A serra e o mar à venda na praça

Os mercados algarvios são espaços de encontro: entre produtores e fregueses, entre o mundo rural e o mundo urbano, entre um tempo que já passou e aquele que teima em esquecê-lo. Haverá poucos sítios onde a serra esteja mais próxima do mar.

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Vila Real de Santo António

“Deus te alevede, São João te acrescente”

Quando chegamos a Pisa Barro de Cima (Castro Marim), Frederico está atarefado a varrer o forno. A mãe, Nélia Pedro, também não tem mãos a medir. Está a preparar o pão para levar para a feira de artesanato em Vila Real de Santo António. Pão e costas (pãezinhos pequenos e rectangulares que podem levar chouriço, torresmos ou canela e erva doce).

Há dois fornos, um dentro da padaria, outro fora — e é este que está na família há 200 anos. Quer num, quer no outro, só ali entra lenha de esteva. “É a melhor para fazer pão, a mais saborosa.” Coloca-se a lenha, deixa-se arder durante mais de uma hora. Depois recolhe-se, limpa-se tudo, “e mete-se todo branquinho para podermos pôr o pão”.

Na sala ao lado, a televisão mostra uma das provas da Volta a França. Frederico junta os torresmos à massa, faz uma pequena bola e pesa na balança digital: 200 gramas. Depois, faz um rolo espalmado e coloca em cima de uma tábua de madeira comprida. Há uma peneira para quando se acaba o serviço aproveitar a farinha que ficou limpa. A mãe começa agora a fazer as costas de chouriço de porco preto, alentejano (“os torresmos vou buscar a Monchique”). É generosa na quantidade de rodelas.

Pisa Barro fica no barrocal, no meio de amendoeiras, alfarrobeiras, oliveiras. Nélia Pedro nasceu aqui, há 58 anos. Passou uns tempos na Suíça, trabalhando numa fábrica de fazer meias. É difícil imaginar o salto, quando tudo o que há por aqui é silêncio e cheiro a pão.

Se formos ao Mercado Municipal de Vila Real de Santo António, um edifício amplo, com telhado de zinco, ela lá estará a vender flores e frutos secos — “havia muita amêndoa, mas começou a ter pouco valor e as pessoas deixaram de apanhar”, diz. “Eu ainda tenho, mas já não há quem parta.”

Nélia Pedro também não tem tempo para isso. Até final de Agosto, faz pão todas as segundas, terças, quintas e sextas-feiras (no resto do ano é às segundas, quartas e sextas), que vende por encomenda no mercado. Podemos encontrá-la também na feira de artesanato que todas as quintas-feiras se faz na Praça Marquês de Pombal. Assim que monta a banca, às sete da tarde, a fila cresce como nenhuma outra. Há quem venda doces regionais (mesmo ao lado de Nélia), cestos de cana (“são feitos por mim, só para passar o tempo e não estar olhando a televisão e cismando na minha vida”, diz Florinda Custódio), mel, colares e pulseiras...

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Nélia Pedro e o marido, Manuel, cozem pão num forno que está na família há 200 anos

Mas voltemos a Pisa Barro porque são quatro da tarde e o pão ainda não está pronto. Aqui chama-se crescente à massa-mãe. É a esta que no dia seguinte se junta a farinha, água e sal “e um bocadinho poucochinho de fermento de padeiro”. E benze-se: “Deus te alevede, São João te acrescente”. Fica a levedar uma hora, no Verão, duas no Inverno, tapado com uma manta. Depois tende-se, coloca-se nos tabuleiros de madeira, tapado em lençóis brancos e cobertores: “é o tendal”. O pão de um quilo fica a cozer durante 1h20; cabem 40 numa fornada.

Nélia faz uma pequena dobra na bola de massa para lhe fazer a “cabeça”, antes de a colocar na pá de madeira que a levará para o fundo do forno e que o marido, Manuel, segura com firmeza. Todos os gestos estão bem treinados. Fazer pão é tarefa para os ocupar aos três, e “a lenha quem mete são os homens”. Depois de colocado no forno, faz-se uma cruz na porta: “Jesus, que é o santo nome de Jesus, Deus te acrescente no forno, como a graça de Deus no mundo todo. Já a minha avó dizia assim, mas nem todas as pessoas dizem da mesma maneira.”

