Na Azambuja, voltámos a um povoado de há cinco mil anos através de uma ceifa de trigo

Em Vila Nova de São Pedro, freguesia do concelho da Azambuja, há um sítio arqueológico esquecido. Há mais de 30 anos que não havia ali qualquer escavação arqueológica. Este ano, voltaram a viajar ao Calcolítico e simulou-se como é que as populações dessa altura colhiam os cereais.

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Pedro Cura (arqueólogo) na ceifa de trigo Mário Lopes Pereira
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Uma sondagem no sítio arqueológico Mário Lopes Pereira

Graciete Seco e Acilda Gomes da Silva chegam e são logo o centro das atenções. Se Graciete Seco, de 74 anos, começa a cumprimentar toda a gente, Acilda Gomes da Silva, de 82 anos, segue-a com um sorriso. É dia de festa e de recordações no povoado Calcolítico de Vila Nova de São Pedro, no concelho da Azambuja, e entre os anfitriões estão estas duas amigas. “Já sou uma peça de museu”, diz animada Graciete Seco. Afinal, as duas participaram em antigas escavações arqueológicas naquele lugar e guardam a memória de dias cheios de vida. Agora, depois de muitas décadas de esquecimento, os trabalhos neste sítio chamado Castro, recomeçaram e por lá estão arqueólogos, alunos de arqueologia, crianças do concelho da Azambuja e habitantes locais muito curiosos.

Este é o culminar de três semanas no terreno do projecto “Vila Nova de São Pedro, de novo – no 3º milénio”. Cerca de 12 alunos de licenciatura e mestrado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e arqueólogos fizeram trabalhos de limpeza para deixar a descoberto estruturas que tinham sido encontradas nas antigas escavações. “Como as escavações foram feitas com uma metodologia que não é a actual, procuramos ver quais os locais para serem reescavados”, explica José Arnaud, presidente da Associação dos Arqueólogos Portugueses (AAP) e um dos coordenadores do projecto com Mariana Diniz, Andrea Martins e César Neves, do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa. “Procurámos também encontrar uma terceira linha de muralhas [há três linhas principais], através de uma parte que nunca tinha sido desmatada.” 

A ocupação do sítio remonta ao final do Neolítico (cerca de 3500 a.C.) e foi habitado no Calcolítico, ou Idade do Cobre, período entre há cerca de 3500 a.C. e 2200 a.C. “Vila Nova de São Pedro foi o primeiro povoado deste tipo a ser identificado e escavado em larga escala no território português”, lê-se no livro Museu Arqueológico do Carmo – Roteiro da Exposição Permanente, da AAP.

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O sítio arqueológico antes da limpeza João Pimenta

Mas é ainda o início do projecto. E um dos impulsos foram as cerca de 1200 peças expostas no Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa, durante as 31 campanhas de escavações, entre 1937 e 1967, dirigidas pelo militar e arqueólogo Afonso do Paço (da AAP) e os seus colaboradores, segundo José Arnaud. “Como essas campanhas foram há muito tempo, pretendemos fazer uma reanálise deste sítio arqueológico, que é muito importante no âmbito da pré-história em Portugal”, diz o arqueólogo. “Por outro lado, procuramos estabelecer uma ponte entre as colecções que temos no museu e o próprio sítio.”

Escavações com população local

Mariana Diniz acrescenta que há perguntas que têm de ser respondidas, como esta: “De que forma é que as muralhas foram construídas?” Além da parte científica, destaca que é preciso preservar o sítio (classificado como Monumento Nacional em 1971), por exemplo limpando-o, para que possa ser visitado. “O sítio é realmente uma celebridade, e tem um impacto não só na freguesia [Vila Nova de São Pedro], mas também em muita gente que já nem está em Portugal e que o visita quando vem. O estado de esquecimento em que estava era motivo de tristeza para uns e de indignação para outros.”

