Daesh: o fim do “califado” já está à vista, mas não trará a paz

Prestes a serem expulsos da maior cidade que já controlaram, os extremistas não abandonam a política de terra queimada. A jihad internacional vai continuar

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Soldados iraquianos com bandeira do Daesh que retiraram da cidade Alkis Konstantinidis/Reuters

Três anos depois de ter entrado na grande metrópole do Norte do Iraque, o Daesh fez explodir a mais histórica mesquita da Cidade Velha de Mossul, a mesma onde o seu líder, Abu Baqr al-Baghdadi, subiu ao púlpito para autoproclamar um "califado" na Síria e no Iraque. Foi a 5 de Julho de 2014, na sua única aparição pública conhecida.

O primeiro-ministro iraquiano, que em Outubro ordenou uma operação para reconquistar a cidade, diz que “o bombardeamento do minarete Al-Hadba e da mesquita Al-Nuri é uma declaração formal de derrota por parte do Daesh”.

Tudo isto faz sentido se tivermos em conta a habitual política de terra queimada do grupo. Mesmo se, às vezes, a realidade quase parece de encomenda. Dias depois de Moscovo anunciar (e insistir) que “é altamente provável que” Baghdadi tenha sido morto num ataque aéreo das forças russas, em Maio, o grupo que este lidera estará assim a assumir a derrota em Mossul, a segunda maior cidade do Iraque – sábado, foi lançada a batalha para conquistar a Cidade Velha, única zona onde os jihadistas se mantêm.

Os radicais acusam os norte-americanos, que apoiam as forças iraquianas neste combate, de terem bombardeado a Grande Mesquita al-Nuri – seria uma tentativa para desmoralizar os membros do grupo, num momento em que a queda de Mossul parece iminente. A derrota final assinalará a perda do território que resta ao Daesh no Iraque e, simbolicamente, a morte do "califado".

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Os Estados Unidos e o chefe do Governo de Bagdad, Haider al-Abadi, asseguram que foi mesmo o Daesh a fazer explodir o histórico minarete e o que restava do complexo de uma mesquita com 800 anos, que já foi das mais importantes do mundo muçulmano. Antes arrasá-la do que deixá-la para os inimigos, afirmam.

Um cenário de quase suicídio do "califado", quando o grupo enfrenta várias frentes de guerra e tem cada vez menos território na Síria, quase três anos ao dia depois da sua proclamação. Uma acção que se inscreve na lógica de destruição total que os jihadistas adoptam sempre que sofrem derrotas de peso: quando tentaram e falharam a chegada a Bagdad responderam com grandes e mortíferos atentados suicidas.

“Eles explodiram a mesquita porque não queriam que o lugar onde anunciaram o califado fosse o mesmo onde o Exército iraquiano anunciasse a vitória sobre eles”, diz ao Guardian Hisham al-Hashimi, ex-conselheiro do Governo do Iraque e autor de investigações sobre grupos extremistas. Certo é que os habitantes da Cidade Velha acordaram para perceber que o principal monumento de Mossul já não existe.

“Quando olhei pela janela e vi que o minarete já não estava lá senti que tinha morrido uma parte de mim”, descreve o professor de 54 anos Ahmed Saied, ouvido pela Reuters. “Subi ao telhado da minha casa ainda era muito cedo e fiquei chocado ao perceber que o minarete Hadba tinha desaparecido”, diz outro habitante de um bairro próximo, Nashwan. “Desatei a chorar. Senti que tinha perdido um filho.”

Decapitações e um Estado

Nascido dos escombros da Al-Qaeda no Iraque (que chegou a chamar-se Estado Islâmico do Iraque), o Daesh saiu do Iraque para aterrorizar os sírios, aproveitando o vazio de poder aberto pela guerra civil que rebentou depois da revolução de 2011, quando Bashar al-Assad decidiu responder a protestos pacíficos com armas e bombas.

Em 2013, os sírios já conheciam a palavra Daesh e esta era sinónimo de execuções sumárias de aldeias inteiras, tortura, violações em massa e mercados de escravos, incluindo sexuais. Na altura, o grupo também já tinha capturado vários reféns estrangeiros, jornalistas e funcionários de organizações não-governamentais. Mas foi só em 2014 que o resto do mundo acordou para a sua existência, com as sucessivas decapitações de estrangeiros: entre Agosto e Setembro desse ano, foram divulgados os vídeos dos assassínios dos jornalistas americanos James Foley e Steven Sotloff e dos britânicos David Haines e Alan Henning, ambos a trabalhar em ONG na Síria.