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Todas as quintas-feiras, durante o Verão, Nélia Pedro vai à feira de artesanato de VRSA

Tavira

A bruxa da Andaluzia

A fila vai-se formando na Laranja do João. A loja fica colada ao Mercado Municipal de Tavira e está forrada a quadros de ardósia a anunciar as múltiplas variedades de sumos naturais. Manga, papaia e morango (copo 2€, garrafa de meio litro 3,20€), abacaxi, uva, toranja e kiwi (1,50€/2,60€), ou simplesmente laranja (copo 1€, um litro 2,50€) — a lista continua, com outras medidas para copos e garrafas e outras combinações. A todos os sumos pode-se misturar hortelã, gengibre e aipo.

Estão cinco pessoas atarefadas, colocando a fruta nas máquinas ou descascando-a. João Sotero está a receber os pedidos. Há dias em que são precisas 15 caixas (cada uma tem 15 quilos) para responder à procura. “Estou ainda a fazer a laranja de Inverno”, explica. “Como está na parte final do ciclo é mais doce. Mas já está a acabar.” Tem dez hectares em Santo Estêvão só com laranjas e não há nada como a laranja algarvia, assegura. “As laranjas são boas porque os algarvios são boa gente.” Tem a variedade lanelate, a tal que se dá no Inverno, e a valencialate, que está boa no Verão. “Há laranja o ano todo.”

Vende fruta também: melancia, melão, framboesas, mangas de Tavira... “Mas o meu negócio é sumos. Vou bebendo e experimentando. Agora é a melancia, com beterraba e gengibre.”

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Maria Antónia produz tudo o que vende na sua banca em Tavira

Não há tanta variedade na banca de Maria Antónia. Desde 2000, quando o novo Mercado Municipal de Tavira abriu, que tem ali uma ajuda à sua reforma, mas nesta sexta-feira de manhã o movimento não é grande.

Tem um terreno ao pé de Santa Catarina — “Estive sempre ligada ao campo, mas era a parte do sequeiro. Agora ainda tenho um pouco de figo.” Vem Agosto e Maria Antónia começa a secar figos na varanda. “Antigamente era com esteiras de palha de centeio, agora já não há nada disso.” Usa cartões “limpos” ou caixas de plástico.

Garante que tudo o que tem à venda é produção sua: tomate, tomate cereja, pepino, laranja, cebola, batata... Nesta altura o que sai mais é o feijão-verde, porque “há pouca quantidade nesta zona, por causa do calor”. “Não compensa é a pessoa estar aqui. O pessoal vem com os tostões contados para os hotéis. Não dá para viver, só com a ajuda da reforma. Se fosse só disto já tinha morrido de fome.” Acrescentava algum nos mercados e feirinhas de artesanato, “mas a saúde já não quer”. “É só para ir vivendo e convivendo um pouco.”

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Vivendo é a palavra de ordem da ERVASUL. Num dos extremos do mercado, Maria del Mar ocupa três bancas, onde tem as suas ervas e especiarias. Raiz de curcuma, chimichurri argentino, preparado de barbacoa, canela de Madagáscar, mate, bagas de zimbro, ajil doce argentino... Há várias misturas para depressão, acne juvenil, inflamação do fígado, diabetes, faringite, laxante, lombrigas, bronquite, pedras nos rins, dores musculares... Há também gomas e rebuçados artesanais.

A andaluza Maria del Mar dedicou-se às ervas medicinais toda a sua vida de 40 anos. “Já vai na quinta geração”, garante. “Somos oito irmãos e todos vivemos disto. O meu pai é curandeiro. É Antonio Tribaldos Carrasco, muito conhecido em toda a Espanha porque cura muita gente”, diz num sotaque carregado (só vive em Portugal há três anos, desde que se casou com um português).

“Todos os medicamentos são feitos de plantas medicinais, antigamente toda a gente usava para aliviar as doenças”, afirma. “Faço tratamento para nervos, depressões, insónias, esgotamento, enxaquecas: é um pacote que serve para tudo isto, uma mistura de chá com manjerona, passiflora, hipericão, flor de laranjeira, melissa, valeriana...” As doses é que ficam em segredo.

