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O ano em que todos mergulham nas piscinas de David Hockney

Aos 80 anos o mais popular dos pintores contemporâneos é objecto de uma retrospectiva no Pompidou de Paris, depois de a exposição ter passado pela Tate Britain de Londres e antes de, no final do ano, rumar a Nova Iorque. Uma luz vibrante ilumina piscinas na Califórnia e campos no Yorkshire.

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“Há muita gente que pensa que sou um hedonista, mas olhando para trás sempre trabalhei. Trabalho todos os dias e nunca vou a festas”, disse David Hockney ao Guardian KIERAN DOHERTY
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Mr and Mrs Clark and Percy (1971)
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Woldgate woods (2006)
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My parents (1977)

Entrava-se na Tate Britain de Londres em Abril e o ambiente era frenético, magotes de pessoas em frente a quadros de enormes dimensões que reflectiam os bosques verdejantes do Yorkshire. Em Julho, no Centro Georges Pompidou de Paris, o azul incandescente das piscinas da Califórnia, era observado com o mesmo entusiasmo por gente de todo o mundo. E não custa acreditar que em Novembro, no museu de arte Metropolitan de Nova Iorque, acontecerá o mesmo com a mítica paisagem do Grand Canyon.

É a maior retrospectiva de sempre de David Hockney, organizada pelas três instituições. Depois da Tate Britain de Londres, entre Fevereiro e Maio, onde bateu os recordes de venda antecipada de bilhetes, a exposição inaugurou a 21 de Junho no Pompidou, prologando-se até 23 de Outubro. A 27 de Novembro – até Fevereiro de 2018 – estará patente no museu de arte Metropolitan de Nova Iorque. Aos 80 anos o sucesso acompanha-o. No Pompidou diante dos quadros mais sedutores, as pessoas deixam-se envolver pelo candor juvenil das obras do veterano, quase que se acotovelando para garantir a melhor posição. Na Tate uma mãe põe-se de cócaras com duas crianças, explicando-lhes talvez a longa relação do artista com novos formatos electrónicos e a última série de obras criadas a partir de iPad.

O mundo está ávido por mergulhar na obra do artista que reside em Los Angeles e as explicações sucedem-se para tentar explicar o fenómeno. A exposição reflecte uma longa carreira que atravessa seis décadas, através de 160 trabalhos (a retrospectiva do Pompidou tem mais duas secções, mas no geral as exposições de Paris e Londres são análogas), entre pinturas, fotografias, gravuras, instalações vídeo, desenhos e materiais impressos), incluindo os trabalhos mais icónicos (piscinas, duplos retratos ou as paisagens monumentais) e as criações mais recentes

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Quatro dos quadros mais conhecidos da fase californiana: A bigger splash (1966), Peter getting out of Nick’s pool (1966), Portrait of an artist (Pool with two figures) (1972) e Pool and steps (1971)

Alegria e optimismo

De forma simples poder-se-ia dizer que este é o ano Hockney. Mas nos últimos tempos isso tem sucedido. Todos os anos, em Londres, existe uma grande exposição à volta da sua obra. O ano passado a Royal Academy apresentou 82 retratos e dois anos antes as paisagens do Yorkshire estiveram em evidência. Os ingleses não se saturam e desde que Lucian Freud morreu, e antes dele Francis Bacon, o epíteto de maior pintor britânico em actividade nunca mais o abandonou.

O estatuto não é de agora. O filme de Jack Hazan, A Bigger Splash, de 1973, contribuiu para fazer dele uma figura mitológica e principalmente junto do público inglês é visto como alguém que incarna os valores da cultura britânica. Mas de maneira mais global o êxito parece advir da forma como se reinventa com regularidade, arriscando técnicas de criação e afirmando uma arte que se deixa maravilhar pelo mundo numa atitude firmemente positiva. Há no seu labor uma grande versatilidade que acaba por se afirmar na libertação imensa da cor, sendo ao mesmo tempo económico e luxuriante. Como afirmava o curador da exposição do Pompidou, o francês Didier Ottinger, “é preciso recuar a Matisse, ou ao cinema de Jean Renoir, para encontrar o mesmo tipo de alegria e optimismo que exprime a sua arte.”

