Roupas de todas as cores, brinquedos de todos os tipos, divisão de tarefas
A igualdade de género faz parte dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável. Sofia Neves e Luís Dias fazem da igualdade um estilo de vida e é nesse princípio que estão a educar o filho. Terceira de uma série de cinco reportagens sobre famílias com estilos de vida mais sustentáveis.
Não é assunto que confine às aulas, que dá no Instituto Universitário da Maia (ISMAI), ou ao activismo, que exerce através da Associação Plano I. Sofia Neves faz da igualdade de género um estilo de vida. E isso nota-se na sua relação com o marido, Luís Dias, e na forma como ambos educam o filho, Rui, de 11 anos.
A igualdade de género é um dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável definidos pela Organização das Nações Unidas em 2015. Da agenda global 2030 fazem parte metas como “acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas”, contribuir para o seu “empoderamento”; “reconhecer e valorizar o trabalho doméstico”.
“Para mim, o desafio maior, no que diz respeito à igualdade de género, é a educação”, começa por dizer Sofia. “Acredito que se começarmos a educar para a igualdade, para os direitos humanos, para a cidadania, para a paz, daqui a uns anos estaremos com as várias formas de desigualdade menos visíveis.”
A mudança pode começar dentro da casa de cada um. E é no apartamento da família Neves-Dias que estamos.
Nada chama a atenção para este lugar. É um apartamento de classe média situado num dos muitos prédios próximos do centro de Braga. Sentámo-nos em torno da mesa da sala, com as persianas corridas para afastar os raios de Sol, que bate quente. O cão, Emmet, como a personagem da Lego, “pede” para se juntar à conversa. E o filho, Rui, pede para sair. O rapaz prefere enfiar-se no escritório a jogar à distância com um amigo através do computador.
Há uma questão que se impõe de imediato. Como é que se educa uma criança para a igualdade? “Tentando esbater todas as diferenças com que as crianças esbarram no seu percurso de desenvolvimento”, responde Sofia. Tudo conta. A roupa que se lhes veste, os brinquedos que se lhes põe à mão, os interesses que se admite que desenvolvam.
“O Rui teve todos os tipos de brinquedos e vestiu roupas de todas as cores”, deslinda. “Ele tinha um babygro cor-de-rosa. Sempre que lho vestia, havia algumas tensões na família, porque não era suposto um bebé rapaz vestir um babygro daquela cor.” Não deixou de lho vestir por causa disso.
À medida que o filho foi crescendo, Sofia foi notando que havia nele algum desconforto com a paleta de cores do vestuário. Certo dia, já em idade escolar, o rapaz foi confrontado por colegas por usar uma T-shirt cor-de-rosa.
“Eu senti que aquilo lhe estava a causar algum mal-estar. E não o obriguei a voltar a vestir aquela T-shirt.” E ele nunca a escolheu. Não houve drama. “Veste aquilo que ele quer. Se for cor-de-rosa, muito bem. Se não for, muito bem na mesma.”
Teve bonecas, bonecos, carros, camiões, puzzles, uma enorme colecção da Lego e muitos outros brinquedos. Pôde escolhê-los de acordo com os seus interesses, alheio ao que a tradição atribui a meninos ou meninas. Cedo revelou preferência pela arte de encaixar pequenas peças de plástico ou cartão e isso facilitou a vida aos familiares e amigos que lhe queriam oferecer qualquer coisa.
Preconceito em relação aos feminismos
Sofia Neves fez o doutoramento em Psicologia Social na Universidade do Minho com a tese Desconstrução de Discursos de Amor, Poder e Violência em Relações Íntimas: Metodologias Feministas em Psicologia Social Crítica. Além de docente do ISMAI, é investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género, do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.
Interessa-se por exclusão social e violência com base no género, na etnia, na nacionalidade, na orientação sexual, na diversidade funcional e na idade. Trabalha com mulheres vítimas de violência, populações LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, intersexo), comunidades ciganas, pessoas em situação de sem-abrigo. E há uma linha que trespassa tudo aquilo em que ela se envolve: a luta pela igualdade de género.
“Não é possível promover a igualdade de género se não houver condições dignas de sobrevivência”, defende. “Não perdendo de vista esse eixo, tento realmente que outros possam ser trabalhados para que as pessoas de alguma forma se sintam respeitadas nos seus direitos, não apenas por serem mulheres ou homens, mas por serem mulheres e homens que têm determinadas características que as e que os tornam mais vulneráveis. E o feminismo para mim é isso.”