O que tem mais saída é uma mistura para emagrecer, com algas, cavalinha, bétula “e muito mais!”. “Tenho as minhas doses, os meus tratamentos e as minhas misturas.” Houve até quem já lhe chamasse “a bruxa da Andaluzia”.

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Maria del Mar segue o negócio que está na família há cinco gerações

Olhão

“Eu sou mais peixeira que ela”

“Eu sou mais peixeira que ela”, ouvimos gritar repetidamente. Estamos a conversar com Tânia Lopes porque, com 29 anos, é ela a mais nova do Mercado de Olhão — pelo menos, do lado onde se vende o peixe. Piercing na sobrancelha e outro debaixo do lábio, cabelo aos caracóis, comprido, conta com alguma timidez que veio aqui parar há três anos, quando estava desempregada, por conselho da sogra e da cunhada. Antes não distinguia uma sardinha de um carapau, agora diz que não quer outra vida.

Pouco depois das seis da manhã já está na praça, e aos sábados chega uma hora mais cedo. Mas não é isto que torna o seu trabalho mais difícil. “Muita gente parece que tem nojo de nós. ‘Ai, cheira mal’. Agarram nos sacos com nojo. Não tenho vergonha nenhuma. Vergonha é ficar em casa a passar fome.”

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Com 29 anos, Tânia Lopes é a peixeira mais nova de Olhão

“Eu sou mais peixeira que ela”, gritam novamente por trás de uma bancada. Aproxima-se Vítor, o ex-fiscal do mercado, que confirma: “Aquela é que é a mais regateira.” Tânia Lopes ri-se e apresenta-nos a Cláudia Lourenço, que tem apenas mais um ano que ela. “Somos as duas caçulas”, dizem. “Eu sou de certeza a mais pequenina” — Cláudia não terá muito mais que um metro e meio, mas sabe fazer-se ouvir como ninguém por ali. Sim, ela é que é a mais peixeira da praça, confirma orgulhosamente. “Sou peixeira de coração há mais de nove anos.” Sempre foi esta a vida que ambicionou. “Gosto do mar e de ir à maré.” Ou seja, de apanhar conquilhas, amêijoas e lingueirão, que há com abundância na ria Formosa, mesmo por trás do mercado.

“As melhores alturas [de venda] são o Verão, a Páscoa e o Natal”, diz Cláudia Lourenço. Mas a patroa da Peixaria Menau (tem até uma t-shirt cor-de-rosa com o nome da banca) é das poucas que paga salário ao mês e não ao dia, durante o ano inteiro, diz. “O peixe vem todo de Quarteira e de Olhão, mas fazemos entregas no Alentejo.” Mostra os chocos da ria, as gambas da costa. Faz a festa, como uma criança a falar de guloseimas.

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O dinheiro chegou a Olhão na primeira metade do século XX, quando se instalaram ali as fábricas de conserva de peixe. A primeira, a francesa Delory, apareceu em 1892, mas nos anos seguintes a indústria cresceu aceleradamente. Foi sol de pouca dura. Os congelados contribuíram para a crise das conserveiras e agora já muito pouco resta dessa herança. O mercado, começado a construir em 1912, ficou como uma lembrança desses tempos mais afortunados. São dois corpos avermelhados de tijolo, ferro e vidro, cada um com quatro torreões.

Num lado vende-se o peixe, no outro, as frutas e legumes. Passamos para esta zona. Logo à direita está Felismina, cheia de doces e biscoitos da marca Vitalina — o nome da sua filha. “Trabalhei em França, nas limpezas e numa fábrica, trabalhei nas salinas, mas há 30 anos que estou aqui.” Nenhum dos legumes ou frutas que vende vem da sua horta. “Em vida do meu marido semeávamos isso tudo, agora estou velha para trabalhar na terra.” Só os figos é que são de uma árvore que tem ao lado de casa.

Em várias bancas há mel, amêndoas, castanhas piladas, sacos de milho para o xerém. Conceição (não quer apelidos nem fotografias) dá a receita: “O xerém é todo igual: água, sal e azeite, pôr ao fogo até ficar cozido. No fim deita-se conquilhas, amêijoas ou camarão. Não tem segredo nenhum.”