Graciete Seco e Acilda Gomes da Silva voltaram agora ao Castro, mas isso já não é uma prática comum, como foi outrora. Há muito que o Castro tem sido condenado ao mato. E desde 1986, numa escavação do arqueólogo Victor Gonçalves, que não havia trabalhos arqueológicos. “Era uma festa quando vínhamos. Não calhava a todos”, relata com uma voz calma Acilda Gomes da Silva sobre as escavações em que participou em 1951 e 1952.

Tudo começou nos anos 30, quando um agricultor, avô dos proprietários actuais, lavrava o campo e encontrou algumas peças que lhe pareceram importantes. Como tal, mostrou-as à AAP, que pediu a um erudito local, Hipólito Cabaço, para ver o potencial do sítio, conta-nos José Arnaud, segundo a informação dada por um dos proprietários. Logo em 1936, Hipólito Cabaço fez a primeira campanha no sítio. E um ano depois começaram as escavações de Afonso do Paço. Durante um mês, entre as ceifas (de Junho a Julho) e as vindimas (em Setembro) cerca de 30 habitantes locais iam para as escavações.

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Escavações em 1952 lideradas por Afonso do Paço e Maria de Lurdes Artur João Moreira/Câmara Municipal da Azambuja
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De boina, nestas escavações em 1952, está Afonso do Paço João Moreira/Câmara Municipal da Azambuja

“Todos gostavam de vir porque não havia outro trabalho. Isto era uma paródia”, recorda Acilda Gomes da Silva, enquanto observa este dia aberto do recente projecto a toda a gente. José Arnaud, que mostra o sítio a quem chega, explica-nos que esses trabalhos foram subsidiados pelo Instituto de Alta Cultura e pela Direcção Geral dos Monumentos e Edifícios Nacionais (DGEMN), que financiavam as despesas dos arqueólogos, e pelo Comissariado do Desemprego, que assegurava o pagamento dos salários aos trabalhadores locais. A partir de 1943, todas as despesas passaram a ser financiadas pela DGEMN.

Entretanto, Acilda Gomes da Silva pede-nos para a seguirmos até ao recinto no interior da primeira linha de muralha. Mas, antes de entrarmos, pára e apela à sua memória: “Havia umas linhas de ferro onde trabalhavam as vagonetas. Uma trazia terra e outra trazia pedra. Depois havia um cruzamento”, descreve. Graciete Seco também a segue. Também ela participou nas escavações em 1961 e faz questão de dizer que ambas moram em Torre de Penalva, um lugar que pertence a Vila Nova de São Pedro. “Vê-se daqui!”, aponta. E conta que, na altura, Afonso do Paço estava instalado em casa de familiares seus e lhe dizia: “Ó Graciete, tens de ir lá hoje para tirares uma fotografia.”

E foram muitas as fotografias que Afonso do Paço tirou e publicou (embora pouco informativas). E o que se destaca desses trabalhos? “Terem identificado este recinto central muralhado”, considera Mariana Diniz. É designado como “primeira linha de muralhas” e tem uma série de torres à volta do perímetro. Para Afonso do Paço, as habitações estariam no exterior da primeira linha. “Enfim, mas as descrições que faz não são completamente claras.”

E foram descobertos vários silos, ossos de animais (de auroque ou veado), pontas de setas, machados, artefactos de cobre ou placas quadrangulares de cerâmica, que estão no Museu Arqueológico do Carmo. “Em conclusão, a grande abundância e variedade de artefactos e restos de alimentos encontrados nesta fortificação mostram que foi construída e habitada por pequenas comunidades”, refere o livro da AAP.