A personalidade também acaba por cativar. Nas inaugurações da Tate e do Pompidou Hockney afirmou que continua a trabalhar incansavelmente e que está focado no futuro, apesar da quase surdez, de já ter sofrido um derrame e de dizer que ao longo da vida não teve sorte com os assuntos do coração. “Há muita gente que pensa que sou um hedonista, mas olhando para trás sempre trabalhei. Trabalho todos os dias e nunca vou a festas”, disse ao Guardian. Durante os quatro anos que a retrospectiva demorou a ser montada, entre viagens entre Hollywood e a Europa, quem com ele privou encontrou uma pessoa feliz por rever a obra, mas preocupada em não afundar-se na nostalgia. “Espero que as pessoas retirem um pouco de alegria desta retrospectiva”, afirmou, “que desfrutem do mundo como eu desfruto, olhando-o.”

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Christopher Isherwood and Don Bachardy (1968)

Objectivo cumprido. É o tipo de exposição que funciona como bálsamo para estes tempos conflituosos, com uma luz a inundar os campos de Inglaterra, o bronzeado dos corpos, os rebordos das piscinas ou a geometria rigorosa das habitações de Los Angeles.

Mais do que a ordem cronológica, a retrospectiva coloca em evidência as linhas mestras de uma obra rica em temáticas e técnicas. Os anos de estudante – da escola de artes em Bradford, onde nasceu, no seio de uma família operária, até ao Royal College of Art de Londres – e as influências estão em evidência nas primeiras salas. Aí temos as imagens da Inglaterra industrial, que testemunham o realismo social dos primeiros professores, até à assimilação do expressionismo abstracto – patente em We two boys together clinging (1961), onde a temática clara é a homossexualidade, numa altura em que era penalizada pela lei inglesa, com Hockney a assumir a transgressão numa série de pinturas – ou a descoberta de Picasso, a partir da qual entende que um artista não deve limitar-se apenas a um só estilo ou ideia.

Uma das salas, no Pompidou, é dedicada à Califórnia. Foi aí que, em Janeiro de 1964, iria aportar, fugindo do opressivo clima social inglês, sendo seduzido pelo hedonismo e tolerância, pelos espaços abertos, pelo culto do corpo, pelas casas luxuosas com piscinas e pela luz branca. São dessa fase algumas das suas obras mais icónicas, banhadas pela claridade e intensidade do sol, imagens de grande precisão mas que ao mesmo tempo parecem imateriais, jogando com a luz e as cores fortes, malhas de linhas quebradas e curvas enlaçando-se, resultando daí obras sensuais, lascivas, amorosas e carnais.

Em Peter getting out of Nick’s pool (1966), o corpo desnudado do namorado da altura sai da água, com o reflexo do sol a formar padrões geométricos na superfície da piscina, enquanto em A bigger splash (1967), alguém se atira para a água provocando salpicos, numa espécie de ejaculação que rompe com o rigor minimalista da casa ou do trampolim. Em Portrait of an artist (Pool with two figures) (1972), é outra vez o “amor da sua vida”, como se referiu a Peter Schlesinger, à beira da piscina, contemplando a sua distorção aquática, num gesto de catarse, na altura em que a relação já se havia desintegrado.

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Self portrait (1954)

Esta fase tornou-se iconográfica das revoluções sexuais, económicas e estéticas de uma época. Na Califórnia Hockney encontrou a irreverência do lúdico, o gosto pleno dos sentidos, uma existência sem complexos, os corpos bronzeados reflectindo um estilo de vida particular. Os detractores não lhe perdoam isso, criticando o que dizem ser um universo algo superficial que não reflectia os acontecimentos do século XX.