É quinta-feira e o movimento não é muito, apesar de os turistas já terem invadido a cidade. Como em tantos outros mercados algarvios, o melhor dia para fazer as compras é ao sábado. Juntam-se produtores da região, com aquilo que cultivam nos seus terrenos, e o passeio à volta da praça fica apinhado.

Loulé

Havia bailes, cinema, teatro e comícios

“Há uma história por trás desta história”, ou seja, por trás do Mercado Municipal de Loulé, afirma Luísa Martins, que trabalha na Câmara Municipal da cidade e desenvolve investigação na área da história local. A explicação começa na época medieval. “Chamava-se praça às ruas intramuros, estreitas, onde se fazia o mercado. Num período medieval tardio, à medida que a vila se desenvolve e as pessoas começam a poder morar fora [da muralha] porque há mais segurança, não há o perigo da invasão castelhana, vão construir as suas casas junto à muralha e vai surgir a praça de fora (que é no final da Praça da República, mas que não é praça, é uma rua, só que o nome ficou).”

Mercados variados vão proliferando em pontos diferentes da vila (que entretanto já é cidade), consoante o tipo de produtos: ora das loiças, ora do peixe, ora dos legumes. “Em 1898 começam as discussões sobre a necessidade de haver uma praça onde os mercados da vila se concentrassem”, adianta Luísa Martins. “Como com tudo em Loulé, a discussão prolongou-se e foi acentuada.” Ninguém se entendia quanto ao local onde deveria ficar o mercado e chegou a falar-se em construir dois edifícios distintos, um para o peixe, outro para as verduras, em dois locais diferentes. “Finalmente houve uma crise financeira e chegaram à conclusão que tinham mesmo de fazer apenas um mercado. Mas isso não impediu que surgissem vários projectos.”

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O mercado de Loulé seguiu a tendência da época de referências ao estilo árabe

Num painel colocado no mercado podemos ver alguns exemplos, incluindo o projecto inicial do arquitecto Alfredo Costa Campos, que foi a proposta aprovada, em 1903, mas que se baseou noutra de 1898. Do primeiro projecto ficou o alçado da porta principal, a norte. “A parte sul do mercado não ficou fechada durante muitas décadas. Tudo isto era a céu aberto e aqui se vendia o peixe”, tal como agora.

O mercado instalou-se numa zona de ruas estreitas, que seria de um bairro islâmico e perto da judiaria. Indo à porta nascente, olhamos para uma casa em obras e vemos uma parte da antiga muralha. “Partiu-se um bairro e foram encontrados muitos vestígios arqueológicos islâmicos”, mas também de “antigas residências da judiaria”. As obras começaram em 1905 e levaram três anos, com uma linha arquitectónica semelhante aos mercados de Tavira (o antigo, que agora só tem lojas e restaurantes) e de Olhão, com muito ferro e revivalismo árabe.

Todos os sábados de manhã, as ruas que circundam o mercado ficam cheias de pequenos agricultores que vêm de todo o concelo para vender os seus produtos. É fácil imaginar o tempo em que este era o ponto nevrálgico de Loulé. “Havia aqui bailes, cinema, teatro. Faziam-se comícios. Aqui apareciam os cauteleiros, o poeta António Aleixo a contar as suas quadras... A praça era acima de tudo um ponto de encontro da gente do campo com a gente da vila. Não era apenas [um local] de compra e venda”, continua a historiadora. “De manhã, as pessoas que vinham do campo esperavam que a porta abrisse no lado nascente, que tinha sol. Mas depois, para o debate político e para ver o que se passava naquela casa ao lado, que é a Câmara Municipal, os opinion makers punham-se ali à porta, a ver quem entrava e saía da câmara. Muita discussão havia ali. E ainda hoje gostam mais de estar naquele lado. São coisas que ficam na memória colectiva.”

Para um lado o peixe, para o outro tudo o resto. O resto, neste caso, tem uma boa quantidade de produtos regionais. Coisas Boas da Antonieta, Cantinho dos Frutos Secos, Da Tradição ao Sabor. Há bolos de figo com variedade, com rótulos bem cuidados. Amêndoa a granel — uma grande parte vem da Califórnia; “faltam incentivos”, queixa-se Luísa Martins. Há vendas de licores, como o que produz Carlos Faísca. “Nós não dizemos alfarroba, dizemos farroba”, daí a sua marca ser a Farrobinha.