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Acilda Gomes da Silva (à esquerda) e Graciete Seco (à direita) no recinto do sítio arqueológico Mário Lopes Pereira

Graciete Seco diz que o único objecto que encontrou foi um chifre de boi, que acabou por não ter grande valor arqueológico. Mas nem isso a desiludiu. E arregala os olhos ao dizer que a sua mãe lhe contou que encontraram ali um vaso de cerâmica. Não sabe bem onde, porque não estava lá e isso correu de boca em boca. Já Acilda Gomes da Silva fez algumas descobertas. E tinha uma função bem específica. O seu lugar era a peneirar a terra. “O crivo era uma rede e tinha dois braços compridos. Estava uma pessoa de lá e outra de cá e fazíamos aquele movimento para a terra cair.” E balanceia-se. “Depois escolhíamos tudo o que ficava no crivo. Encontravam-se contas como se fossem de um colar, agulhas em osso, bocadinhos de cobre, muitas setas ou dentes”, conta como se estivesse a fazer um relatório. “Quando se encontrava alguma coisa era uma festa”, diz esbracejando.

Finalmente, depois de poucos metros (mas muitas recordações), entramos no recinto. Acilda Gomes da Silva parece estar em casa e até anda com um passo mais apressado pelo recinto. “Aqui descobriu-se uma tulha com trigo queimado”, desvenda, como se este fosse o seu tesouro.

Uma ceifa calcolítica

O cultivo de cereais era uma das práticas das sociedades calcolíticas, assim como a criação de animais e o cultivo de linho. E também isso ganhou vida no Castro. Sentado em cima de pele de vaca e rodeado de peles de raposa e coelho, o arqueólogo Pedro Cura faz uma foice de zambujeiro, sílex e cera de abelha. “Tentamos reproduzir os processos [da pré-história]”, explica sobre o seu trabalho em arqueologia experimental. “Transformamos as matérias-primas em instrumentos. Ou seja, de instrumentos que encontramos nas escavações recuperamos informação que não conseguimos encontrar no registo arqueológico.”

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O arqueólogo Pedro Cunha Mário Lopes Pereira

À sua volta estão várias crianças. “Os pré-históricos gostavam muito de pintar e faziam tudo desde o início”, diz ao grupo. E com os dedos pinta numa placa de xisto. “Qual é a vantagem da arqueologia experimental? Os objectos podem ser manuseados por todos. Os museus são muito bonitos, mas muito chatos para as crianças”, diz agora ao PÚBLICO.

E a hora da ceifa chega. Mas é preciso ir (de carro) até Maçussa, também no concelho da Azambuja. Para isso, passou-se por Manique do Intendente, onde em tempos Pina Manique, intendente da polícia do Marquês de Pombal, começou a construção de um palácio (que ficou incompleto) e de uma igreja. Chegados ao campo de trigo, há cerca de 50 metros quadrados reservados para uma ceifa que também se terá feito há 5000 anos.

Anda-se pela terra já ceifada sob o sol das 16h da Lezíria do Tejo e Pedro Cura abre um pano com duas foices, uma em que a lâmina é colada com cera de abelha e a outra com resina. Escolhe a de cera de abelha porque corta melhor. E ceifa molhos de trigo que depois ata com baraço. Já treina este gesto há cerca de dois anos, para que seja semelhante ao que terá sido feito no Calcolítico. “O gesto tem de estar automatizado. Não se pode fazer experimentação sem se passar pela experiência. Quem ceifava aqui no Calcolítico sabia bem o que fazia, porque começava a fazê-lo desde criança.”

Este terreno na Maçussa com quatro hectares é do agricultor Adolfo Henriques. “É o trigo barbela, que é bastante antigo”, descreve o agricultor, que também está presente nesta ceifa. “Depois começaram a aparecer os trigos modificados e mais produtivos”, explica, acrescentando, no entanto, que este é mais ecológico e nutritivo. Este foi o seu primeiro ano de cultivo do trigo barbela, que praticamente não é semeado. “É um trigo que nos dá pela barba”, brinca. Vê Pedro Cura a ceifar e diz que as pessoas antes usavam dedeiras para se proteger. Agora, é colhido já com uma ceifeira-debulhadora moderna. Este ano vai cultivar mais dez hectares de trigo barbela.

