“Os governos têm papel activo na promoção da venda de armas e isso não pode ser”

Comércio mundial de armas no nível mais elevado desde fim da Guerra Fria. Países da UE estão entre os principais exportadores. ONG querem controlo mais apertados devido à situação nos países de destino.

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O conflito no Iémen j+a matou 7600 pessoas desde Março de 2016 Reuters

O volume global das transferências de armas está em crescimento constante desde 2004 e nos últimos anos atingiu o ponto mais elevado desde o fim da Guerra Fria. Este aumento do comércio mundial de armamento deve-se sobretudo à procura elevada por parte de países do Médio Oriente e da Ásia, segundo os últimos dados do SIPRI (Stockolm International Peace Research Institute), publicados em Fevereiro.

As importações de armas por parte de países do Médio Oriente subiram 86% e representam 29% do total mundial durante os períodos de referência (2007-2011 e 2012-2016). A Arábia Saudita é o segundo importador mundial de armas registando um aumento de 212% entre os dois períodos. Já as importações de armas pelo Qatar cresceram 245%. Os dois países têm relações cortadas protagonizando uma grave crise diplomática no Golfo Pérsico.

Nos últimos anos, os países do Médio Oriente recorreram aos Estados Unidos e à Europa para reforçarem as suas capacidades militares avançadas e, apesar da queda dos preços do petróleo, continuaram a encomendar armamento em 2016 para enfrentar os conflitos e as tensões regionais, dizem os investigadores do SIPRI. Há outras tendências a destacar: por exemplo, três dos principais países importadores no continente africano — Nigéria, Sudão e Etiópia — encontram-se em zonas de conflito.

Na base de dados do instituto de Estocolmo verifica-se que na lista dos dez principais importadores estão também países como a China, o Paquistão, os Emirados Árabes Unidos e a Turquia. Do lado dos principais exportadores mundiais encontram-se os dois gigantes: Estados Unidos da América (metade das exportações deste país seguem para o Médio Oriente) e a Rússia. Na restante lista dos principais exportadores de armamento convencional há cinco países europeus: Alemanha, França, Reino Unido, Espanha e Itália.

Alerta para Arábia Saudita

O facto de alguns países do Médio Oriente reforçarem o seu poder bélico preocupa as organizações de direitos humanos. As ONG têm denunciado vários países europeus por autorizarem a venda de armas a países problemáticos. As organizações não-governamentais pedem aos Estados-membros da UE legislação mais estrita e controlos das exportações mais apertados, apesar de os 28 já estarem obrigados a respeitar uma série de regras sobre transferências de armamento, em virtude do direito europeu e internacional.

Em concreto, as ONG estão preocupadas com as transferências de armas para países ou regiões onde existe um risco de serem utilizadas num conflito ou usadas para cometer violações dos direitos humanos. A Campaign Against Arms Trade (CAAT) e a Human Rights Watch (HRW) alertam, por exemplo, para os “ataques ilegais” da coligação liderada pela Arábia Saudita no Iémen que deixam um rasto de destruição e milhares de vítimas. O Iémen é um dos mais pobres países árabes e está a ser devastado por uma guerra entre forças leais ao governo reconhecido internacionalmente do Presidente Abdrabbuh Mansour Hadi e os aliados do movimento rebelde Houthi. Mais de 7600 pessoas morreram desde Março de 2015, a maior parte vítimas dos bombardeamentos da coligação liderada pelos sauditas que apoia do Presidente.

 As ONG têm denunciado a venda de armas e o apoio militar do Reino Unido à coligação liderada pela Arábia Saudita, tendo mesmo o caso chegado à justiça britânica.

“A Human Rights Watch apela a todos os governos, incluindo da União Europeia, para suspenderem a transferência de armas para a Arábia Saudita até que parem os seus ataques ilegais no Iémen mas também que se investigue com credibilidade os que já ocorreram”, disse Kristine Beckerle, da HRW, ao PÚBLICO.

