Trabalhadores ganham se cancro for considerado uma deficiência

"Mesmo quando bem intencionados, os empregadores tendem a despromover estas pessoas, a retirar-lhes tarefas, eventualmente a despedi-las", diz Milena Rouxinol, investigadora na área do Direito do Trabalho. Para proteger os doentes oncológicos, propõe que o cancro seja considerado uma deficiência.

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Um em cada três portugueses vai ter um cancro ao longo da sua vida. E depois de 2050 a realidade torna-se ainda mais cinzenta: metade da população enfrentará a doença. A notícia não é de hoje — e, em jeito de alerta, tem sido posta em cima da mesa repetidas vezes por investigadores. Do outro lado da história, mais animadora, está a percepção de que o cancro será cada vez mais curável. Foi com este cenário em mente que Milena Rouxinol analisou a forma como o mercado de trabalho está a preparar-se para isso. A discriminação existe, diz a investigadora da Universidade Católica, e as empresas não estão preparadas para acolher os sobreviventes de doenças oncológicas. O que fazer? “Ensaiar uma recondução do cancro à deficiência” do ponto de vista jurídico, propõe.

A ideia — apresentada recentemente no “Congresso Internacional Labour 2030 - Rethinking the Future of Work”, onde mais de 150 especialistas debateram o futuro do trabalho — é inspirada no modelo americano e pode ter, à primeira vista, um “efeito assustador”. Mas era uma maneira de conseguir mais “protecção” para estas pessoas, defende a professora e investigadora na área do Direito do Trabalho. Sem estigmatizações.

A proposta que faz neste estudo parte da premissa de que existe um tratamento discriminatório dos doentes com cancro. De que estamos a falar exactamente?
Cheguei a essa conclusão pela leitura de vários estudos sobre cancro. Encontrei, em primeiro lugar, mitos e preconceitos fruto do imaginário das pessoas. Por exemplo, o acharem que o cancro é contagioso. Outra ideia é a de que os doentes oncológicos são pessoas com um contexto psicológico muito complicado, difíceis de integrar, que vão criar mau ambiente, vitimizar-se e complicar a orgânica da empresa. Por outro lado, acham que não vale a pena insistir naquelas pessoas porque elas vão morrer brevemente. Finamente, o facto de perderem, em alguns momentos, aptidão produtiva também é relevante.

Esse preconceito traduz-se em quê?
A verdade é que, mesmo quando bem intencionados, os empregadores tendem a despromover estas pessoas, a retirar-lhes tarefas, eventualmente a despedi-las. Tudo isto constitui discriminação. Mas acresce a probabilidade de tratamentos persecutórios. Há casos reais, como o conhecido Coleman, que nem tem a ver directamente com cancro. Uma senhora, que tinha um filho deficiente e era constantemente alvo de comportamentos quase de gozo e de afastamento por parte do empregador e de colegas, acabou por se demitir. Mas o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que a causa da sua demissão foi este comportamento assediante por parte da entidade empregadora e afirmou ter existido discriminação.

Se o trabalhador não for efectivamente capaz de cumprir as tarefas anteriores o empregador pode tomar essas medidas?
Pode. Mas antes tem o dever de adoptar um conjunto de medidas de adaptação das condições de trabalho para que sejam ajustadas à particularidade destes trabalhadores. Podem ser coisas simples e muitas vezes nem custam dinheiro: trocar funções, ajustar horários, pôr o trabalhador numa sala mais clean se o problema for falta de concentração. Este dever não tem de ser uma coisa assustadora.

Para proteger os doentes oncológicos, propõe que o cancro seja considerado uma deficiência...
Pode parecer estranho, à primeira vista, que esteja a ensaiar uma recondução do cancro à deficiência. À partida são coisas diferentes, mas a verdade é que o Tribunal de Justiça da União Europeia definiu a deficiência de uma forma tão ampla que cabe lá toda a doença que seja incurável ou prolongada. E até mais. Quando digo “considerar o paciente de cancro como portador de deficiência”, significa conceder-lhe a protecção que resulta do ordenamento nacional (em especial se lido à luz do Direito Europeu) para esse trabalhador com deficiência. Se se preferir designá-lo como trabalhador com doença crónica ou duradoura (até por razões de estigma), tudo bem, desde que se saiba que, então, para efeitos de tutela jurídica, ele é equiparado ao portador de deficiência. A linguagem não é determinante, o que releva é o efeito. Seja como for, há ordenamentos, como o americano, em que esta assimilação jurídica do cancro à deficiência é um dado adquirido.

