Um edifício, um hospital e uma circular põem câmara de Lisboa na mira da Justiça
Ministério Público investiga decisões sobre Torre de Picoas, Hospital da Luz e Segunda Circular durante os mandatos de Costa e Medina. Associação de Turismo está também sob escrutínio.
O Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) está a investigar algumas decisões tomadas pelos serviços de Urbanismo da Câmara Municipal de Lisboa nos últimos anos. A Associação de Turismo de Lisboa também está sob suspeita, adiantou ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Os inquéritos em cursos centram-se em dossiers sobre os quais houve decisões polémicas durante os mandatos de António Costa e Fernando Medina, com Manuel Salgado como vereador do Urbanismo. Sob a mira da justiça estão a construção da Torre das Picoas, as obras de ampliação do Hospital da Luz e a Associação de Turismo de Lisboa, informou a PGR, que adiantou ainda não terem sido constituídos arguidos.
A câmara diz que não foi notificada “nem oficial nem oficiosamente” destas diligências. “Nenhum técnico, dirigente ou qualquer outro responsável foi ouvido em qualquer condição a propósito de qualquer processo”, acrescentou, em resposta enviada por email, o departamento de comunicação da autarquia.
Algumas das matérias em investigação têm gerado controvérsia nos anos recentes. A construção de um edifício de escritórios de 17 andares nas Picoas, no centro da cidade, é disso exemplo. Em 2011, a câmara informou o então proprietário dos terrenos – na esquina fronteira ao Hotel Sheraton – que apenas podia construir ali um prédio com sete andares (12 377 metros quadrados, no total). No ano seguinte, já com os terrenos nas mãos de uma empresa ligada ao antigo BES, a autarquia autorizou um aumento de área em 89% e os 17 andares actualmente em construção. Em 2015, quando o PÚBLICO relatou o caso, a câmara justificou a mudança com a entrada em vigor, em 2012, de um novo Plano Director Municipal.
A polémica relativa à torre conheceu novos capítulos posteriormente, quando se percebeu que o empreiteiro tinha cravado um conjunto de estacas em terrenos que, à data, eram municipais. A descoberta motivou uma queixa ao Ministério Público, feita pela Assembleia Municipal de Lisboa a pedido do Bloco de Esquerda, que acabou por ser arquivada. Entretanto, a câmara vendeu aqueles 27 metros quadrados de terreno por 317 mil euros ao promotor da torre.
Já a ampliação do Hospital da Luz, na Avenida Lusíada, deu que falar por ter obrigado à demolição de um quartel do Regimento de Sapadores Bombeiros que, à época, era o mais moderno de Lisboa. O terreno em que estava o quartel, contíguo ao hospital, foi vendido em hasta pública em 2014 à então dona daquele equipamento, a Espírito Santo Saúde, que pagou um euro a mais do valor-base de licitação: 15,580 milhões de euros.
O projecto de expansão do hospital foi aprovado no ano passado e o quartel demolido entretanto. Já este ano, os deputados do PCP à assembleia municipal pediram que o assunto fosse analisado por uma das comissões permanentes daquele órgão, suspeitando que teriam sido ocupados terrenos municipais pela obra. Foram, de facto, invadidos por um túnel rodoviário. E, garante a câmara, o hospital pagará uma renda mensal pela utilização desses terrenos.
No passado recente, entre 2007 e os anos seguintes, a procuradora Maria José Morgado liderou uma unidade especial de investigação que se debruçou não apenas sobre a permuta entre a Feira Popular, propriedade da autarquia, e o Parque Mayer, que pertencia ao grupo Bragaparques, como sobre muitos outros negócios, sobretudo imobiliários, ligados às mais-valias proporcionadas pelos licenciamentos feitos pelo departamento de urbanismo da autarquia.
Apesar de o caso Bragaparques ter feito cair o executivo camarário liderado por Carmona Rodrigues, acusado do crime de prevaricação juntamente com alguns dos seus vereadores, os tribunais acabariam por ilibar os suspeitos.
“Quem assina de um lado e de outro é Fernando Medina”
As investigações do DIAP incluem ainda a Associação de Turismo de Lisboa (ATL). Vítor Costa, director-geral da associação, criada há 20 anos para promover a cidade como destino turístico, diz não ter conhecimento do processo, razão pela qual não presta declarações.
Nos últimos anos, a Câmara de Lisboa tem passado para alçada da ATL a gestão de vários edifícios, o que lhe valeu críticas da oposição por “falta de transparência”. “Ninguém sabe como é que os contratos são feitos, se há ou não há concursos públicos, se as adjudicações são justas, quanto se paga, quanto se recebe. A câmara usa a ATL para alivar o processo de contratação pública e evitar o escrutínio da oposição, da Assembleia Municipal e do Tribunal de Contas”, observa Victor Gonçalves, deputado municipal do PSD.
Os sociais-democratas de Lisboa reafirmam as críticas feitas no final de 2015. Nessa altura, um grupo de deputados municipais do PSD pediu à Procuradoria-Geral da República para averiguar a relação entre o município e a ATL. Acusam António Costa e Fernando Medina de terem criado uma “segunda câmara em Lisboa, à qual é dado o filet mignon da cidade, e que não presta contas a ninguém”, nas palavras de Vítor Gonçalves.
A ATL é uma associação privada sem fins lucrativos declarada de interesse público e este estatuto permite-lhe evitar o escrutínio dos órgãos municipais e desobriga-a de obedecer às regras da contratação pública. A presidência da direcção é exercida pela câmara, sendo a presidência adjunta exercida por um privado.