“Faço quadros que pretendem significar algo para o maior número de pessoas”, costuma responder, tendo argumentado provocatoriamente em 1988 que a “ideia de fazer quadros para 25 pessoas do mundo da arte é uma loucura e é ridículo.” Ainda assim não é plausível que tenha uma relação instrumental com o mundo da arte. É, isso sim, alguém muito consciente do meio onde se insere. Isso é perceptível até na sua imagem trabalhada – os cabelos muito louros com os óculos grandes, redondos e grossos, bonés, lenços ao pescoço e padrões riscados ou axadrezados – inspirada no pai, originando um dandismo excêntrico mas familiar, fazendo lembrar também Andy Warhol na forma como construiu uma personagem pública.

O pai – um anti-fumador radical, contra o qual se rebelou, pois tem sempre um cigarro nos dedos – e a mãe são retratados, o que não surpreende porque apenas pinta pessoas de quem se sente próximo. Os famosos duplos retratos de grande formato reflectem essa proximidade: um olhar íntimo e singular sobre a banalidade quotidiana das coisas, pintando amigos da vida social californiana em poses informais (como o escritor Christopher Isherwood e o seu parceiro, Don Bachardy, um dos primeiros casais abertamente gays de Hollywood), porém representados com a seriedade dos retratos mais tradicionais.

Um silêncio quase religioso

Em Mr and Mrs Clark and Percy (1971) são os amigos Celia e Ossie Clark que são retratados e em My parents (1977), o homem mundano de Hollywood volta a ser apenas filho, com as cores vibrantes a darem lugar a tons mais terrenos, sublinhando o olhar doce da mãe e a alheação do pai. No Natal volta sempre a casa e o regresso às raízes no Yorkshire, e às paisagens pintadas ao ar livre, dar-se-ia ao longo dos anos por diversas vezes, alternando com a existência americana.

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Instalação vídeo The four seasons (2008)

Na Califórnia é seduzido pela explosão de cores em séries de pinturas de casas, estradas e canyons e na Inglaterra fascina-o a passagem do tempo e das estações com as suas variações de luz resultando daí obras contemplativas como Woldgate woods (2006).

Mas a passagem do tempo é ainda mais intensa numa das últimas secções com a monumental instalação The four seasons (2008), uma única obra videográfica a encher as paredes da sala, reproduzindo a filmagem das quatro estações nos bosques de Woldgate. No centro da sala o público mergulha com emoção nessa corrente durável, num silêncio quase religioso, como se estivesse a meditar no tempo perdido ou reencontrado, numa obra admirável que constituiu mais uma prova da sua curiosidade por tecnologias modernas de produção e reprodução de imagem.

Ele que foi pioneiro no uso da fotocópia e do fax para desenhar e, a partir de 2007, do Photoshop, mais recentemente tem recorrido ao iPhone e numa escala maior ao iPad. As novas técnicas e suportes sempre o excitaram. Não surpreende que na penúltima sala a tecnologia para iPad e telemóveis seja utilizada para produzir e animar desenhos em movimento, embora o que sempre uniu as diferentes fases do seu percurso, linhas, cores e tempo, continuem lá. Para ele o objecto a representar pode ser o mesmo, mas gosta de poder faze-lo de maneiras diferentes.

Na última sala, dedicada a pinturas recentes, somos outra vez confrontados com profusão de cores, devolvendo-nos a exuberância botânica dos jardins californianos, como se quisesse reafirmar que, apesar da idade, é ainda o vigor e uma simplicidade e variedade plena de sentido e de expressividade que o iluminam. Depois, cá fora, estudantes de arte de óculos redondos, jovens exibindo o último modelo de ténis, casais de idade avançada ou recém-casados com bebés, todos parecem satisfeitos depois de terem mergulhado numa obra que se foi tornando transversal, sendo ao mesmo tempo exigente e comunicativa, expressando melancolia mas acima de tudo o prazer de existir.

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