Vamos visitá-lo a Querença, onde tem a sua pequena fábrica (está à espera de licenças para a fazer crescer, mas “não é fácil”). Tem 15 hectares de terra com frutas e hortícolas, algumas árvores de sequeiro também. “Ao ser transformado em produto final tem rentabilidade”, mas amêndoas, figos e azeitonas são produções que “não estão mecanizadas e não se consegue competir com as grandes plantações dos EUA”, nem mesmo de Espanha. “Uma arroba, que são 15 quilos de amêndoa com casca, custa dez euros. Há 30 anos pagava-se exactamente o mesmo. Nessa altura era viável.”

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Carlos Faísca lançou a marca de licores e compotas Farrobinha

Por baixo há um restaurante, que aluga, por cima há a loja, a sala onde faz a rotulagem e a cozinha, onde prepara as compotas e piripíris, tudo artesanal. “Agora não estou a produzir, o morango já acabou e estou à espera que saia o melão.”

Aprendeu a fazer licores “aí com os velhotes”, em 1998, quando ainda tinha o restaurante, para oferecer aos clientes depois da refeição. “Começou de brincadeira, e começaram a querer levar garrafas.” Agora produz 15 mil garrafas de meio litro por ano (e 20 mil frascos de compotas). Nas traseiras estão 16 cubas de mil litros, na fase da maceração. Noutra sala, estão os licores já prontos a engarrafar.

A base é sempre a mesma: aguardente de figo (que é comprada, porque ainda não conseguiu ver aprovado o projecto para a destilaria). À aguardente junta-se o poejo, canela, amêndoa, funcho, amora... “Trabalhamos a maior parte dos produtos que temos à nossa volta”, diz. Fica um ano nesta infusão (mais no caso da bolota, porque tem menos sabor, explica Carlos Faísca). Ao fim desse tempo faz-se um xarope de açúcar e o fruto usado, e junta-se à aguardente. Fica mais um mês a decantar na cuba e só depois se engarrafa. “No licor industrial é só juntar o aroma ao álcool e no dia seguinte está feito.”

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Lagos

“Galo do campo não quer capoeira”

Chama-se Quinta das Seis Marias porque todas elas, mãe e cinco filhas, têm Maria no nome. Vamos falar com Maria de Fátima Torres (48 anos), porque é ela quem põe tudo a mexer.

Conta que se instalaram no Sargaçal (Lagos) depois de uma breve passagem pelo Norte do país, quando saíram de Angola. “Somos retornados”, conta. “Os meus pais vieram quando a guerra [civil] rebentou e não conseguiram trazer nada, só as cinco filhas. Lembro-me de estar escondida na fábrica de confecções do meu pai e de ouvir tiros. Viemos na ponte aérea. Primeiro fomos para o Norte, mas estávamos sempre doentes, não nos habituámos ao clima, e os meus pais decidiram vir para o Algarve. Foram alugando quintas e acabaram por comprar esta.”

Há 11 anos, Fátima fez a conversão para agricultura biológica e no ano passado abriu um agroturismo. Em frente às casas há uma pequena horta onde os hóspedes podem apanhar o que quiserem. Os tomates cereja estão já bons para ser colhidos, mas as alfaces ainda estão pequeninas. Há uma curgete gigante, ervas aromáticas, pimentos…

Uma vez por semana faz entregas em Lisboa, mas o principal mercado da família é a Reforma Agrária, em Lagos (lá iremos, mas temos de esperar pela manhã seguinte, porque só abre ao sábado). Também há uma pequena loja na quinta, onde se vendem os produtos produzidos ali e alguns que vêm de fora, como umas maçãs grandes e amarelas, porque “os clientes querem sempre maçãs”. A batata-doce está a trazer de Mafra, mas a maior parte das verduras cresceram mesmo aqui, tal como os microlegumes e flores comestíveis que vende para alguns restaurantes.

Para dar mais rentabilidade, Fátima Torres construiu quatro estufas em meio hectare de terreno, mas ainda não conseguiu controlar bem as perdas, sobretudo devido ao piolho. “Damos sabão de potássio e um insecticida à base de urtigas”, mas ainda assim eles atacam o tomate, o feijão-verde, o pepino e as alfaces. Aqui dentro estão sempre mais dez graus do que lá fora. E, apesar de tudo, tem sido possível garantir mais produção durante todo o ano: “Temos tomate mesmo no Inverno.”

