Era um bocadinho de nada, se faz favor
Para mim, uma das coisas mais difíceis de contar a alguém é o nada. Porque o nada está cheio de contradições. É como o som das cigarras, faz um barulho desgraçado, mas parece que isso aumenta o silêncio.
Deixa ver se sei contar isto. Eu estava na praia, era uma praia pequenina, eu tinha direito a uma cadeira enterrada na areia, por causa do tamanho da minha barriga que já não me deixa estar esticada na toalha, havia uma sombra, as ondas mal se ouviam, porque até o mar estava preguiçoso ao sol, e de repente rebenta uma cantoria de cigarras na vegetação que envolve a praia. Tudo isto a acontecer, num tempo que parece suspenso, e eu não estou a fazer nada, estou sentada na minha cadeirinha-trono só a ver. Nada. E as cigarras atrás de mim a darem forma ao silêncio com tanto barulho.
Para mim, uma das coisas mais difíceis de contar a alguém é o nada. Porque o nada está cheio de contradições. É como o som das cigarras, faz um barulho desgraçado, mas parece que isso aumenta o silêncio. Com o nada é o mesmo. Não estou a fazer nada, não se está a passar nada, parece-me que não estou a pensar em nada e, no entanto, é aí que tudo acontece.
Eu, que gosto tanto de histórias e de palavras, não sei contar, nem descrever o nada como deve ser. Imagino, como desculpa para a minha incapacidade, que o nada se expressa melhor através da música ou da pintura. Não sei. Mas sei que o nada é muito daquilo em que acredito. É como se fosse a minha religião. Cria-me problemas, incompreensões, é uma crença desprezada, mas dá-me alegrias que só eu percebo. Vejo coisas, o nada ilumina intervalos pequeninos que de outra forma não veria.
Deixa ver se consigo explicar isto. Quero fazer uma defesa do nada, numa altura em que ele é tão maltratado. O nada é um bem escasso – só para introduzir duas palavras, bem e escasso, que possam dar alguma credibilidade à minha visão do mundo. Parece que ninguém gosta do nada, que ninguém vê importâncias no nada, que toda a gente tem horror ao nada. Se ninguém o quer, eu não me importo, fico com o nada todo só para mim.
Na verdade, o nada não precisa daquele cenário que descrevi no início. O nada basta-se. Eu só queria torná-lo mais bonito. Mas o nada acontece em muitos sítios. Numa viagem de comboio, acontece muito à janela do comboio, acontece no carro, na estrada que se desenha à nossa frente quando vamos a conduzir. O nada faz tudo acontecer. O nada está cheio de ideias, de coisas novas. Nunca sabemos o que está no nada naquele dia. O nada é uma caixinha de surpresas.
É por gostar tanto do nada que o meu nariz se torce sozinho quando me vêm com focos e produtividade. Em nenhum desses cálculos se mede o nada. O nada não é mensurável. É uma anti-estatística. É como o som das cigarras. Se estivermos constantemente focados, não deixamos espaço livre em nós e à nossa volta para nada. Se só agirmos por objectivos, não deixamos que o imprevisto nos surpreenda e atrapalhe. Não pensar em nada, não fazer nada, esquecermo-nos, abandonarmos o olhar, deixarmos o nosso pensamento pousar à sorte, ao calhas, sobre as coisas, é disso que vive a criatividade. Não é disso que vive a eficácia, mas é disso que vive a criatividade.
Se estivermos sempre atentos, com metas desenhadas a régua e esquadro, se não nos deixarmos errar, no sentido de falhar e de caminhar à deriva, nunca vamos deixar uma ideia nova respirar. Porque ela precisa de espaço para emergir, para se fazer, para nos destabilizar. E é nessa inquietação, que parece vir do nada, que tudo muda. É uma inquietação que parece vir do nada, sim. Mas nada no nada é o que parece. O nada é como o som das cigarras: apesar da barulheira, aumenta o silêncio.