para ele, o ser humano é “uma criatura que consegue fazer qualquer coisa. Fazer uma máquina. E a máquina para fazer outra máquina. Um mal que consegue propagar-se mil anos.”

No final da guerra Mexicano-Americana, em 1849, o tratado de Guadalupe Hidalgo estabeleceu as novas fronteiras dos Estados Unidos. O México perdeu os seus territórios do Nuevo Mexico e Alta California, cuja subdivisão deu lugar aos estados que visitámos nesta viagem — Utah, Nevada, Califórnia, Arizona, Novo México, onde as tensões entre as três culturas se mantêm até hoje. 

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Aby Warburg, historiador da cultura austríaco, também escreveu sobre os efeitos da “civilização da era mecânica” neste território. Em 1895, fez uma viagem pelo Sudoeste para visitar os pueblos das tribos Hopi e Zuni. Pueblos era a palavra usada pelos conquistadores e missionários espanhóis para distinguir as tribos sedentárias das nómadas. Warburg estava interessado no modo como “mitos e símbolos procuram estabelecer ligações espirituais entre o ser humano e a natureza”, especialmente na iconografia e rituais ligados a relâmpagos e serpentes. Para Warburg, a modernidade “com a sua serpente de cobre, inventada por Edison, removeu o relâmpago da natureza” e com isso abandonou o isolamento necessário à contemplação. 

Tal como Warburg, vimos vários tipos de pueblos nesta viagem pela orla da cratera de Valles Caldera — os ancestrais, agora vazios, escavados nas rochas de desfiladeiros, como em Frijoles Canyon; e os isolados no topo de uma mesa, como Acoma.

Chegamos a Acoma Pueblo, habitado há centenas de anos no topo de uma mesa com cem metros de altura. Acoma é uma povoação museu cujo acesso é reservado a visitas guiadas. As casas tradicionais não têm água canalizada, e a maior parte das pessoas escolhe viver nas planícies em Acomita, perto da autoestrada.

As paredes de pedra e janelas de mica de Acoma Pueblo, que brilham sob a luz do sol, atraíram os primeiros conquistadores e missionários espanhóis que procuravam míticas cidades de ouro. O impacto dos missionários é evidente na arquitectura da missão franciscana de San Esteban del Rey, fundada em 1629. Fotografada por Ansel Adams na década de 1930, transformou-se num ícone da arquitectura religiosa do Novo México.

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Missão franciscana de San Esteban del Rey, fundada em 1629. Fotografada por Ansel Adams na década de 1930, transformou-se num ícone da arquitectura religiosa do Novo México

No topo da mesa, vemos à distância a Mesa Encantada. É nesta direcção que seguimos pela Kaatsiima Drive a caminho de Jemez.

Acompanhámos o Rio Grande para Norte, chegamos a Frijoles Canyon, um desfiladeiro gradualmente escavado pelas águas que descem da cratera Valles Caldera. Entre pinheiros e cactos floridos, as paredes do desfiladeiro refletem uma luz dourada. Vêem-se pequenos buracos que à primeira vista parecem ser naturais, mas mais perto percebemos serem espaços escavados na rocha, decorados com pinturas, acessíveis por escadas, onde há centenas de anos viviam povos ancestrais.

McCarthy descreve a passagem do bando de mercenários gringos por um destes vales: “o povo que viveu aqui chamava-se Anasazi. Os antigos. Eles abandonaram estes lugares, dizimados pela seca ou doença.”

O arqueólogo Adolph Bandelier redescobriu este lugar em 1880 e encontrou os vestígios desses povos desaparecidos. Podemos imaginá-lo como o Juiz Holden de McCarthy, a caminhar por “velhos espaços ainda manchados com fumo, sílex e cerâmica partida entre as cinzas”. A vaguear por “kivas arruinadas, apanhando pequenos artefactos que colocava sobre um muro e desenhava no seu caderno até ao escurecer”.

Passamos por uma kiva — um espaço sagrado comunal — de planta circular, com um banco a toda a volta... podemos imaginar uma comunidade reunida a olhar o céu.

Agora este lugar inabitado mas repleto de memórias é o Bandelier National Monument. Depois de desenhar os artefactos encontrados, o Juiz atirou-os ao fogo. Quando lhe perguntaram o que iria fazer com os desenhos, respondeu “que a sua intenção era apagá-los da memória humana”.

