"A câmara é muito mais cansativa do que o governo"
Catarina Vaz Pinto concorre ao terceiro mandato como vereadora da Cultura em Lisboa. Numa cidade cheia de turistas que quer ser global, a cultura é cada vez mais decisiva, defende esta mulher que já esteve no governo, é casada com o secretário-geral da ONU e nunca teve vocação para primeira-dama.
O filho Francisco vai viver para Nova Iorque com António Guterres, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), mas Catarina Vaz Pinto optou por ficar em Portugal e candidatar-se ao terceiro mandato como vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa, com o socialista Fernando Medina a encabeçar a lista.
Na hora de pesar se queria ir viver para Nova Iorque, sede da ONU, não foi difícil decidir que ia continuar a fazer parte de “uma família em movimento”, porque “não faz sentido, num tempo em que a paridade de género é um dos temas centrais, estar a condicionar a vida profissional ao facto de ser mulher do engenheiro António Guterres”. Ser primeira-dama, agora na ONU ou na eventual candidatura do antigo primeiro-ministro à Presidência da República, de que muito se falou, está fora de questão.
Aos 57 anos, Catarina Vaz Pinto faz um balanço de uma carreira dedicada à gestão cultural, mais pessoal, e outro dos últimos anos na Câmara de Lisboa, onde acabou de apresentar a estratégia para a próxima década, um trabalho encomendado ao Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território (Dinâmica-CET), do ISCTE, e feito por uma equipa coordenada pelo economista Pedro Costa. Estratégias para a Cultura da Cidade de Lisboa 2017 é um estudo independente com quase 400 páginas que envolveu artistas, produtores, técnicos e outros agentes culturais para pensar uma Lisboa que mudou muito desde 2009 e que é hoje uma das cidades-piloto da Agenda 21 para a Cultura, o primeiro documento mundial que estabelece compromissos das autarquias para o desenvolvimento cultural, uma iniciativa da rede Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), a ONU das cidades.
Para lá das siglas, o documento das estratégias da Cultura parte de 2009, ano em que Vaz Pinto assumiu funções, e não se coíbe de dizer que a vereação da Cultura continua a ter pouco peso político e que os hábitos culturais regulares da cidade, uma das capitais europeias com um dos maiores rácios habitante/turista, são ainda diminutos.
Hoje Catarina Vaz Pinto já não dança – foi através dela que chegou à Cultura, em 1990 –, mas faz ioga e divide o seu tempo entre as obrigações profissionais e as que lhe traz a vida familiar, que passam por montar uma “residência oficial” em Nova Iorque. No trabalho, diz, tem de se desdobrar: “A câmara é muito diferente da administração central, porque tem, simultaneamente, uma dimensão estratégica e operacional. Somos tudo ao mesmo tempo. É muito mais cansativo do que o Governo.”
Ponderou ir viver para Nova Iorque, quando António Guterres foi nomeado secretário-geral das Nações Unidas? Ponderei, evidentemente, mas para mim o que faz sentido em termos profissionais é ficar cá. A vida de um secretário-geral é muito movimentada, não acrescentaria nada eu estar lá. Para mim a realização profissional é muitíssimo importante. Quem me conhece sabe que sou bastante independente. Nesta fase das nossas vidas, tanto para mim como para ele, esta é a solução que faz sentido.
A carreira foi, então, o que mais pesou na hora de decidir se ia ou se ficava?
Podemos dizer que é a carreira, mas é sobretudo a maneira como nós vivemos já há bastante tempo. Foram dez anos de ACNUR [Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados]… É assim que equacionamos a nossa vida em comum.
Já tem as suas rotinas em Nova Iorque?
Ainda não. Isto é recente. Estou a tentar ir uma vez por mês e neste momento ainda estou com a tarefa de organizar a casa, a residência oficial. Ainda não deu tempo para outras actividades que espero vir a ter.
Em termos familiares é muito diferente António Guterres ser alto-comissário para os refugiados ou secretário-geral das Nações Unidas?
É igual, só que este cargo é mais exigente e Nova Iorque é um bocadinho mais longe. O António sempre teve uma vida internacional e essa é a forma como ele se realiza. Cada um respeita o espaço de trabalho do outro. E isto não é assim tão estranho – há imensas pessoas no circuito internacional que vivem assim. Estamos no século XXI, que é o século das pessoas em movimento e das famílias em movimento. Nós somos uma família em movimento.