Mas, actualmente, uma pessoa com cancro já é avaliada por uma junta médica que lhe passa um atestado de incapacidade, que pode ser renovado ao fim de algum tempo. Qual é a diferença entre o que existe e o que propõe?
A minha perspectiva assenta num conceito mais alargado de deficiência, o qual se aplica para efeitos de igualdade e não de discriminação. Ou seja, todas as normas que se relacionem com isso (proibição de tratamentos de desfavor, rejeição de contratação, despedimentos directa ou indirectamente baseados no facto de a pessoa ter cancro) têm de pressupor aquele conceito lato, o que significa que estarão abrangidas, potencialmente, pessoas que não estão na posse daquela declaração, ou porque não a pediram ou porque não reúnem os requisitos.

A norma que prevê o dever de a entidade empregadora proceder à adaptação das condições de trabalho à particularidade dos trabalhadores com deficiência, embora não esteja, formalmente, inserida na parte do Código do Trabalho sobre igualdade e não discriminação, deve ler-se como fazendo parte desse acervo normativo. Deve ler-se assim porque o impõe uma directiva europeia e a jurisprudência interpretativa do Tribunal de Justiça. Se o empregador se abstiver da adopção dessas medidas (ou de demonstrar que elas são inúteis ou inexigíveis), não pode, sem incorrer em acto discriminatório, invocar uma pretensa menor produtividade do trabalhador em causa. Esta conclusão só é possível se perspectivarmos o paciente de cancro como portador de deficiência.

Essa recondução que propõe não pode ser, em si só, estigmatizante?
À pessoa não jurista admito que isto choque. Mas não é preciso enfatizar essa assimilação do ponto de vista linguístico, o que é preciso é assegurar a protecção e explicar que ela pode ser mais eficaz, juridicamente, naqueles moldes. Pode haver um efeito assustador mas depois há um segundo momento, de desmistificar. Já ao jurista aquela atitude não é desculpável, porque ele tem de conhecer a amplitude do conceito de deficiência no domínio da igualdade e não discriminação e saber que ele alberga todas as pessoas que são diferentes e não interagem da mesma maneira que a pessoa padrão, estando expostas a discriminação.

Na prática, o que era preciso para que essa recondução fosse feita? Mudar a lei? Deixar essa decisão com as empresas?
Não nego que alguns aspectos da lei devessem ser melhorados. Um deles seria tornar claro que a obrigação de adaptação razoável das condições de trabalho está intimamente ligada à tutela anti-discriminatória. A directiva [europeia] deixa isso claro, mas o Código do Trabalho não, embora o jurista tenha obrigação de fazer essa ponte, porque tem a obrigação de conhecer o Direito da União Europeia e de saber que a lei nacional e as práticas nacionais não o podem violar. Mas, mais do que a nível legislativo, entendo que a mudança mais significativa tem de ocorrer no plano da formação e informação. Já vi decisões judiciais portuguesas a afirmar com clareza que não há na nossa lei norma alguma da qual derive qualquer obrigação para o empregador de ajustar as condições de trabalho a um trabalhador doente. A afirmação correcta seria, precisamente, a oposta.

O que se passa é um profundo desconhecimento não propriamente da lei, mas do alcance da lei. Porque, sendo a lei lacónica, esse alcance só se atinge se se mergulhar nos seus alicerces. E essa referência encontra-se no Direito da União Europeia, ainda muito desconhecido. Esse papel formativo cabe às universidades, aos investigadores, embora o ónus seja também de cada um. Por outro lado, talvez seja importante formar as empresas e os próprios trabalhadores. É preciso dizer que há que tratar de modo especial aqueles trabalhadores e, como já disse, que nem todas as medidas se traduzem em melhoramentos de infraestruturas e afins nem em gastos insuportáveis. Aos trabalhadores é preciso dizer que têm direitos, sobretudo o direito a não serem discriminados, e que a perda do emprego não é uma inevitabilidade em todos os casos.

O essencial, independentemente da qualificação da sua condição, é passar a mensagem de que a lei não ignora o cancro, apesar de não usar essa expressão. Ter cancro é, para alguns efeitos, como ter uma deficiência. Do ponto de vista social e jurídico também.

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