Começou a entusiasmar-se com os feminismos ainda nos seus tempos de estudante da licenciatura em Psicologia da Universidade do Minho. E é como feminista que se assume dentro e fora de casa.
“Há um estigma, um preconceito que deriva sobretudo da ignorância”, considera. “Muitas pessoas não sabem o que é ser feminista. O feminismo é um movimento social em prol da igualdade que assume o sexo feminino como prioritário, mas não ignora que há outras pessoas que são igualmente vulneráveis. As mulheres não são todas iguais e os homens também não são todos iguais.”
Quando descobriu os feminismos, já namorava com Luís. Quando começaram a namorar, ela tinha 15 anos. Casaram-se volvidos dez anos. E já lá vão 15 desde que isso aconteceu (com véu e grinalda como prova uma das fotografias da sala). Agora, conta 41. Ele é um pouco mais velho. Vai nos 44.
Nesta fase da conversa, há outra pergunta que se impõe. Como é que se mantém uma relação desde tão tenra idade durante tantos anos? “Com respeito, companheirismo, motivação para ir superando a dificuldades que vão surgindo”, diz ela. “Crescemos juntos”, corrobora ele. “Todas as etapas que fomos ultrapassando, vivendo. Acho que vamos sendo a muleta um do outro.”
Luís não tem o mesmo contexto profissional. Estudou Solicitadoria no ISMAI. Partindo da formação jurídica, desenvolve a carreira no sector dos seguros. E não foi educado para a igualdade de género em casa dos pais, em Viana do Castelo, como o filho está a ser. Ajustou o seu comportamento quando começou a partilhar a vida com Sofia. “As pessoas têm de assumir, quando pensam de forma errada, que estão a pensar de forma errada e que têm de mudar”, comenta.
Não foi só ele. “Toda a família se reconfigurou”, sublinha Sofia. “Para mim, é impensável que no Natal as mulheres estejam na cozinha e os homens na sala. Isso não é aceitável cá em casa. Os homens, mesmo os mais tradicionais e conservadores, acabam por sentir-se desconfortáveis por não partilhar as tarefas porque percebem que estão a pôr em causa aquilo que é um registo familiar.”
Na divisão de tarefas domésticas, tentam respeitar as preferências um do outro. Sofia detesta passar a ferro, Luís gosta de passar a ferro. Donde, é ele que passa a ferro. Luís detesta lavar as casas-de-banho, Sofia não se importa de as lavar. Logo, é Sofia que lava as casas-de-banho. Cozinhar será a tarefa que dividem de uma forma mais equitativa.
Esperam que Rui aprenda com o exemplo e com as conversas. Participa nas suas tarefas - põe a mesa, limpa a louça, faz a cama. “Desde muito cedo, começamos a falar com ele sobre questões LGBTI, normalização da diferença. Temos tentado que seja uma criança atenta às desigualdades, sejam elas étnicas, sociais. E que esteja presente em alguns momentos que para nós são importantes”, diz Sofia. Ainda há pouco, seguiu na marcha LGBTI.
Neste apartamento, há um livro protagonizado por um menino chamado Rui. Sofia aliou-se a Joana Miranda e ao ilustrador Luís Romano para fazer A Minha Família é a Melhor do Mundo. E a Tua? (Isto é Editora), que apresenta como um convite para repensar a ideia de família e de igualdade.
Dançar ballet? Talvez não
Metemos conversa com Rui, a tentar perceber se absorveu o debate de género que agora domina as reivindicações LGBTI. O que é um homem e o que é uma mulher? “Um homem é uma pessoa masculina e uma mulher uma pessoa feminina. O que os distingue são os órgãos genitais”, retorque. Não afirma, como a mãe, que o género depende da identidade e não de características do corpo, mas recusa os tradicionais papéis de género. Quando se lhe pergunta se há actividades próprias para meninos e actividades próprias para meninas, responde: “Não!”
Passou agora para o 6.º ano. Continua a gostar de encaixar as pequenas peças fabricadas pela Lego, mas também gosta de ler livros e histórias e aventuras, de jogar no computador, de dançar. E nada, nada lhe dá tanta alegria como dançar. Duas vezes por semana tem aulas de hip hop. A professora, que é uma bailarina clássica, já o desafiou a tentar uma aula de ballet. Recusou.