O lado institucional do cargo de António Guterres altera muito a vida quotidiana?
Não, porque eu não quis nunca assumir o cargo institucional de ser a mulher do secretário-geral. Quando se falou de, eventualmente, o meu marido vir a ser Presidente da República, eu também sempre disse que não seria a primeira-dama. Eu recuso-me a assumir esses cargos.
Porquê?
Porque acho que tenho uma vida própria, que isso em parte são ficções mediáticas e não faz sentido num tempo em que a paridade de género é um dos temas centrais eu estar a condicionar a minha vida profissional ao facto de ser mulher do engenheiro António Guterres. E isso para ele também é completamente óbvio. Tudo tranquilo.
Agora que pode vir aí um terceiro mandato como vereadora da Cultura, pensa que há alguma mais-valia que possa retirar desse tempo que vai passar em Nova Iorque?
Provavelmente sim. Este terceiro mandato será muito de consolidação. Lisboa é cada vez mais uma cidade global e a partir do que faço aqui posso apostar mais ainda em projectos em curso com Nova Iorque, Paris…
Como?
Contactos que vou fazendo… E também vou tentar, claro, valorizar a cultura portuguesa lá. É uma área em que se conhece muita gente… Isso surge naturalmente. Além disso, para mim Nova Iorque é um espaço para estar em família. O meu filho também vai viver para lá e, por isso, aos fins-de-semana não vamos estar sempre em representação, vamos estar em família, se calhar até mais do que aqui.
Nasceu em Goa e veio muito cedo para Portugal. Veio logo morar para Lisboa?
Não. Até à idade de sair de casa vivi sempre em São João do Estoril.
O que é que vinha fazer a Lisboa?
Não vinha muito a Lisboa… Vinha ao Instituto Alemão. Mas a partir do momento em que comecei a ser mais consciente do que era e a ter noção do que gostava de fazer, quis vir para Lisboa. Vim aos 18 anos, quando entrei para a universidade.
No fundo, era uma menina da Linha…
Exactamente. Vim para a Universidade Católica. Morava na casa de uns tios e, mais tarde, com 25 anos, fui viver sozinha.
Onde é que era essa sua primeira casa?
No Bairro Alto, na Rua Marechal Saldanha.
É advogada de formação. Como é que dá o salto para a gestão cultural? É com a fundação do Fórum Dança, em 1990, ou há uma história para trás?
Desde os 18 anos que fiz parte do atelier coreográfico da Madalena Victorino – foi aí que fiz a minha educação artística. O atelier não se resumia a aulas técnicas, era um espaço de criação. Participava em espectáculos, quando a Madalena trabalhava sobretudo com amadores.
Dançava? Sim, dançava.
E o Direito ficou para trás?
Eu realmente não gostava nada de Direito. Sempre foi um problema vocacional que a certa altura resolvi, porque comecei a trabalhar no Fórum Dança. Ainda no escritório de advocacia fiz a escritura do Fórum Dança. Depois comecei como administradora. Foi um acaso. Coincidiu com a altura em que surgiram os financiamentos para a formação profissional e a Madalena [Victorino] e o António [Pinto Ribeiro] acharam que era importante fazer alguma coisa na associação. E eu comecei a tratar dos financiamentos do Fundo Social Europeu, a montar o curso. Era para ser um part-time, mas acabou por ser full-time durante cinco anos.
Não gostou de exercer, já percebemos. E do curso de Direito gostou ou foi uma escolha forçada pela família?
Foi difícil. Às vezes as pessoas não sabem o que querem, aos 15 ou 17 anos. Era o meu caso. Naquela altura não havia tantas oportunidades de estudo como agora. O meu filho vai fazer um curso que eu gostava de ter feito, Ciência Política na NYU. Eu gostava de ter estudado no sistema anglo-saxónico, que é muito mais aberto. Mas os cursos mais considerados na altura eram os de Medicina e Direito. Eu acabei por optar por Direito. Na Católica havia muitas cadeiras de Economia, História, Relações Internacionais… Nas opcionais essas eram as que eu escolhia, nada que tivesse que ver com Direito.
