Bem-vindos ao continente das almas velhas
“A regra é não haver regras” — mas é com filmes “formatados” que começa a programação competitiva de Locarno: Freedom, sobre uma Europa em crise, e Beach Rats, sobre a adolescência em crise.
“A regra é não haver regras” — avisou Olivier Assayas, presidente do júri do Concurso Internacional, horas antes de subir, na cerimónia oficial de abertura do Festival de Locarno, na noite desta quarta-feira, ao palco da Piazza Grande. Assayas, autor de Carlos ou As Nuvens de Sils Maria, acompanhado pelos seus colegas de júri, Birgit Minichmayr, Jean-Stéphane Bron, Christos Konstantakopoulos e Miguel Gomes, aproveitou para definir Locarno como “um dos festivais mais apaixonantes do mundo, uma ocasião de descobertas que chega quase a ser egoísta”.
Depois, foi a vez de o egípcio Yousry Nasrallah, presidente do júri da competição secundária Cineasti del Presente (reservada a primeiros e segundos filmes), dizer procurar num primeiro filme “um sinal de vida, de amor pelo cinema”; a actriz Sabine Azéma, musa e viúva de Alain Resnais, presidente do júri de curtas Pardi di Domani, declarou querer premiar “não o encorajamento, mas a descoberta”. E Marco Solari, presidente do certame, citou Marlowe e Goethe para definir Locarno como um festival “faustiano”, sempre correndo o risco de fazer um pacto faustiano com o diabo para continuar a ir mais longe, sempre arriscando o desastre, enquanto se busca a salvação.
Tudo isto perante uma Piazza Grande sob um calor sufocante (mesmo que o termómetro “só” marque 30º), “âncora” e “coração” do festival, como disse Carlo Chatrian, director de programação, e “uma das mais belas salas de projecção do mundo”, nas palavras de Noémie Lvovsky, realizadora de Demain et tous les autres jours, filme agendado para a primeira noite de Locarno 2017. Ou, na definição oficial, Locarno70, aniversário redondo marcado em todas as projecções pela exibição, antes de cada filme do programa, de um #movieofmylife, “microfilmes” de um minuto enviados através do site oficial www.movieofmylife.ch sob o tema “O filme da minha vida”, e feitos por cinéfilos e cineastas de todo o mundo.
As palavras dos jurados são outras tantas declarações de intenções que depois têm de se confrontar com a prática dos filmes que se mostram, com o arranque oficial das competições durante esta quinta-feira. E se ainda é cedo para se definir um mote ou fio condutor para Locarno70, a crise de valores que o mundo vive actualmente é capaz de ser um bom princípio. Não é de outra coisa que fala Freedom (Concurso Internacional), segunda longa do alemão Jan Speckenbach, que segue os percursos paralelos de uma mulher que foge ao seu passado e à sua vida confortável e do marido que ela deixou para trás com os dois filhos.
Freedom segue as alíneas todas do caderno de encargos do “filme de tema” ou do “filme de festival”: Philip, que é advogado, foi encarregue da defesa de um rapaz que agrediu um refugiado até o deixar num coma; o percurso de Nora leva-a de Berlim a Viena e Bratislava, encontrando pelo caminho praticamente só imigrantes ou viajantes. Pretexto para falar de uma Europa perdida que, a certa altura, alguém define como “um continente de almas velhas”, onde “todos parecem cansados”. É para fugir a esse cansaço que Nora se faz à estrada, em busca de algo que talvez nem ela saiba bem o que é e que às tantas nos perguntamos se sequer existirá.
É um pouco o mesmo problema do filme, rodado em “tempo real” ao longo de três anos, que tem excelentes interpretações (de Johanna Wokalek e Hans-Jochen Wagner) e uma vontade óbvia de fugir aos lugares-comuns através da elipse e do não-dito (coisas, aliás, muito alemãs). Mas Speckenbach, igualmente montador, nem sempre acerta nas opções do que explica e do que deixa por explicar, e aí se desequilibra fatalmente um filme demasiado sisudo que quer confrontar o espectador com as armadilhas da sociedade moderna sem reparar que está a cair nelas.
É curioso como esse olhar sobre as crises sociais e de valores remete para Beach Rats (Cineasti del Presente), segunda longa da americana Eliza Hittman – que tem qualquer coisa de versão nova-iorquina de Verão Danado, acompanhando os dias de Frankie (Travis Dickinson), um adolescente sem rumo de Brooklyn que acaba de perder o pai, pressionado para “ganhar juízo”: de um lado pelos amigos gandulos da praia, do outro pela mãe preocupada. As dúvidas de Frankie sobre a sua sexualidade, com a atracção pelo prazer homossexual abafada pela necessidade de arranjar uma namorada para ser respeitado pelos amigos, tornam este caldeirão emocional uma panela de pressão explosiva, que Dickinson gere com apreciável naturalidade e Hittman filma à flor da pele.
Tal como Freedom, Beach Rats está demasiado “colado” a uma fórmula — aqui um certo cinema geracional norte-americano sobre as dificuldades da adolescência dos millennials, classe trabalhadora sem futuro — e não tem arte ou tarimba suficiente para se afastar dela por inteiro. Mas compensa-o através da câmara volátil de Hélène Louvart e do modo como ela permite revelar os fogos-de-artifício emocionais de Frankie. É um arranque suave, gradual, para Locarno70.