Não acha que o ballet é uma dança de meninas, mas não deixou de comentar com a mãe: “O que é que os meus amigos da escola iriam pensar?!” E os pais acham tudo isto “muito interessante”. O ballet não é a sua dança de eleição. Se fosse, talvez quisesse experimentar, cogita Sofia. “Sempre deixámos que fizesse as escolhas que para ele são mais adequadas, independentemente de ele ser um menino”, analisa. “Sempre tentámos que não se sentisse constrangido pela sua pertença de género. Temos tentado, desde muito cedo, passar-lhe essa ideia de liberdade. Ele sempre teve liberdade para escolher. Ele está constantemente a ultrapassar barreiras. E ultrapassá-las é difícil. Há muita pressão social para a conformidade de género.”
O que a experiência lhes vai mostrando é que uma família, sozinha, não consegue desconstruir todas as ideias feitas que existem sobre o que é ser um menino e sobre o que é ser uma menina. “Ou tem na escola, nos media, na organização social de um modo geral, um respaldo ou muito dificilmente consegue atingir os objectivos a que se propõe”, resume Sofia. E é, também, por isso que lhe parece tão importante levar a luta pela igualdade de género para fora de casa.
A Associação Plano I, a que preside, foi fundada no final de 2015. Queria “encontrar uma resposta que achava que não existia ainda na zona Norte do país e que agregasse diferentes lutas em prol dos direitos humanos”. Desafiou “algumas pessoas de áreas interdisciplinares que estavam envolvidas no activismo, na investigação ou na docência”, como a socióloga Sílvia Gomes. Em vez do género, da idade, da nacionalidade, da etnia, da orientação sexual, valorizar-se-á em cada um aquilo que tem de mais específico, isto é, a sua história, o seu percurso e a sua cultura.
Está a crescer mais depressa do que alguma vez imaginou, a Associação Plano I. Responde pelo Centro Gis, a primeira unidade no Norte do país dedicada às necessidades da população LGBT, que funciona no edifício da antiga câmara de Matosinhos, na Rua Brito Capelo. Responde pelo Gabinete de Apoio a Vítimas de Violência no Namoro, que funciona dentro do ISMAI. E responde pelo UNIgualdade — Programa de Promoção da Igualdade e da Diversidade Social e de Combate à Violência Doméstica e de Género, que forma para a igualdade de género públicos estratégicos.
Vão desenvolvendo outras actividades em parcerias com outras associações. O lado mais visível dessa atitude será a dinamização do Conselho Consultivo para as Questões LGBTI. “Acreditamos no trabalho em rede, procuramos que as nossas acções sejam acções em colaboração”, resume.
Prioridade para a prevenção
Sofia valoriza as várias linhas de acção, mas interessa-se, sobretudo, pela prevenção. “Temos problemas instalados de desigualdade que não podem ficar dependentes de um caminho que vai demorar gerações a fazer, mas para mim a prioridade deve ser a prevenção e a prevenção pela educação, não a prevenção avulsa, desorganizada, que não chega a todo o lado, que está dependente de projectos a prazo”, diz.
Na sua opinião, “estas temáticas são tratadas nas escolas de um modo muito pouco aprofundado”. Não é que não haja ferramentas. Há os Guiões de Educação, Género e Cidadania, encomendados pela Comissão para a Igualdade de Género (CIG). Os professores podem usá-los no pré-escolar, no 1.º, 2.º e 3.º ciclos. Além de enquadramento teórico sobre igualdade, encontram aí exercícios e jogos que, por exemplo, invertem os estereótipos nas profissões e tarefas domésticas.
Em 2012, Comissão Europeia inseriu estes guiões no rol de Boas Práticas em Género e Educação. Em 2015, o Conselho da Europa incluiu-os na compilação Boas Práticas no Combate aos Estereótipos de Género na e Através da Educação. No ano lectivo que agora terminou, a CIG fez uma aposta nas acções de formação para professores. Mas, critica Sofia, continua tudo muito dependente da boa vontade dos professores. Atenção: não diz “professores”, diz “professores e professoras”.
Há, no discurso de Sofia, a constante preocupação de referir mulheres e homens. “A linguagem inclusiva é uma bandeira”, admite. Sabe que há fortes críticos desta opção. Isso não lhe interessa. Tão-pouco lhe interessa se é prático. “Parece-me uma coisa básica numa sociedade que se diz democrática e que é constituída por mulheres e homens. Utilizar o masculino como universal neutro não me faz sentido. Não me sinto representada quando alguém se refere a mim como o Homem”, remata. Não impõe isso. Rui vai tendo essa preocupação quando está perto da mãe. O marido não.