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Foice feita pelo arqueólogo Pedro Cura Mário Lopes Pereira

A seguir à ceifa, Pedro Cura, no âmbito do “Vila Nova de São Pedro, de novo – no 3º milénio”, já tem planos para continuar o estudo das foices do Calcolítico. “Vamos olhar para a colecção de Vila Nova de São Pedro [do Museu do Carmo] e seleccionar os elementos idênticos àquelas pequenas lâminas [de sílex]”, explica o arqueólogo, que salienta que estas foices já foram construídas com base na colecção do museu. As peças do Calcolítico (do Museu do Carmo) e as que são feitas no século XXI serão assim comparadas ao microscópio electrónico na Universidade de Trento, em Itália, para se perceber exactamente para o que serviam. “A grande vantagem nestes sistemas é que cada matéria-prima que as lascas de sílex tocam, deixam um traço diferente: se tocaram na carne é um traço específico, se trabalharam no osso é outro.”

Um itinerário por três sítios

Já há ideias para o projecto depois destas três semanas. “Vamos trabalhar com colegas de outras áreas, desde a prospecção geofísica até perfurações geológicas”, indica Mariana Diniz, que acrescenta que querem usar os meios digitais para transmitir a informação, como reconstituições a três dimensões das peças do Museu do Carmo. “Um dos objectivos deste projecto é também canalizar parte dos 250 mil visitantes do museu até cá.” José Arnaud aponta também outro passo a seguir: “Vai ter de se estudar a forma de proteger o sítio arqueológico, sobretudo nas zonas mais sensíveis, e por outro lado, elaborar um plano de reordenamento.”

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Aluno da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa no sítio arqueológico Mário Lopes Pereira

Um itinerário pelas três freguesias (da União de Freguesias Manique do Intendente, Vila Nova de São Pedro e Maçussa), que têm cerca de 2500 habitantes, também será algo a concretizar, para José Arnaud. Como tal, o poder local passou pelo sítio arqueológico. O presidente da Câmara Municipal da Azambuja, Luís Sousa, destacou o protocolo que a câmara fez com os proprietários, em que irá pagar uma renda mensal, para que o sítio possa ser estudado. Diz também que agora em Agosto se vai “sentar à mesa” com os responsáveis do projecto arqueológico, para se fazer um balanço do que está feito e se pensar no futuro. “Há 20 anos que andamos a pensar nisto.”

Entre tantos que apareceram, Marcelina Silva, de 73 anos, e Delfina Silva, de 68, também não quiseram faltar à festa. “Foi uma amiga que me disse há pouco: ‘Já foste ao ‘Castelo?’” E Delfina Silva, que mora ali perto, meteu o caminho às costas e cá está. O Castelo é o Castro para os habitantes locais. “Castros já são os sítios da Idade do Ferro também com muralhas circulares e casas de habitação circulares”, explica Mariana Diniz. “Para Afonso do Paço, nos anos 40, um sítio com muralhas e com o que ele considerava serem casas circulares e com o carácter defensivo acabou por designá-lo Castro.” Mas na carta militar e na gíria continua a ser Castelo. Para Mariana Diniz e os restantes coordenadores, este nome também é mais do seu agrado, refere a sorrir.

“Queremos voltar mesmo ao terceiro milénio a.C. e restaurar essa vivacidade”, sugere ainda a arqueóloga. “O terceiro milénio é um momento de esplendor cultural na bacia do Mediterrâneo. Aqui somos, de alguma forma, uma periferia da bacia do Mediterrâneo.” Graciete Seco e Acilda da Silva Gomes sempre foram contagiadas pela vivacidade de outros tempos. A primeira continuou a ler livros de arqueologia. E a segunda a mostrar o sítio a quem o queria ver. Afinal, como diz de outros tempos: “Foi maravilhoso!” Esperam agora que o venha a ser de novo. 

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