Os sociais-democratas de Lisboa estimam que o património atribuído à ATL ultrapasse os 100 milhões de euros. “É o Parque de Campismo, a Praça da Ribeira, todo o rés-do-chão do Terreiro do Paço, o Páteo da Galé, toda a zona ribeirinha, incluindo o terminal de cruzeiros e as obras na estação fluvial de Sul e Sueste, o Pavilhão Carlos Lopes e ainda as obras do Palácio da Ajuda”, enumera Vítor Gonçalves.
“Acresce que o presidente executivo da ATL é o presidente da Câmara de Lisboa. Há documentos em que quem assina de um lado é o Fernando Medina e do outro é o Fernando Medina. Mais não seja, é um convite à falta de transparência”, acrescenta o social-democrata.
Queixa da oposição dá origem a investigação à Segunda Circular
O Ministério Público está ainda a investigar a interrupção das obras da Segunda Circular. A investigação surge na sequência de uma participação feita por deputados municipais do PSD e do CDS-PP, em Outubro do ano passado, que pediram à Procuradoria-Geral da República (PGR) para averiguar se existiram indícios suficientes para anular o concurso público das empreitadas orçadas em 10 milhões de euros.
As obras estavam em curso quando, a 2 de Setembro do ano passado, Fernando Medina suspendeu a empreitada “por suspeita de conflito de interesses”. Em causa, justificou o autarca, estava o facto de o consultor do projecto da obra ser ao mesmo tempo o vendedor do material que aconselhou. A empresa de consultoria Consulpav fez uma alteração ao estatuto da sociedade em Janeiro do ano para poder passar a "fabricar e comercializar" o pavimento que aconselhara à câmara, meses antes.
Medina disse não ter conhecimento deste facto aquando do lançamento do concurso, mas não conseguia “afastar as dúvidas de que o mesmo o tivesse viciado”. O júri do concurso das obras sustentou as dúvidas sobre a legalidade do concurso, pelo que autarquia suspendeu a obra e abriu uma auditoria interna.
Auditoria essa, anunciada em Setembro, que só começou a ser feita no fim do ano passado ou no início deste e na qual participaram apenas o presidente da câmara e os vereadores das Finanças e do Urbanismo. Isto porque a maioria socialista na assembleia municipal bloqueara a audição de técnicos, responsáveis municipais, projectistas da obra e júris do concurso. Por isso, a comissão sobre as obras na Segunda Circular começou e acabou em vinte minutos, com o PSD a abandonar a sala e Medina a afirmar que a decisão sobre as obras foi “muito simples”.
Na semana passada, foram conhecidos os resultados da auditoria interna: “A comissão não aponta para que exista nenhum crime nem nenhuma ilegalidade grave”, disse à Lusa o vereador das Finanças, João Paulo Saraiva. Para acrescentar que “o concurso poderá ter sido prejudicado, na [vertente da] livre concorrência, pela forma como o projectista se portou desde o início”.
Ainda que os resultados do inquérito não apontem "matéria suficiente para enviar ao Ministério Público", Fernando Medina acabou por o fazer. João Paulo Saraiva explicou que o autarca “decidiu fazê-lo para o Ministério Público ver se há matéria para investigar".
A participação do presidente da Câmara ao Ministério Público, sobre a mesma matéria que já está a ser investigada por causa da participação feita pelo PSD e CDS, ainda não deu entrada, disse fonte da PGR.
Decisões de urbanismo sob investigação
Algumas pessoas chamadas a testemunhar pela Polícia Judiciária no âmbito destes inquéritos também têm sido inquiridas sobre o Plano de Pormenor da Matinha, a requalificação do miradouro de São Pedro de Alcântara, algumas hastas públicas e operações de reabilitação urbana, apurou o PÚBLICO.
O Plano de Pormenor da Matinha gerou contestação entre os eleitos da oposição na câmara e na assembleia municipal. Referente a terrenos entre o Parque das Nações, a linha do Norte e o rio, este plano – desenhado por Manuel Salgado quando ainda não era vereador – prevê a construção de 25 edifícios de habitação, equipamentos e espaços verdes. Os terrenos são de três proprietários diferentes e a câmara autorizou a construção faseada por lotes, o que sempre foi contestado por um dos donos. Esse facto levou alguns deputados municipais a afirmarem que a autarquia tinha favorecido um dos proprietários – uma empresa então do universo GES, do grupo Espírito Santo.
Já a requalificação do miradouro de São Pedro de Alcântara suscitou as dúvidas do vereador do CDS, João Gonçalves Pereira, pela falta de concurso público. A câmara justifica que adjudicou directamente, em Maio, as obras de sustentação dos muros do miradouro, no Príncipe Real, à empresa Teixeira Duarte (5,5 milhões de euros) por se tratar de uma “intervenção urgente, face ao risco iminente de deslizamento de terras locais ou globais".
No entanto, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) – a quem a vereação do urbanismo pediu um parecer - nega que haja qualquer urgência na obra, deitando por terra o argumento dado pelo município para o ajuste directo. Num parecer datado de Março, os especialistas do LNEC consideram "desnecessário o reforço das estruturas em causa, a curto prazo”, deixando claro que “não haveria necessidade de obras imediatas”, nota o Expresso.
Acresce que os deslizamentos de terra já eram conhecidos da câmara pelo menos desde 2006 e monitorizados desde 2010, como referiu o vereador do urbanismo, Manuel Salgado.
A intervenção por ajuste directo foi aprovada com os votos a favor da maioria socialista, coligada com os Cidadãos por Lisboa, de um vereador do PSD e da CDU. Apenas o CDS votou contra.