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Frijoles Canyon, Bandelier National Monument, Novo México

A invenção da tradição

Quando se recuperam memórias desaparecidas, estas são muitas vezes reinventadas. Em 1908, Edgar Lee Hewett, discípulo de Bandelier, encontrou fragmentos de cerâmica negra em Frijoles Canyon. Interessado em produzir réplicas desses fragmentos contactou Maria Martinez, oleira do pueblo San Ildefonso, que depois de muitas experiências conseguiu reinventar o processo de fabrico dessas peças. O trabalho de Martinez foi exposto no New Mexico Museum of Art em 1920 e tornou-se paradigmático do modernismo regionalista de Santa Fe. As suas peças com motivos geométricos em negro-sobre-negro lembram os Abstract Paintings que Ad Reinhardt fez na década de 1960.

Maria Martinez, normalmente chamada apenas pelo seu nome próprio, tornou-se um emblema da América do Oeste. O seu pueblo, San Ildefonso, é um lugar de peregrinação.

Passámos pela Black Mesa e chegámos a San Ildefonso. Era domingo e o pueblo parecia deserto. A única pessoa que encontrámos disse-nos que ia haver uma “dança, podem assistir desde que não fiquem no meio da praça nem tirem fotografias.” Quando chegámos ao grande terreiro com a kiva, algumas pessoas esperavam sentadas à frente das suas casas.

Esperámos, debaixo de uma árvore. Lembrámo-nos que Warburg também visitou este pueblo em 1896, para ver a dança do antílope. Passado algum tempo, começaram a formar-se duas filas paralelas com mulheres de todas as idades — com roupas coloridas e cocares (coroas de penas) — que cantavam e davam pequenos passos ao ritmo do tambor. A cerimónia durou mais ou menos meia hora, depois disso as pessoas dispersaram.

Acompanhámos o Rio Chama até Abiquiu. Em  1940, Georgia O’Keeffe construiu aqui uma casa sobre uma antiga ruína de paredes de adobe. Um espaço modernista que lembra a arquitectura do mexicano Luis Barragán, com pátios inundados de sol, com zimbros que parecem gravuras japonesas.

Motivo de Georgia O’Keeffe, Colina em Ghost Ranch, Abiquiu, Novo México
Casa de Georgia O’Keeffe, Abiquiu, Novo México
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Motivo de Georgia O’Keeffe, Colina em Ghost Ranch, Abiquiu, Novo México

A caminho de Ghost Ranch vemos o Cerro Pedernal com o seu perfil peculiar, que O’Keeffe pintou múltiplas vezes e sobre o qual disse “é a minha montanha privada. É minha. Deus disse-me que se a pintasse muitas vezes, podia ficar com ela”. Esta paisagem faz parte do Painted Desert, uma área que O’Keeffe explorava continuamente no seu Ford A, transformado para servir de atelier ambulante.

Nas suas primeiras visitas ao Ghost Ranch, no final da década de 1920, O’Keeffe encontrou ossos de animais espalhados na paisagem, o resultado de uma seca que afectou a área. Passou a coleccioná-los por causa das suas formas fluídas e acabaram por tornar-se temas recorrentes das suas pinturas.

Na altura, Ghost Ranch era um dude ranch, um rancho turístico onde estrelas de cinema, como Cary Grant e John Wayne, experimentavam num luxo austero as vidas dos cowboys do Oeste. Este fenómeno, assim como os westerns, fazia parte de uma onda de nostalgia que emergiu nos anos 1930. Hoje, estes lugares estão representados em Westworld (2016), a série de televisão de Christopher Nolan, que retrata um parque temático futurista, com clientes que pagam fortunas para regressar ao velho Oeste, a um tempo colonial sem lei, para encenar as suas fantasias.

Foi no Novo México que O’Keeffe reinventou a sua imagem, através das fotografias que Ansel Adams lhe tirava — usando vestidos austeros japoneses e chapéus de vaquero, rodeada de crânios de animais. O Museu de Brooklyn organizou recentemente uma exposição que mostra os adereços desta reinvenção.

Georgia O’Keeffe e Maria Martinez nasceram em 1887. O trabalho de ambas tornou-se uma parte importante da iconografia do Oeste, são construções com autenticidade emprestada pelos símbolos das culturas que habitavam aquele território.