Os seus irmãos fazem coisas muito diferentes ou há uma tradição de homens e mulheres ligadas à cultura na sua família?
Não, sou só eu. Bom, a minha mãe era professora de Filosofia no liceu e depois, na universidade, foi professora de Filosofia Antiga. No liceu de São João do Estoril ela foi minha professora, dos meus irmãos, dos meus primos… Naquela altura não havia essas proibições [de dar aulas a familiares próximos].
O que é que fazem os seus irmãos?
As minhas irmãs estão todas no ramo da saúde – uma é médica, uma é enfermeira e a outra é dentista. Tenho um irmão que é engenheiro informático e outro que é gestor. A medicina vem do lado do meu pai, embora o meu avô materno também fosse médico.
Como é que passa da gestão cultural para a política? Quando é que sentiu que tinha dado esse salto – quando é convidada a trabalhar como adjunta de Manuel Maria Carrilho, ministro da Cultura no Governo de Guterres?
Nunca pensei ir para a política. O convite para trabalhar com o Manuel Maria Carrilho partiu do seu chefe de gabinete, o José Afonso Furtado. Foi aí que comecei.
Sentiu que esse era um salto definitivo?
Eu não sabia, porque nunca planeei muito a minha carreira. Na altura o Gil Mendo também foi convidado para ir para o IPAE [Instituto Português das Artes do Espectáculo], a Madalena Victorino para o Centro Cultural de Belém [onde viria a criar o Centro de Pedagogia e Animação]… Saímos quase todos do Fórum Dança, que foi uma verdadeira escola.
Na verdade, olhando agora para o meu percurso, chego à conclusão de que andei sempre a fazer a mesma coisa de maneiras diferentes – a viabilizar condições de criação e de produção para os artistas, a credibilizar e a profissionalizar esta área. Foi isso que fiz no Fórum, no Ministério da Cultura, no curso [de Gestão Cultural nas Cidades] do Indeg [Instituto para o Desenvolvimento da Gestão Empresarial], na [consultora] Quaternaire… Esta era uma empresa privada, mas o trabalho de consultoria cultural que faz para as autarquias tem uma dimensão de serviço público bastante grande. Acho que sempre estive a fazer serviço público. E isso é o que difere do Direito – os interesses privados a mim não me dizem muito, mas a causa pública sim.
Foi complicado ser secretária de Estado da Cultura e namorada do primeiro-ministro?
Não chegou a ser. Não coincidiu.
No estudo recentemente apresentado em que se definem estratégias a dez anos para a Cultura na cidade começa por dizer que Lisboa mudou muito desde 2009, altura em que assumiu a vereação. O que é que mudou, essencialmente? Primeiro foi a dimensão da crise, depois vieram todas as transformações a que estamos a assistir – a forma como a globalização interfere no dia-a-dia das pessoas.
Desde 2009 até agora há dois ciclos: um até 2015, marcado pela crise, e outro de 2015 em diante, em que há uma inversão do ciclo, pelo menos na cidade de Lisboa, e em que se torna visível muito do trabalho feito nos anos anteriores. Lisboa é hoje uma cidade muito mais cosmopolita, mais aberta. Há a questão do turismo, do envelhecimento da população, deste gap enorme entre os nativos digitais e os analógicos, que é uma das grandes transformações do nosso tempo. O facto de vivermos num mundo global interfere com a construção das identidades e isso coloca grandes desafios, assim como com a cultura enquanto instrumento de participação cívica…
Este estudo faz um retrato que é quase nacional em muitas áreas e tem uma grande ambição, podia ser um programa de governo… Quando se está numa vereação da Cultura, sente-se que a cultura extravasa o seu papel estrito, convencional?
Se calhar a grande transformação é mesmo essa. A cultura hoje não é só uma dimensão sectorial, interage com todas as áreas de desenvolvimento: com a educação, a inclusão social, a economia… Hoje o desafio que se coloca às políticas públicas a todos os níveis de governação – Estado, cidade, bairro – é passar de uma lógica sectorial de intervenção, que se prende no caso da cultura com o acesso ou a organização de teatros e museus, a uma lógica mais transversal, em que ela aparece ligada às identidades, à regeneração urbana, à economia, à cidadania. Tudo isso são dimensões eminentemente culturais, porque essas grandes transformações do nosso tempo também o são.