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Fárima Torres, da Quinta das Seis Marias, fez a conversão para a agricultura biológica há 11 anos DR

Passamos por um talhão onde as sementes de cebola roxa, ainda nas plantas já secas, estão praticamente prontas a ser apanhadas — “se não, daqui a nada os pássaros comem-nas todas”. Dentro de uma estufa, os bicos de lacre também estão a regalar-se com a milhareira (sementes de uma pequena planta que parece milho, daí o nome) que cresce aqui de forma selvagem, “mas sempre dá sombra às curgetes”.

Hoje foi dia de apanhar produtos para que na manhã seguinte a banca do Mercado Reforma Agrária esteja bem repleta — em todo o mercado só há dois produtores biológicos certificados.

Na Rua Mercado de Levante, por trás da estação rodoviária, sente-se a agitação bem cedo (abre às seis da manhã). Para além dos legumes e frutas, do mel e das azeitonas, há patinhos bebés e codornizes dentro de gaiolas.

Uma parte dos vendedores está dentro do edifício, mas há também uma zona exterior, só com uma cobertura de linóleo. É aqui que se encontra António Duarte, de 66 anos, e as suas sacas de feijão fidalgo e boneco (ambos brancos), grão, feijão catarino, frade e manteiga. As leguminosas crescem nos seus terrenos na zona de Aljezur. Usa ainda as cestas de palma e outras de esparto — “são as mais resistentes mas já há muito pouco quem faça. Cresce junto à beira mar, até Vila do Bispo, onde os animais não frequentam, porque eles gostam de comer isto; a palma não comem.”

Há muitos homens de boina como ele, a comprar e a vender. Mas António Duarte está cansado. “Estou a pensar desistir. A idade vai chegando e é preciso descansar.” Não é que o ofício seja complicado: “Mete-se o feijão à terra e passados três meses está capaz de colher. Depois temos a debulha, colhemos e pomos na eira, mas ele seca na planta.” Em média, produz dois mil quilos por ano de feijão e três mil de grão. A conversa é interrompida porque a senhora Fernanda, uma cliente de há mais de 20 anos, quer levar o feijão boneco para a feijoada — “feijão boneco é sempre aqui que compro”.

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António Duarte vem de Aljezur para vender o seu feijão no mercado de Lagos DR

Na outra zona está José Júlio Glória, apicultor desde os sete anos (tem 62). “Ninguém me ensinou. Para se ser apicultor, tem que nascer connosco, é como quem nasce para ser músico ou pintor. Se for com o intuito do lucro, dificilmente vai ser apicultor.”

Há duas regras para a profissão, diz. “A primeira, é não ser alérgico a picadas de abelha”; a segunda é “não entrar em pânico quando se está sozinho”. “Porque nunca se está sozinho; estamos com os pássaros, com os ventos, com as árvores.” São tantos anos no campo que reconhece as árvores de olhos fechados, “pelo som do vento a passar entre as folhas — não é igual num eucalipto ou num pinheiro”. Não concebe a sua vida noutro sítio. “Galo do campo não quer capoeira.”

O mesmo apicultor não recolhe o mesmo mel o ano todo. Em Janeiro começa com o trevo azedo e a amendoeira; nas últimas semanas de Março é o rosmaninho (a esteva também está em flor, mas não dá néctar, só pólen, explica). Em Setembro há a tágueda e em Outubro o eucalipto e o medronheiro. “A abelha faz um raio de três quilómetros; nessa área, se há mais de 50% de uma flor, é essa que vai ser rotulada. Só o rosmaninho dá quase 100%. Isto, aqui na nossa zona”, ressalva.

Nem sempre a natureza é generosa. “O ano passado foi mau, este vai ser pior — o pior dos últimos 100 anos. Não choveu em Abril e em Maio fez vento levante, cheio de pó e sal. Mas se chover um bocadinho em Setembro é bom. Não digam mal da chuva, a chuva é o sangue da terra.”