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Vista do Cerro Pedernal, Ghost Ranch, Abiquiu, Novo México

A colónia de Taos

Taos foi um lugar de peregrinação e encontro de artistas. Uma das grandes impulsionadoras desta cultura artística foi Mabel Dodge Luhan, mecenas célebre pelos seus salons em Florença, Nova Iorque e por fim em Taos — depois de casar com Tony Lujan, nativo desse pueblo. Dodge Luhan atraiu inúmeras figuras durante a década de 1920, como O’Keeffe, Willa Cather, Carl Jung e D.H. Lawrence. Taos, ou Mabeltown como muitos lhe chamavam, era para Dodge Luhan o lugar onde “cientistas, artistas e estadistas” iam “descansar e recuperar a sua energia.”

D. H. Lawrence escreveu A Serpente Emplumada (1926) — uma narrativa que descreve um culto pagão, tradicionalista e anti-capitalista no México — em Taos, sob um “grande pinheiro” como “um anjo da guarda”. O’Keeffe pintou uma perspectiva incomum dessa árvore sob as estrelas, Lawrence Tree (1929).

A influência do salon de Dodge Luhan entrou em declínio com a Grande Depressão e desvaneceu-se gradualmente. Depois da sua morte na década de 1960, Dennis Hopper comprou a sua casa de adobe Los Gallos, e baptizou-a Mud Palace. Foi durante a rodagem de Easy Rider (1969) que Hopper ficou fascinado com Taos, e decidiu estabelecer aí um centro independente de produção cinematográfica, semelhante ao que Robert Redford faria dez anos mais tarde em Sundance. Pelo Mud Palace passaram inúmeras figuras da contracultura dos anos 1960, como Bob Dylan, Joni Mitchell e Nicholas Ray.

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Rio Pueblo de Taos e vista de Pueblo Peak, Taos Pueblo, Novo México

Fomos a Taos Pueblo, que se situa no sopé de uma montanha e é atravessado por um rio. Tem uma das maiores construções de adobe dos pueblos, com vários pisos e coberturas planas acessíveis.

Tal como em Acoma, os seus habitantes vivem principalmente em casas modernas na proximidade, mas usam o pueblo para festas e cerimónias religiosas. Ali encontrámos várias kivas. Percebe-se a sua forma cilíndrica semi-enterrada, e também se vê que estão abertas no topo, delas saem escadas apontadas ao céu.

Esta forma circular lembra a sala de Agnes Martin no Harwood Museum of Art, em Taos. Aí está exposta uma série de sete telas quadradas, em tons de branco, produzidas para aquele espaço. A sala tem uma planta hexagonal, segundo o plano de Martin, e evoca um espaço sagrado.

Martin mudou-se para o Novo México em 1967 depois da morte do seu melhor amigo, Ad Reinhardt. Como os Abstract Paintings de Reinhardt, as obras de Martin requerem atenção. Em 1971, Kasha Linville disse na Artforum que Martin “produziu um trabalho de tal delicadeza e força, dureza e encanto” que requer tempo para se ver e sentir as “sequências de ilusões de texturas que mudam” consoante a distância à obra.

Aquele espaço cria uma experiência transcendente, há uma transferência da forma do espaço sagrado do pueblo para o espaço sagrado do artista. A sala de Martin, tal como a Rothko Chapel em Houston, e os skyspaces de James Turrell partilham a mesma genealogia.

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Skyspace Blue Blood (1988), James Turrell, Center for Contemporary Art, Santa Fe, Novo México

Vamos para Sul até Santa Fe, queremos visitar Blue Blood (1988), um dos primeiros skyspaces de Turrell, no Center for Contemporary Art. É uma estrutura semi enterrada, de planta quadrada, aberta para o céu com um banco corrido no interior. As paredes parecem de adobe e evocam as kivas que vimos ao longo de toda a viagem. A obra está semi-abandonada, e parece uma ruína de um outro tempo ou outra civilização.

Continuamos a encontrar a produção artística que se apropria de formas de arte indígena. Há uma migração de formas entre a tradição nativa, o modernismo americano e a cultura popular.