Com a descentralização em curso – do Governo para as câmaras, das câmaras para as freguesias – cada vez mais os fenómenos têm uma dimensão de proximidade muito grande. A cultura também é isso.
Há muitas dimensões a serem trabalhadas ao mesmo tempo – vocês falam da cidade e do bairro, mas também falam da dimensão internacional…
Porque tem de ser assim. Um dos projectos que me deu mais gozo e que explica muito bem isso é o de Marvila. Abrimos a biblioteca e também fizemos lá o Muro, o festival de arte urbana, que foi integrado na Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura. Fizemos um concurso que depois permitiu juntar artistas locais, nacionais e ibero-americanos. De repente, ali em Marvila, estavam todas essas dimensões. E com a população muito orgulhosa, porque um dos artistas locais se revelou um talento e porque já havia turistas no bairro. Aqueles muros ficaram maravilhosos.
Hoje, com o paradigma digital e os novos modelos de desenvolvimento, é tudo horizontal, tudo está ligado. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de pensar nas especificidades próprias de um museu, de um teatro ou de um arquivo – a cultura é completamente diversa e muitas vezes as pessoas não têm consciência disso.
Um dos pontos fracos que este documento aponta é o facto de a Cultura continuar a ter um reduzido peso político. Concorda com isso?
Já teve menos e cada vez tem mais. Cada vez é mais perceptível todo o trabalho que temos vindo a fazer. Um trabalho que começou em 2009 e que precisou de tempo para amadurecer projectos, ideias e para sensibilizar as nossas equipas para que se apropriem destes conceitos de desenvolvimento sustentável e de interligação com todos os outros pelouros.
Onde é que se vê esse ganho de relevância política da Cultura?
Em termos orçamentais, por exemplo…
O que é que isso significa?
Tem vindo a subir. A Cultura tem sido uma aposta referida pelo presidente. Hoje em dia todos os meus colegas reconhecem que é uma dimensão essencial na vida da cidade.
Mas há uma diferença entre ser reconhecida e ter peso político…
Esse é um trabalho que ainda tem o seu caminho a fazer, também no país, na sociedade portuguesa. Somos ainda reféns de uma visão que vem dos 48 anos de ditadura. Não nos podemos esquecer que, logo a seguir à Segunda Guerra, muitos dos países da Europa ocidental começavam a fazer grandes investimentos na educação. Há aqui um atraso que temos vindo a recuperar, mas que [ainda existe]. Esta tentativa de fazer com que a cultura esteja presente nas outras áreas da cidade tem tudo que ver com esse trabalho de proximidade que tem nas bibliotecas, por exemplo, espaços muito importantes.
Fala-se no estudo de hábitos culturais regulares muito baixos…
Claro. Mas, mais uma vez, isso é um problema do país, não é um problema [só] da cidade. Há todo um trabalho de educação que é preciso fazer.
Peguemos nessa questão da percepção da cultura para falarmos da eterna “rivalidade” Lisboa-Porto. Desde que Paulo Cunha e Silva, que morreu em 2015, assumiu a vereação da Cultura, instalou-se um pouco a ideia de que, a nível da autarquia, a Cultura no Porto tem hoje mais importância e é mais vibrante do que em Lisboa. É justa esta percepção?
Eu não acho. O que acho é que a realidade do Porto é muito diferente. O que deu muita visibilidade à dimensão cultural da vida no Porto foi o facto de, durante dez anos [com Rui Rio à frente da câmara, entre 2001-2013], não ter acontecido nada.
Está a dizer que o Porto partia de um ponto muito baixo…
Partia. E isso não quer dizer que não tenha havido um grande mérito do Paulo Cunha e Silva e do actual executivo camarário, mas não é comparável. Além disso, em Lisboa, não é só a autarquia que é um agente cultural – temos as fundações, os organismos do Estado…
…mas isso também é verdade para o Porto…
Não compare. Lisboa é a capital do país, tem os principais monumentos… Acho até que é mais o Porto que cria [essa ideia]. Eu não vejo qualquer espécie de rivalidade. Eu não a tenho.
O que está a dizer é que é mais difícil ser visível em Lisboa do que no Porto, é isso?
