O maior canário do mundo é da ilha de São Tomé
Quem olhe para ele nem diz que é um canário, afinal é castanho-escuro e do tamanho de um estorninho. O nome deste canário gigante é bico-grossudo-de-são-tomé e está ameaçado de extinção.
Quando pensamos em canários vem-nos logo à cabeça uma ave amarelinha. Mas esqueçamos as ideias feitas, porque o maior de todos é castanho-escuro, quase arruivado, e tem um grande bico. É também uma ave imprevisível: foi vista pela primeira vez no final do século XIX e depois foram precisos mais de 100 anos até ser de novo observada. O bico-grossudo-de-são-tomé vive nas florestas primárias no Sul da ilha de São Tomé, no golfo da Guiné, e nos últimos anos tem sido alvo de um novo estudo e até ganhou um novo nome científico: agora é o Crithagra concolor, como se pode ler num artigo na revista International Journal of Avian Science.
Em 1888, o naturalista português Francisco Newton apanhou o primeiro bico-grossudo-de-são-tomé. Ou melhor, um anjolô, como ficou conhecido na altura em associação a tcholô, que significa “ave” para os habitantes do arquipélago de São Tomé e Príncipe. Dois anos depois, o naturalista capturou mais dois exemplares. Um deles, que serviria para descrever a espécie, foi para o Museu de História Natural de Londres. Os outros foram para o Museu de História Natural de Lisboa e em 1978 acabaram por ser destruídos por um grande incêndio.
Digamos que o século XX foi negro para esta ave. Pensava-se até que estivesse extinta. Só em 1991 foi vista por observadores de aves britânicos e sul-africanos, como nos indica Martim Melo, biólogo do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (Cibio), da Universidade do Porto, e principal autor do artigo na International Journal of Avian Science.
O século XXI marcou um novo rumo. Em Janeiro de 2002, a ave foi observada pela equipa de Martin Dallimer, da Universidade de Leeds (Reino Unido). Nesse mesmo ano, Martim Melo iniciou um doutoramento sobre a origem das aves endémicas de São Tomé e Príncipe. Afinal, só as florestas de São Tomé há 17 aves que só vivem ali. Têm mais duas espécies endémicas que partilham com a ilha do Príncipe e uma outra que também se encontra no Príncipe e na ilha de Ano-Bom (da Guiné Equatorial).
Martim Melo sabia que para encontrar o bico-grossudo-de-são-tomé tinha de ir pelas florestas primárias e, para isso, teve a ajuda de três são-tomenses que conheciam bem o terreno: Pedro Leitão, Luís Mário e Lúcio Primo. Foi nessa aventura que em Dezembro de 2002 observou a ave pela primeira vez. Encontrou também um arbusto endémico (o Dicranolepis thomensis), como o que Martin Dallimer tinha encontrado quando observou o bico-grossudo-de-são-tomé. Contudo, as bagas ainda estavam verdes. Esperou um mês e, já em 2003, Martim Melo voltou ao local. Mas continuavam verdes.
Como resolver o problema? Pintou-as de vermelho e colocou lá redes. Parecia ter sido em vão. E quando estava prestes a retirar as redes, eis que viu que estava lá uma ave: o imprevisível bico-grossudo-de-são-tomé. “Um enorme grito ecoa pela floresta”, contou Martim Melo num resumo sobre o artigo.
Apesar dos esforços nos anos seguintes, em 2005 apanhou mais dois exemplares. E em 2011, numa expedição financiada pela National Geographic, capturou outro. Próximo passo: perceber em laboratório a evolução desta ave. Afinal, como dizia no resumo: “Conseguir amostras de sangue desta espécie soa um pouco como pôr as mãos no Santo Graal.”
Antes de libertar os exemplares, mediu-os e recolheu amostras de sangue. Percebeu então que era mesmo um canário, pois antes havia a dúvida se seria um tecelão ou um canário. Esta “expedição” em laboratório levou também a que lhe fosse dado um novo nome. Em vez de Neospiza concolor, como a designou o zoólogo José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), passou a ser Crithagra concolor, que pertence à família Fringillidae, onde estão os canários.
Percebeu assim que estava perante o maior canário do mundo. Tem cerca de 20 centímetros e ultrapassa o Crithagra burtoni (ou canário-cinzento-das-montanhas, que se encontra no Monte Camarões ou em montanhas de Angola), que tem cerca de 15 centímetros. O Crithagra concolor é também 50% mais pesado do que o seu “parente”.
O melhor em competição
Em todo este trabalho, Martim Melo encontrou ainda o “irmão” do bico-grossudo, que vive em São Tomé e no Príncipe: o canário-de-são-tomé-e-príncipe (o Crithagra rufobrunnea) e tem 12 centímetros. O biólogo conta que as populações ancestrais das duas espécies se devem ter encontrado entre há 500 mil anos e um milhão de anos e não deviam ser tão diferentes como hoje.
E como é que o bico-grossudo se tornou gigante? Por enquanto há só hipóteses. “Muitas vezes nas ilhas, as espécies aumentam de tamanho”, explica Martim Melo. Isto porque em geral há pouca competição entre espécies e a espécie que chegou primeiro, neste caso o bico-grossudo-de-são-tomé, vai crescer mais. E quando chegaram à ilha outros indivíduos da mesma espécie, a competição aumentou (como aconteceu com a chegada do canário-de-são-tomé-e-príncipe), nomeadamente por recursos alimentares. No final, os indivíduos que divergiram mais foram favorecidos. O antepassado do bico-grossudo terá sido assim o que cresceu mais, tornando-se um canário gigante. Além disso, o seu bico de dois centímetros conseguia sementes que o canário-de-são-tomé-e-príncipe não conseguia.
Quanto à sua cor diferente da de outros canários, também há só hipóteses. A cor é um sinal de saúde nas aves e atrai mais as fêmeas. Vem de substâncias como os carotenóides (um grupo de pigmentos naturais reconhecidos como compostos bioactivos benéficos para a saúde) importantes para o sistema imunitário e também dão a cor amarela (por exemplo) aos canários. Como nas ilhas há menos parasitas, a cor deixa de ter a função de mostrar que têm saúde.
A má notícia é que este canário está “criticamente em perigo” segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza. “É pouco vista”, diz o biólogo. “Há menos de 50 indivíduos adultos, mas pode não ser bem assim. Queremos que fique pelo menos ‘em perigo.’” E ainda há outras questões, como: “Por que é que só aparece na floresta primária?” Por enquanto, Martim Melo tem uma certeza: “É um canário como os outros, mas muito mais distinto.”