Crianças em perigo: os números que nos interpelam
A violência contra as crianças permanece um fenómeno largamente oculto
Em março de 2016, o Conselho da Europa publicou um documento no qual define cinco prioridades, para o período 2016 a 2021, no campo da proteção dos direitos das crianças, incluindo a prioridade "uma vida livre de violência para todas as crianças". Este documento surge na sequência do programa, iniciado em 2006, "Construindo uma Europa para e com as Crianças", centrado no desenvolvimento de medidas de proteção e de promoção dos direitos das crianças, e de vários outros documentos estratégicos dirigidos a todos os Estados membros. O direito das crianças a serem protegidas contra "qualquer forma de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, incluindo a violência sexual" (artigo 19º da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU) está amplamente consagrado e regulado por múltiplos instrumentos legais (convenções internacionais, constituições nacionais e leis ordinárias) e é objeto de várias recomendações, com destaque para a Organização das Nações Unidas e o Conselho da Europa, e de orientações gerais e de boas práticas. O quadro normativo, que se tem vindo a adensar, estabelece deveres concretos para os Estados que estão obrigados a desenvolver políticas públicas que criem um sistema robusto e efetivo de prevenção e de ação que evitem a exposição das crianças a situações de perigo. Contudo, estudos internacionais documentam que milhões de crianças estão expostas a vários tipos de violência, maioritariamente com origem na família, mas também em outros lugares, como na escola e na comunidade. Em 2006, um estudo da UNICEF estimava que 275 milhões de crianças em todo o mundo eram vítimas de violência em sua casa. O relatório da ONU, de 2013, "European Report on preventing child maltreatment" indica que, todos os anos, 852 crianças com menos de 15 anos morrem prematuramente em consequência de situações de violência a que foram expostas.
Entre nós, as várias alterações à lei de proteção de crianças e jovens em perigo (Lei 147/99, de 1 de setembro, alterada pelas Lei n.º 31/2003, de 22 de Agosto, Lei n.º 142/2015, de 8 de setembro e Lei n.º 23/2017, de 23 de maio) indiciam, por si, que se trata de uma questão na agenda política. Mas, como acontece em muitas áreas, o problema não é da falta de lei, mas sim da sua prática. É, na concretização das políticas, que os números nos interpelam: ao Estado e a todos nós como comunidade. Eis alguns desses números que recentemente vieram a público. Em 2016, tendo como referência o número de crianças com idade inferior a 18 anos, definido pelo Censos de 2011, 3,7 crianças, em cada 100, foram acompanhadas pelas Comissões de Proteção das Crianças e Jovens (CPCJ), num total de 71 016 processos abertos. No mesmo ano, foram comunicadas às CPCJ, 39.194 situações de perigo, e dessas, após a avaliação, 35.950 implicaram a aplicação de uma medida de promoção e proteção. Dominam as situações de negligência, mas os maus tratos físicos e os abusos sexuais ainda têm um peso de cerca de 4,5% e a exposição a comportamentos que possam comprometer o bem-estar e o desenvolvimento da criança tem um peso de 25%. Desde 2007, o número de processos anualmente instaurados tem-se mantido próximo dos 30.000. Nos últimos anos, tem aumentado o número de processos reabertos (em 2016, 8352), o que significa que as medidas anteriormente tomadas não foram eficazes. Em 2015, estavam institucionalizadas 8.600 crianças. Nesse ano, reentraram no sistema de acolhimento, 824 crianças, porque as medidas de apoio junto dos pais e ou de outro familiar não surtiram efeito. Continua a manter-se, entre nós, o claro predomínio da resposta "acolhimento institucional prolongado" (cerca de 62%), transformando-se a institucionalização, na prática, como projeto de vida para a grande maioria das crianças acolhidas, o que levou um especialista, numa conferência, em 2014, a considerar esta situação "uma anomalia sem paralelo na Europa" (Jornal Púbico, 21 de outubro de 2014), sendo também evidenciado em muitos estudos o impacto negativo da institucionalização prolongada para o desenvolvimento social das crianças.
São múltiplas as causas no lastro daqueles números. Mas, duas das causas para as quais várias recomendações vêm alertando são a intervenção tardia e, com frequência, pouco assertiva. Em primeiro lugar, a violência contra as crianças permanece um fenómeno largamente oculto: algumas formas de violência são socialmente aceites, tacitamente toleradas ou nem sequer percecionadas como tal e, quando reconhecidas, não são denuncias por razões de natureza social e ou cultural. Esta ocultação também se verifica por parte de muitos dos profissionais que lidam com as crianças, incluindo os profissionais de instituições a quem a lei confere competências de proteção, caso das escolas e das instituições de saúde, que não reconhecem ou não reportam situações de violência. Em segundo lugar, há ainda um longo caminho a percorrer na articulação institucional, quer entre as instituições de primeira linha (escolas, hospitais) e as CPCJ e entre estas e o sistema judicial, de modo a que não haja redundâncias, informações com lacunas e ou ações desencontradas no tempo. É preciso, por isso, investir em políticas concretas que permitam, por um lado, diminuir a sub-sinalização e, por outro, aumentar a intervenção precoce e a eficácia das medidas de proteção evitando a via sacra de medidas sobre medidas que constitui, em si mesma, um caminho de sofrimento.
A opinião aqui veiculada é da responsabilidade do investigador, não constituindo qualquer posição oficial do Centro de Estudos Sociais
A autora escreve segundo as normas do novo Acordo Ortográfico