De certa maneira sim. Também é verdade que, quando cheguei à autarquia, esta era uma área descosida, sem uma visão global. O que temos tentado fazer desde então é criar essa visão cultural para a cidade que não é só da câmara, é também do território. E é por isso que essa questão das parcerias com o Estado e outras entidades é importante. Eu vejo a acção cultural como um ecossistema em que nós somos um dos actores, não somos o actor principal. No Porto não há tantos protagonistas.
Cruzando as perguntas: o estilo Paulo Cunha e Silva e o peso político do pelouro da Cultura não são, no caso, interdependentes?
Eu realmente não penso assim. Isto não é uma crítica ao Paulo Cunha e Silva, mas a pessoalização da função não me interessa absolutamente nada. Apesar de tudo, isto funciona muito bem. Sinto que, em relação ao peso político, tenho ganho um capital de confiança, quer junto dos agentes culturais, quer com os meus próprios colegas. E isso é que me interessa, isso é que me permite depois avançar.
É bom para o Porto passar a ter uma empresa de cultura como acontece em Lisboa há anos, com a EGEAC?
Claro. É muito importante, porque é uma forma de agilização da acção cultural. O Estado central hoje em dia está muito prejudicado pelo facto de as instituições não terem autonomia financeira. O sucesso das políticas faz-se de pessoas, mecanismos e orçamento. É muito importante ter mecanismos ágeis de intervenção e as empresas municipais permitem isso.
Temos uma em Lisboa e agora temos outra no Porto. É esse o caminho?
O que faz sentido é termos empresas municipais para a área cultural, porque são instrumentos de gestão muito mais flexíveis e o sector não se compadece com a burocratização e a complexidade dos procedimentos da administração pública. O anterior Governo criou uma regra que dizia que só podiam sobreviver as que tivessem 50% [ou mais] de receita própria e, das culturais, a única que sobreviveu foi a EGEAC. Agora estão a voltar e eu acho muito bem.
Pegando na capacidade de gerar receita da EGEAC, passemos então ao tema quente que tem que ver com o turismo na cidade. Lisboa tem neste momento um dos maiores rácios residentes/turistas da Europa, tendo registado um aumento de 75% de visitas face a 2009, com os efeitos conhecidos de turistificação e gentrificação. Como é que se trabalha com esta sobrecarga de algumas zonas?
Descentralizando. É o que estamos a tentar fazer através da programação – criar novas centralidades.
Está a falar de Marvila?
Marvila, a Expo… Queremos criar novos centros, mas com suficiente conteúdo para que sejam verdadeiramente atractivos. No Lisboa na Rua, por exemplo, vamos ter um concerto da Orquestra Gulbenkian no Vale do Silêncio, nos Olivais [Carmina Burana]… Mas a parte patrimonial toda é aqui que se concentra. Temos de trabalhar para criar outros focos, outros fluxos, fazer eventos noutros sítios para criar novas dinâmicas.
Com um espaço público tão sobrecarregado e estruturas que estão ainda fragilizadas pela crise, não é altura de olhar para as instituições a longo prazo e repensar essa política de um festival de mês a mês?
Os festivais de mês a mês não são todos da câmara.
São de Junho a Setembro. Se olharmos para o orçamento da EGEAC, vemos uma fatia de 3,4 milhões para as Festas de Lisboa. Não é demasiado?
Para as festas da cidade propriamente ditas há 1,5 milhões, valor totalmente coberto por patrocínios. Nos 3,4 milhões que entram no orçamento da EGEAC estão as Festas de Lisboa, toda a programação do espaço público ao longo do ano e ainda as despesas com pessoal. Este valor corresponde (em 2016) apenas a 15% do orçamento da EGEAC.
Olhando para as receitas próprias da EGEAC há um aumento (dos 9,8 milhões de euros em 2013 para 15,7 milhões em 2016), feito em grande parte com o crescimento de visitantes do Castelo de S. Jorge. Esse aumento tem sido acompanhado (ou desacompanhado) por uma diminuição da comparticipação da autarquia (à excepção de 2016, que cresceu para seis milhões). Isso significa que a câmara tem gasto menos dinheiro em cultura?