Esta posição é partilhada pela Amnistia Internacional e também pelo Parlamento Europeu. Numa resolução não vinculativa aprovada em Fevereiro de 2016, os eurodeputados defendem “a imposição de um embargo de armas à Arábia Saudita, tendo em conta a gravidade das alegadas violações do direito internacional humanitário pela Arábia Saudita no Iémen”. Uma resolução aprovada recentemente pelo Parlamento Europeu, relembra aquela posição.

Para além do uso que é feito, “as exportações de armamento oferecem um sinal de apoio político e militar ao comprador, dando-lhe uma maior autoridade e legitimidade na cena mundial”, explica Andrew Smith da Campaign Against Arms Trade. “A mensagem que envia a uma ditadura brutal como a Arábia Saudita é de aprovação”, acredita o activista.

Outro país considerado problemático é o Egipto. No seguimento de uma vaga repressiva por parte das autoridades egípcias, em Julho de 2013, que provocou mortos entre manifestantes, casos de abuso de força e de violação dos direitos humanos, os Estados-membros da UE acordaram suspender as licenças de exportação de equipamentos que pudessem ser utilizados para fins de repressão interna.

A Amnistia Internacional denunciou no ano passado doze países da União Europeia — entre os quais França, Alemanha, Itália, Polónia, Espanha e Reino Unido — por terem fornecido armas ao Egipto já depois de alcançado o acordo entre os 28 para suspender as transferências.

A questão é que a suspensão acordada pelos Estados-membros não corresponde a um embargo obrigatório. Trata-se de um compromisso político, juridicamente não-vinculativo e que abrange equipamentos “para fins de repressão interna”. Neste caso a suspensão não tem caracter obrigatório, ao contrário dos embargos que são automaticamente vinculativos. Actualmente, os 28 têm — por iniciativa própria ou no âmbito da ONU — embargos de armas decretados contra 30 países como o Iraque, Irão, Sudão, Birmânia ou Coreia do Norte.

ONG pedem rigor à UE

Os defensores dos direitos humanos pedem às autoridades maior rigor e cuidado quando autorizam as licenças de exportação. Os países da União Europeia já estão submetidos a regras internacionais e europeias muito estritas e ao Tratado sobre Comércio de Armas. Além disso, os 28 regem-se pela Posição Comum sobre as exportações de tecnologia e equipamento militares, aprovada em 2008, que define uma série de critérios a respeitar.

O artigo 2.º da Posição Comum prevê o “respeito pelos direitos humanos no país destinatário final e a observância do direito humanitário internacional por parte desse país”. Os 28 devem portanto analisar a atitude do destinatário em relação a estes princípios e verificar, por exemplo, se há “um risco manifesto” de o equipamento exportado ser utilizado para fins de repressão interna.

As ONG defendem a aplicação do “princípio de precaução” e uma avaliação mais rigorosa da situação dos direitos humanos no país de destino, antes das exportações de armamento serem autorizadas, para que não haja dúvidas sobre a legalidade de certas licenças.

Também o Parlamento Europeu se mostra preocupado com a falta de coerência na aplicação da noção de “risco manifesto”. Num relatório sobre exportação de armamento, de 2015, os eurodeputados consideram que “o verdadeiro problema é representado por uma aplicação aproximativa e por uma interpretação vaga da posição comum por parte dos Estados-Membros”.

Andrew Smith, da CAAT, sublinha que “a legislação devia ser mais apertada com a rejeição automática de venda de armas” para zonas de conflito e a países que não respeitam os direitos humanos. “Mas a rejeição por si não resolve o problema. Os governos desempenham um papel activo na promoção da venda de armas e é preciso parar isso”, defende o activista.

Por seu turno, Patrick Wilcken, da Amnistia Internacional, diz que a legislação da União Europeia sobre exportação de armamento “já é estrita”. “A questão é a implementação”. “É tempo de os Estados-membros da União Europeia estarem à altura dos seus compromissos e honrarem a letra e o espírito das suas próprias leis”.

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