Aljezur

“Só quero que me fales de cantigas e de vinho”

Percebe-se por que é que o senhor António Duarte, que é de Aljezur, vai vender para Lagos. Aqui o Mercado Municipal é uma miniatura (na verdade, faz-se todos os sábados um mercado semelhante ao Reforma Agrária onde estão mais produtores). Peixe à esquerda, vindo de Sagres, de Lagos ou da Arrifana, frutas, legumes e produtos regionais à direita.

A banca de Peitra Deen ocupa quase metade do mercado. Trocou a Holanda por Portugal, há quase 11 anos (tem 56) e a venda de cosméticos pelas hortaliças. “Porque não mudar? Sempre o mesmo não é agradável.” Ela e o marido, Paulo, compraram um terreno e, “com uma carrinha velha”, começaram a vender batata-doce aos restaurantes. A produção foi crescendo. Tem caixas da famosa batata-doce de Aljezur (lira e roxa) e uma variedade enorme de produtos da região, que compra a outros agricultores. “Gosto de vender os produtos locais, de boa qualidade. É importante que o dinheiro fique cá.”

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A banca de Peitra Deen (aqui numa fotografia de arquivo) ocupa quase metade do mercado de Aljezur José Sarmento Matos

Para além dos frescos, vende doces Campos Santos (de Albufeira), ou manteiga de amendoim Alcagoita. É António Rosa quem a faz, só com amendoim e flor de sal. António Rosa não tem nem um frasco para amostra porque das três toneladas de amendoim nada sobrou.

A sua quinta fica em João Roupeiro, depois de passar Maria Vinagre. São cinco hectares com amendoim, batata-doce e vinha. À direita do seu terreno está um campo de flores de agro-indústria. “Sinto-me um macaco dentro de uma jaula e de vez em quando vão lá uns turistas jogar uma côdea de pão.” Ou seja, os pequenos agricultores como ele são uma espécie em vias de extinção. “O que eu faço é microeconomia e hoje pensa-se tudo em grande. Não pode ser. Os velhotes vão acabando e deixam-se da agricultura tradicional. Obrigarem os velhos a uma formação sobre pesticidas é muito bonito, mas deviam ir ter com eles [em vez de exigir o curso]. O que acontece? Os velhos desistiram. Abandonaram isto. Em dois anos perdeu-se a biodiversidade quase toda, porque se armaram em modernos e sustentáveis. Mas esses velhos têm melhor pegada do que nós. Tinham o mundo rural vivo, agora é a agro-indústria.”

Usa uma t-shirt cinzenta de um concerto de David Byrne que tem à frente uma lista de governantes que estavam então no poder: François Mitterrand, Helmut Khol, Boris Ieltsin, Felipe Gonzalez, George Bush, Saddam Hussein, Corazon Aquino… Não é nova, portanto. A política está no seu discurso tanto quanto a agricultura, porque as duas coisas nem sempre se separam.

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António Rosa mostra as vagens da planta de amendoim, enterradas na terra DR

“Em termos botânicos, a planta do amendoim é mais parecida com a orquídea, a flor é igual”, amarela e pequenina, mostra. Escava um pouco na terra para revelar também a vagem: o amendoim, ainda amarelo pálido. “É só cultura de Verão, é subtropical.”

Noutra parcela, colhe um pouco de feijão carito, ainda verde — pequeno e fino, e bem estaladiço. Abre a vagem e retira os pequenos feijões, minúsculos e esbranquiçados. “Ficam encarnados depois de cozer. Era a comida do pobre porque dá-se em qualquer terra e não tem grandes cuidados.”

Mais adiante tem a vinha (um hectare aqui, outro no Rogil). Tem Moscatel e Bastardinho, Boal-roxo. “Fazemos tudo por enxertia. Primeiro plantamos um bravo (porta-enxertos ou cavalo), faz-se um garfo e pomos a variedade que quisermos.” António Rosa está apostado em desenvolver as castas antigas — “um tributo a esta gente boa das comunidades locais” —, e quer também produzir um vinho palhete, com mistura de uva branca e tinta. “O que está sempre na moda é fazer como se fazia! Já está tudo inventado.” O rótulo do palhete terá versos do rei e poeta árabe Al Mutamide (1039-1095):

“Eu só quero que me fales de cantigas e de vinho,
deixa lá e não te rales
Deus perdoa o descaminho...”

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