Não, a câmara tem investido continuadamente na área da cultura. O valor do contrato-programa para 2017 também subiu, é de dez milhões de euros, porque a EGEAC assumiu a gestão de novos equipamentos. E tem uma receita própria prevista de 16 milhões.
Esses quatro milhões a mais vêm da Direcção Municipal de Cultura (DMC) ou correspondem na prática a um aumento?
Temos de olhar para o orçamento do pelouro da Cultura como um todo que tem vindo a crescer ao longo dos últimos anos. A distribuição é diferenciada – e vai ao encontro das especificidades e necessidades da DMC e da EGEAC –, mas tem vindo a aumentar.
Qual é o orçamento que a câmara tem para gastar em Cultura em 2017?
O valor total do pelouro da Cultura (DMC e EGEAC) para programação e investimento é de cerca de 39 milhões. Este ano, o orçamento da Cultura, incluindo pessoal, corresponde a 6% do orçamento total da câmara, um nível bastante bom. Em Barcelona é mais ou menos a mesma coisa.
Quanto é que aumentou em relação a 2016?
Um pouco mais de três milhões.
Há outra coisa que gostava de destacar em resposta à pergunta se não faz mais sentido investir nos equipamentos [do que nas Festas] é que nestes oito anos nós fizemos um investimento nos museus e monumentos de cerca de oito milhões de euros e nas bibliotecas de oito milhões e tal, o que é bastante significativo.
Mas é suficiente? Ainda se sente a fragilidade das instituições.
Eu aí ainda tenho um problema de recursos humanos por causa das regras que vigoram relativamente às contenções orçamentais do Estado central e autárquico.
Os museus nacionais tiveram uma mudança em termos de obras e investimentos e alteraram muito o seu perfil...
É isso que estamos a fazer agora nos nossos. O que é que temos de museus novos? O Aljube já foi todo criado de novo. No Museu de Lisboa, por exemplo, estamos a fazer uma transformação profunda, mas isso demora imenso tempo. O Museu de Lisboa é polinuclear [com cinco espaços distintos]: tem o Museu de Santo António e o Teatro Romano, que já foram reabilitados e reabertos, vamos reabilitar o Torreão Poente aqui na Praça do Comércio, uma grande obra dos próximos anos, e o Palácio Pimenta está em transformação.
Voltando ao estudo, que diz que os museus da EGEAC ainda sentem pouco o aumento do turismo. São pouco atractivos?
Depende. Há uns que sentem brutalmente…
Estamos a falar só dos museus… Não de monumentos como o castelo ou o Padrão dos Descobrimentos…
Também a atractividade é menor…
O Museu de Lisboa não podia ser uma coisa muito mais atractiva?
Sim, mas vai ser. Aliás, há exposições que já estão a ser. Só que o trabalho do Museu de Lisboa ainda não está feito. Quando aqui chegámos, o programa museológico não era mudado há 30 anos. E depois [ficou por alterar], porque durante cinco anos não conseguimos fazer quase nada.
Por causa da crise?
Não é só a crise, mas a forma de funcionamento da câmara que é muito pesada. De facto, nos museus é óbvio, porque esse trabalho [no Estado central] foi começado a fazer há 20 anos, quando eu era secretária de Estado. Mas os museus da câmara não são grandes museus à excepção do de Lisboa.
Mas não há aí também um espaço a ocupar – o das exposições com dimensão de uma cidade cosmopolita?
Nós ainda não temos espaços com condições técnicas adequadas para receber determinado tipo de exposições. Mas não só o Torreão Poente vai ter todas as condições para o fazer, com dois pisos completamente em open space, como vamos requalificar o Pavilhão Preto [do Palácio Pimenta-Museu de Lisboa]. O MUDE também vai abrir com todos os requisitos.
São justas as críticas dos lisboetas que vivem no centro que dizem que a câmara trabalha mais para quem nos visita do que para quem cá mora?
A câmara tem bastante percepção de que este aumento súbito do turismo levanta problemas para os residentes que têm de ser resolvidos, mas a implementação e a produção de efeitos das políticas públicas são muito mais lentas do que a invasão dos turistas. É uma grande aposta do nosso presidente tratar no próximo mandato da habitação, sobretudo para os residentes.