Em simultâneo, o grupo tinha atravessado facilmente a fronteira com o Iraque, regressando à província de Anbar e às cidades de Ramadi e Falluja, as mesmas onde a Al-Qaeda no Iraque nasceu durante a ocupação americana do país. Apanhando de surpresa as pouco competentes forças armadas iraquianas, depressa alcançava Mossul e alargava a base do desejado "califado", palavra que à letra significa o processo de escolha de um califa, de um líder da comunidade muçulmana (o califado foi extinto com o fim do Império Otomano). Oficialmente, o que Baghdadi fez na histórica mesquita foi aceitar “a escolha dos crentes” e afirmar-se califa.

Com uma faixa de território nos países que viram nascer importantes dinastias muçulmanas e os primeiros califados, o grupo podia por fim declarar o seu Estado Islâmico. Para tornar o "califado" palpável, desmantelou mesmo a fronteira com escavadoras.

“Roma” e o exército de fiéis

Se a Al-Qaeda nasceu com o objectivo declarado de derrubar os chefes de Estado e de Governo dos países islâmicos, alegados infiéis aliados aos EUA e a Israel, o Daesh surgiu para fazer o mesmo mas ambicionando a crescente conquista dos países onde derrubaria esses líderes. Num vídeo onde são decapitados 21 cristãos coptas egípcios que trabalhavam na Líbia, cuidadosamente encenado numa praia do Mediterrâneo, em Fevereiro de 2015, um combatente promete “conquistar Roma, com a bênção de Alá”.

Tanto um como outro grupo acabaram por organizar e orquestrar atentados em países ocidentais, de diferentes dimensões. E ambos se tornaram fonte de inspiração para ataques em seu nome.

A Al-Qaeda nascera a partir do fim da guerra afegã contra os soviéticos, na qual participaram milhares de muçulmanos vindos do Cáucaso, Ásia ou Magrebe. O Daesh lançou uma eficaz estratégia de recrutamento, fazendo uso de tecnologias e plataformas que a Al-Qaeda nem sonhava virem a existir e formando assim o seu exército internacional – por trás de alguns ataques na Europa estiveram ex-combatentes na Síria de regresso aos seus países.

A guerra internacional

As decapitações daqueles meses de 2014 foram a provocação necessária de quem queria ser notado. Rapidamente, os EUA uniam dezenas de países numa coligação para bombardear o grupo, primeiro no Iraque, depois na Síria. O sucesso da estratégia de crescimento destes jihadistas – porem o mundo a falar deles – assinalava também o início do seu declínio, ao desencadear a esperada reacção internacional.

Com uma filosofia apocalíptica – os seus líderes acreditam que a batalha do fim do mundo, entre o islão e a cristandade, terá lugar em Dabiq (nome que deram à sua revista de propaganda e recrutamento em inglês), cidade do Norte da Síria, muito perto da Turquia –, o Daesh não se preocupa exactamente com o futuro.

A cada cidade perdida respondia com uma série de atentados com dimensão suficiente para valerem de prova de vida. É expectável que antes da derrota final – em Mossul, no Iraque;  na Síria em Raqqa, a declarada capital do califado, onde enfrentam milícias curdas apoiadas pelos EUA, e em Deir Ezzor, onde são bombardeados todos os dias pelos russos – os jihadistas causem toda a destruição que puderem. 

E depois da derrota?

Um dos grandes problemas do pós-Daesh nestes lugares é que nem o Iraque nem a Síria são países estáveis ou em paz independentemente dos jihadistas. “Um dos perigos em Mossul são os grupos que combatem o Daesh, alguns apoiados pelo Irão, outros pela Turquia e alguns pelos EUA, todos com interesses contraditórios e dispostos a enfrentar-se violentamente”, avisa o think tank Internacional Crisis Group. Na Síria, vai acontecer o mesmo, entre curdos que Washington apoia, árabes sunitas financiados pela Turquia ou milícias xiitas criadas pelo Irão.

Se é verdade que o grupo promoveu o sectarismo – apresentou-se como defensor da maioria muçulmana sunita contra líderes xiitas, em Damasco e Bagdad – isso só foi possível porque os próprios políticos destes países já o faziam em defesa dos seus interesses. O fim do Daesh não é o fim do sectarismo nem dos conflitos.

Entretanto, há grupos que juraram lealdade a Baghdadi no Egipto, Arábia Saudita, Líbia, Nigéria, Afeganistão e Iémen, para além da sua rede global de simpatizantes. Nada que se aproxime aos 32 países onde o Daesh diz estar (número repetido por Donald Trump, pouco antes de ser eleito Presidente dos EUA, num ataque à política externa do antecessor Barack Obama).

Com um sucesso que resulta da eficácia da sua propaganda, o grupo não pode ser só derrotado militarmente. É possível que desapareça de Mossul e de Raqqa e que a morte de Baghdadi seja confirmada, mas continuará a debater-se a jihad online tal como não deixará de haver atentados. Que um dia deixarão de ser reivindicados em nome do Daesh.

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