Com o país em seca, os regantes do rio Mira deixam a água fugir para o mar

O perímetro de rega do Mira mantém um sistema de distribuição de água que regista elevadas perdas para o mar, calculadas em dezenas de milhões de litros por dia.

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antonio carrapato

O problema está diagnosticado: segundo o Instituto do Mar e da Atmosfera (IPMA), 16,5% do país encontra-se em seca moderada, 69,6% está em seca severa e 9,2% sofre com seca extrema. Mediante estes dados, o Ministério da Ambiente aprovou um conjunto de medidas preventivas (diminuir a rega nos jardins, encerrar fontes decorativas e proibir enchimento de piscinas em zonas do Alentejo) para reduzir os efeitos da seca. No entanto a decisão governamental não impede que o sistema de rega do Mira continue a desperdiçar, diariamente, milhões de litros de água para o mar, como acontece no lugar de Rogil, em Aljezur. Nos concelhos vizinhos, agricultores e animais penam com a secura.

Vítor Faustino, proprietário de uma unidade de turismo rural, localizada próxima do local da descarga, descreve ao PÚBLICO o que vê e o que ouve: “O país está sob seca severa e extrema. Barragens ao nível mínimo. Mas temos mais uma enxurrada na ribeira que vai do Rogil à praia da Barradinha. O desperdício do Perímetro de Rega do Mira faz-se ouvir bem alto”.

Há um flagrante contraste entre a relativa abundância de água na albufeira de Santa Clara, que abastece cerca de 12 mil hectares de regadio do Mira, e a escassez extrema na albufeira do Monte da Rocha, que assegura o abastecimento público nos concelhos de Ourique, Castro Verde, Almodôvar e parte dos concelhos de Odemira e Mértola. E, no entanto, as duas albufeiras estão distanciadas entre si cerca de 40 quilómetros.

A albufeira de Santa Clara mantém, nesta altura do ano, a sua reserva em cerca de 60% (288 mil metros cúbicos) da capacidade máxima. A albufeira vizinha de Monte da Rocha apresenta um volume de 12 milhões de metros cúbicos, ou seja, cerca de 12% da sua capacidade máxima. E enquanto num caso se desperdiça, no outro pouco mais resta que uma água podre.

Vítor Faustino prossegue: “Não é possível alhearmo-nos do som do desperdício (água a correr) do Perímetro de Rega do Mira. Estamos perante a ausência de vontade política que perpetua a ruinosa gestão da nossa água”.

Em Castro Verde, o presidente da autarquia, Francisco Duarte, disse ao PÚBLICO que o abastecimento de água às populações “está garantido”. O problema é que a qualidade da água que resta na albufeira do Monte da Rocha “obriga a um tratamento exigente” e inevitavelmente oneroso, que vai pesar nas finanças dos municípios que integram (49% do capital) a empresa Águas Públicas do Alentejo, entidade responsável pelo abastecimento de água a 21 concelhos alentejanos.

Para a degradação da qualidade da água da albufeira concorrem vários factores para além da escassez. Numa recente deslocação que o PÚBLICO efectuou ao Monte da Rocha observou a presença de manadas de bovinos e varas de porcos que vão beber na pouca água que resta. E também defecam no mesmo espaço, degradando ainda mais a qualidade da escassa água, que ainda está a ser bombeada para irrigar um exploração de olival a cerca de 10 quilómetros de distância. Informações a que o PÚBLICO teve acesso referem que o proprietário da exploração localizada em Casével está titulado pela Associação de Regantes de Campilhas e Alto Sado para captar 430 mil metros cúbicos a partir da albufeira do Monte da Rocha. Francisco Duarte confirmou a existência da captação, adiantando apenas que “até ao momento o Governo não ordenou a suspensão da rega agrícola”. Não foi possível obter um esclarecimento da direcção da associação de regantes pois os dirigentes estavam “ausentes”.

Também a Associação de Beneficiários do Mira, apesar das várias insistências, não se mostraram disponíveis para dar explicações sobre a água desperdiçada pelo regadio.

Situação dura há vários anos

Em 2008, quando o PÚBLICO já dava conta destas perdas de água para o mar, Manuel Amaro, presidente da Associação de Beneficiários do Mira (ABM), confirmou que nos dois terminais de descarga do perímetro de rega do Mira, em Vila Nova de Milfontes (Odemira) e Rogil (Aljezur), “são desperdiçados, por hora, mais de dois milhões de litros de água, volume que os agricultores da região confirmam”. E ao longo dos quase 800 quilómetros de canais que alimentam os 12 mil hectares do perímetro de rega do rio Mira, as perdas “ascendem a 55% do volume da água bombeada a partir da albufeira de Santa Clara-a-Velha”, garantia o dirigente da ABM.

Decorridos nove anos, o desperdício de água subsiste. O site da ABM revela, na descrição do modelo de rega — por gravidade —, que, “de facto, trata-se de um sistema de distribuição de água com controlo por montante que assenta em elevadas perdas de água.”

Em alternativa, a ABM refere a existência de um projecto que aponta para a constituição de 16 blocos de rega com áreas entre os 500 e os 1000 hectares que seriam irrigados por sistema de pressão, ou seja, a água seria fornecida em condutas fechadas o que impediria o desperdício que continua a registar-se. Da leitura do documento conclui-se que só um bloco, com 920 hectares, foi modernizado e que o investimento nos restantes blocos onde vai ser instalado o novo sistema de rega está “condicionado pelas disponibilidades financeiras”. Desta forma, em pleno período de seca, milhões de litros de água (em 2008 as estimativas apontavam para cerca de 50 milhões por dia) continuam a ser lançados ao mar por não terem sido utilizados na rega.     

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