Mas na verdade o turismo tem sido a alavanca económica da cidade e nós temos de pensar também desse ponto de vista. Claro que gera tensões na cidade e estamos conscientes delas.
Quais são para si os principais problemas que esta pressão turística levanta? Claramente o da habitação. E outros?
O principal é basicamente a habitação – a falta de mistura (a gentrificação) e o facto de os portugueses não conseguirem acompanhar a pressão imobiliária. Mas isso são questões que o executivo tem muito presentes e que sabe que tem de regular.
Esta pressão turística que acentuou a pressão sobre o imobiliário tem levado a que se façam projectos, alguns deles polémicos, nomeadamente na Baixa pombalina. Acha que têm razão os que acusam a autarquia de por vezes desrespeitar planos de salvaguarda para viabilizar essas alavancas económicas ou até para viabilizar obras próprias?
Acho que não. A autarquia tem cumprido as regras e acho que há casos que ainda estão por resolver.
Nós vimos, sempre que há estes projectos, o Património, afecto ao arquitecto Manuel Salgado, com o enfoque todo. O que é que faz a Divisão de Salvaguarda e Património Cultural afecta à Cultura? Não devia estar mais implicada nestes processos de decisão?
Não é muito essa a sua competência, mas é a Divisão de Salvaguarda que espoleta os processos de classificação de imóveis. Depois a questão dos licenciamentos, isso é tudo com o vereador Manuel Salgado. Até agora temos acompanhado minimamente alguns dos problemas e as questões têm-se resolvido de uma forma equilibrada.
Voltando à estratégia, ao bem-estar e às qualidades patrimoniais dessa cidade mais apetecível. O estudo diz que a câmara deve intervir com urgência para garantir que não há uma fuga da cultura para fora da cidade. Há o risco de as estruturas mais informais serem empurradas para fora?
Acho que não. Nós temos trabalhado bastante no apoio não financeiro, que é bastante grande e passa muito pela cedência de espaços.
Mas o que é que quer dizer esta urgência?
Isso tem de perguntar à equipa do Pedro Costa. Eu posso ou não concordar com essas conclusões todas. Sinto que estamos a fazer bastantes coisas para tentar manter as pessoas aqui.
A cidade cosmopolita e multicultural faz parte do discurso de Medina e já vem do documento das Estratégias para a Cultura 2009. Uma das coisas surpreendentes do actual é a meta de aumentar em 50% a participação em redes nacionais e internacionais dos equipamentos da EGEAC e da DMC, o que faz crer que a internacionalização é muito baixa. É assim?
Isso é verdade, mais uma vez associado àquele período de crise. Na verdade, até 2015 eu não tinha dinheiro para viajar sequer. E eu vejo a participação em redes de uma forma colaborativa: ter disponibilidade para viajar e para receber.
O que é que quer dizer não ter dinheiro para viajar?
A situação financeira era muito complicada. Entre ter actividade aqui e viajar a minha prioridade é ter actividade aqui.
A questão das exposições internacionais é claramente uma aposta. Agora no âmbito da Lisboa Capital Ibero-Americana de Cultura vamos ter a colecção da Fundação La Caixa [Setembro] e isso é muito importante, porque é a primeira grande exposição internacional. Também tivemos aquela do Sebastião Salgado, que teve imensa gente.
Quando António Lamas foi afastado do CCB, naquela polémica com o então ministro da Cultura e a CML, abandonou-se o projecto que ele tinha para reorganizar o eixo Belém-Ajuda. Na altura, Medina disse que estava a trabalhar numa proposta alternativa. Passou um ano e meio e praticamente nada se sabe sobre ela. O que é que aconteceu?
A intervenção da câmara não é tanto ao nível da programação, mas mais ao nível do ordenamento territorial, portanto esse processo não está comigo.
Dos sete projectos criados com a taxa do turismo qual é o mais relevante para a Cultura? O remate do Palácio da Ajuda, que vai permitir a exposição permanente das jóias da coroa, o Museu Judaico, ou propunha outros se pudesse?
Não, acho que esses dois são importantes. O Museu Judaico, do ponto de vista simbólico, vai ser muito importante para a identidade da cidade. E o Palácio da Ajuda era um projecto com décadas.
Se lhe dissessem que podia escolher o oitavo, qual seria?