As missões do Novo México

Passamos por San Francisco de Asis em Ranchos de Taos, a mais célebre das igrejas de adobe, fundadas por missionários espanhóis no século XVII.  Foi pintada por O’Keeffe e fotografada por Ansel Adams e Paul Strand na década de 1930, representações que derivam de um olhar modernista que transformam as suas curvas de adobe nas formas fluídas de uma escultura de Henry Moore.

Estas igrejas foram estudadas na mesma década pelo historiador de arquitectura George Kubler, que as identificou como objectos primordiais que evocam a simplicidade modernista da altura. Em The Religious Architecture of New Mexico (1940) Kubler refere que os contrafortes de Ranchos de Taos “parecem satisfazer necessidades formais mais do que estruturais” usando escassos recursos para criar um notável efeito escultórico.

Missão San Francisco de Asis, Ranchos de Taos, Novo México
Kiva e horno, Taos Pueblo, Novo México
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Missão San Francisco de Asis, Ranchos de Taos, Novo México

Mais tarde, Kubler encontrou em Portugal outras “formas simples, reduzidas à sua nudez” na arquitectura chã do século XVI e XVII, apontando inúmeros paralelismos com a arquitectura moderna. Este tema faz parte do projecto de investigação que tenho desenvolvido nos últimos anos e do qual o historiador de arquitectura Paulo Varela Gomes foi o principal mentor. Foi Varela Gomes que apontou para esta dupla identidade regionalista do modernismo no trabalho de Kubler. Também ele guiou esta viagem pelo Novo México.

Em 1915, o Novo México participou na exposição Panama-California em San Diego. Construíram uma réplica à escala natural de Taos Pueblo, com casas de adobe e uma kiva, para se observar uma exposição etnográfica — um zoo humano — de nativos das tribos Apache, Navajo e Tewa.

O pavilhão do Novo México, desenhado por Isaac Rapp, era uma cópia das igrejas das missões dos pueblos, e foi o objecto fundador do estilo Pueblo Revival, adoptado no início do século como parte da criação da identidade do jovem estado do Novo México.

Há em Santa Fe uma presença forte desta tradição inventada, com muitos edifícios modernos em estilo Pueblo Revival. O mais marcante é o New Mexico Museum of Art, também desenhado por Rapp em 1917. Este é uma versão do pavilhão que fizera em San Diego — uma cópia da cópia.

Santa Fe também é denominada Fanta Se, uma expressão que evoca a fantasia das tradições inventadas para estabelecer a identidade do estado.

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Biblioteca Zimmerman (1938), John Gaw Meem, Universidade do Novo México, Albuquerque, Novo México

Rumamos a Albuquerque para consultar os arquivos de Kubler guardados na biblioteca Zimmerman da Universidade do Novo México. Este edifício simbólico, que é considerado “a alma da universidade”, foi projectado por John Gaw Meem em 1938. A suas salas de leitura evocam a nave da igreja de San Esteban em Acoma Pueblo, e estão decoradas com frescos que representam as três culturas que partilham o estado. Meem participou no projecto de restauro e reconstrução dessa igreja entre 1924 e 1929, com o objectivo recriar o estado “autêntico” da igreja. 

Conduzimos para Sul em direcção às ruínas das missões dos pueblos de Salinas — Quarai, Abó e Gran Quivira — estruturas impressionantes de alvenaria de pedra. Foram abandonadas, em meados do século XVII, poucas décadas depois de construídas, e redescobertas passados dois séculos. Estes vestígios lembram um excerto de Meridiano de Sangue (edição portuguesa Relógio d'Água) em que McCarthy descreve a diferença entre duas culturas que ali se cruzaram, a “que faz um abrigo com juncos e peles junta o seu espírito ao destino de todas as criaturas e irá regressar à terra primordial”, a outra que “constrói em pedra” e com isso “procura alterar a estrutura do universo.”

Na próxima parte da viagem continuamos o nosso caminho pelo Novo México até ao Texas. Iremos visitar White Sands Missile Range, Marfa de Donald Judd e um skyspace de James Turrell em Austin.

Eliana Sousa Santos é investigadora em pós-doutoramento CES, Universidade de Coimbra. Prémio Fernando Távora é uma iniciativa da OASRN, Secção Regional do Norte da Ordem dos Arquitectos em parceria com a Câmara Municipal de Matosinhos e a Casa da Arquitectura

A série Branco até Branco encontra-se em publicação no P2, caderno de domingo do PÚBLICO, e tem o apoio da 

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