A responsabilidade política e a responsabilidade de todos nós
Há muito para ser explicado e compreendido desde já, porque nada poderá ser igual daqui por diante.
1 - A dimensão da tragédia humana dos últimos dias em Portugal obriga a que nos detenhamos com especial prudência, mas também com especial intensidade, sobre esta palavra, responsabilidade. Uma das suas declinações é a de responsabilidade política, cujo corpo tem vindo a ser ampliado na mesma medida em que o próprio Estado aumentou.
Não se trata já apenas de descrever um poder, um povo e um território, em termos hoje demasiado clássicos. Quando pensamos em Estado, pensamos também na garantia de direitos e na defesa de cidadãos perante a fragilidade natural ou provocada, a desigualdade inaceitável e a incerteza absoluta do futuro.
Se este é o Estado que queremos, temos também de exigir o melhor possível de quem nos representa nessa garantia e responsabilizar esses representantes quanto isso é objectivamente defraudado, para mais de uma forma tão brutal. Parece-me assim difícil que os actuais responsáveis políticos pela protecção civil e pelo combate aos incêndios, titulares sempre circunstanciais e transitórios, possam continuar em funções após este momento de crise. Porquê? Porque eles representam o Estado e a confiança que nele se deposita. E o Estado, com ou sem intencionalidade ou negligência, parece que objectivamente falhou, de forma dramática e absoluta.
2 – Dizia-me um amigo que nada pode ser feito contra um act of God, a expressão que na terminologia jurídica anglo-saxónica representa um acto da natureza dramático e imprevisível – e que as seguradoras adoram... –, o que provavelmente se teria verificado na origem e no desenvolvimento do incêndio que começou sábado passado em Pedrógão Grande. Não sabemos ainda se condições meteorológicas extremas e imprevisíveis foram a razão de um incêndio ou ainda menos a razão de 64 pessoas terem ardido nas nossas estradas e nas nossas aldeias – recorde-se, num contexto de avisos da própria Protecção Civil para os riscos do fim-de-semana passado; eventualmente até horas depois de o incêndio ter deflagrado; e com alegadas falhas do sistema de comunicações de emergência. Mas há muito para ser explicado e compreendido desde já, porque nada poderá ser igual daqui por diante.
3- Fez bem o Governo em preparar no primeiro ano da legislatura uma reforma legislativa para a floresta, que aguarda debate no parlamento. E fizeram bem o primeiro-ministro e demais membros do Governo em dar a cara neste momento, porque esse é o seu primeiro dever.
Levanta já muitas dúvidas que as respostas às perguntas que o primeiro-ministro fez e tornou públicas – e que todos fazemos – possam ser devidamente respondidas pelas próprias autoridades cujo comportamento está potencialmente em causa (Autoridade Nacional de Protecção Civil, IPMA, GNR).
Como pediu o PSD, e faz todo o sentido, este é o caso em que uma avaliação técnica absolutamente independente se justifica, uma opção aliás que já foi usada por outros governos, até do PS, para circunstâncias de dúvida com uma gravidade muito distinta, mas em que se exigia, tanto quanto a verdade total, também uma total credibilidade e autonomia de conclusões (como nos problemas informáticos verificados na recepção da contagem de votos num acto eleitoral de 2005). Não podemos todos nós ficar com qualquer dúvida neste caso nem podem as autoridades em causa ficar com uma sombra de incompetência ou de negligência sobre si.
4 – Outra responsabilidade a que não nos podemos eximir é a nossa responsabilidade comum, por todos os anos nos lamentarmos em uníssono de Junho a Setembro e não exigirmos mais. Não exigirmos mais na prevenção e não exigirmos mais no combate. E não exigirmos mais quantas vezes a nós próprios, perante os potenciais focos de incêndio e diversos laxismos ambientais que abundam à nossa volta. E não exigirmos mais clareza e mais competência na gestão pública, nacional e local.
Se somos o país com mais incêndios da Europa (em área ardida por uma dada superfície) porque somos por exemplo aquele que continuamente tem de beneficiar da caridade alheia quanto a meios aéreos de combate a incêndios, tema no qual as nossas dúvidas de modelo de gestão e de investimento parecem ser permanentes? Talvez gastar menos com futebol e mais com prevenção e combate a incêndios?
Se somos o país com mais incêndios da Europa porquê a ainda mais livre plantação de eucaliptos desde 2013 e o aumentar do risco de incêndio que estes trazem, segundo dizem todos os que percebem do assunto?
Se a perda de vidas algum sentido pode servir, que seja o de fazer melhor o que tem de ser feito. E o de resgatar não só mais uma esperança vazia, mas a certeza de que não voltamos atrás.
miguelromao@fd.ulisboa.pt