Mais do que criar novos espaços e equipamentos interessa-me sobretudo consolidar o que temos em termos de condições técnicas e de funcionamento, qualificar pessoal e aumentar orçamentos de programação. Dar um salto para a internacionalização a sério, para que Lisboa possa ser de facto um dos centros de circulação de grandes exposições.
Mas entre as capitais europeias Lisboa é uma cidade relativamente pequena e é preciso ver de que grandes exposições estamos a falar. Nós somos uma cidade de 500 mil habitantes e não temos a massa crítica de públicos para poder ter determinado tipo de oferta cultural. Para lá caminhamos, mas não é comparável com Londres ou Paris.
Damos alguns passos e sentimos que estamos numa cidade um pouco mais europeia em termos de cultura, mas, de repente, o seu maior museu, o Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), teve recentemente 80% das suas salas fechadas ao fim-de-semana. Como é que isso acontece numa cidade que ao mesmo tempo se afirma cosmopolita?
O MNAA é gerido pelo Estado [central]…
Claro, mas mostra as fragilidades do tecido museológico. Talvez ao nível da câmara isso também aconteça, mas é menos visível.
Não, isso na câmara é melhor. Apesar de tudo, conseguimos rejuvenescer um pouco os quadros nos últimos anos, resolvemos de outra maneira alguns desses problemas de vigilância que o MNAA tem.
Agora as estruturas na administração central são muito rígidas. Quando eu era secretária de Estado, os grandes institutos tinham autonomia financeira. Há uma questão de mecanismos que condicionam muito a actividade e esse é o maior problema na gestão da cultura.
A consolidação das estruturas que foram objecto de uma reconfiguração nos últimos anos é o desafio para o próximo mandato?
É continuar este processo nos museus e galerias municipais, que tem que ver com as equipas, com as condições técnicas dos espaços. Queremos também uma programação cada vez mais qualificada nos teatros, mais internacional, e trabalhar a questão da descentralização da cidade, das parcerias para levar a cultura aos vários bairros.
O estudo propõe os centros cívicos e culturais de proximidade. Acho que a ideia está correcta e o modelo pode ser diferenciado conforme o território.
Em Marvila pode ser a biblioteca que é pública, mas no Intendente pode ser a Sou [uma associação cultural] que não é. Vejo mais isso como redes culturais de proximidade, com entidades do terreno que possam ser âncoras.
O desafio é a articulação das escalas, ver os vários níveis de implicação territorial que uma actividade tem. O festival de arte urbana em Marvila é local, mas é também totalmente global. Já temos modelos desses, como o Artista na Cidade e agora a Capital Ibero-Americana, que está a funcionar muito bem. Ao projecto dos testemunhos da escravatura aderiram mais de 40 instituições.
Mas esse projecto também veio mostrar que havia instituições que não conheciam o que tinham e outras que não sabiam o que fazer com esses conteúdos.
Mas alguma vez temos de começar. Em termos de activos culturais, na cidade e no país estamos muito longe de ter esgotado a capacidade de revelação de tudo o que temos. Há imenso trabalho a fazer.
O que vejo agora na câmara é que todos os departamentos querem fazer projectos. E voltamos à questão do protagonismo. Isto é uma rede colaborativa e o nosso papel é de facilitador, mas hoje sinto que temos maior capacidade de escolher os parceiros.
É mais fácil neste momento ser vereadora da Cultura? É mais divertido?
Sim, agora já me estou a divertir. Não sei se é politicamente correcto, mas foi sempre uma ambição [gargalhada].
E é mais divertido do que ser secretária de Estado da Cultura?
Não, também foi. Mas, no princípio, aqui foi muito mais difícil. A câmara é muito diferente da administração central, porque tem, simultaneamente, uma dimensão estratégica e operacional. Somos tudo ao mesmo tempo. É muito mais cansativo do que o Governo.
Agora está a ser mais interessante porquê?
Porque estou a conseguir pôr em prática aquilo que é uma visão para a cultura na cidade e o tempo também me deu capacidade para compreender melhor o sistema. Consigo movimentar-me melhor, de uma forma mais eficaz e compensadora para todos, num sistema que é muito complexo, porque é ao mesmo tempo político, organizacional e de contacto com o meio [artístico]. E fico contente com isso.